CANTO PUNHALADA

fotos: daryan dornelles

A palo seco é o cante
de grito mais extremo:
tem de subir mais alto
que onde sobe o silêncio;
é cantar contra a queda,
é um cante para cima,
em que se há de subir
cortando, e contra a fibra.

Ao escrever o poema “A palo seco” (Quaderna, Guimarães Editores, 1960), João Cabral de Melo Neto evidenciou o que lhe era mais caro em seu ofício: a busca por uma escrita exata e contundente, mimetizada à rudeza do sertão nordestino e ao canto flamenco. Uma poesia sem rodeios e aguda. Como Encarnado, primeiro álbum solo de Juçara Marçal. O disco foi lançado de forma independente em fevereiro deste ano e vem sendo considerado por diversos jornalistas e críticos musicais como um dos melhores de 2014. Interpretando canções onde vida e morte se embatem a todo instante, Juçara dá voz a personagens extremamente fortes que, em situações limítrofes, percorrem uma via crucis onde já não há mais espaço para jogos ou floreios. É tudo ou nada. É “o cante a palo seco/sem o tempero ou ajuda”. Contudo, diferente do poema, o canto de Juçara nunca se faz só. Mesmo ao interpretar canções pontuadas pela desolação, é através da confiança em seus parceiros que a artista vem construindo sua carreira ao longo dos anos.

Intérprete de voz singular, Juçara tornou-se uma das mais importantes cantoras da música brasileira contemporânea. Nasceu em Duque de Caxias (RJ), mas foi, ainda criança, para São Caetano do Sul (SP), mudando-se, em seguida, para São Sebastião (SP). Radicada na capital paulista desde o início dos anos 90, iniciou sua carreira artística ao integrar a Companhia Coral, sob a regência do maestro Samuel Kerr e direção cênica de Willian Pereira. Ingressou em 1991 no grupo Vésper Vocal, com quem lançou quatro discos: Flor d’Elis (Dabliú Discos, 1998), Noel Adoniran  180 anos de samba (Eldorado, 2002), Ser tão paulista (CPC-Umes, 2004) e Vésper na lida (Pôr do Som, 2013). Em 1998, tomou parte do grupo A Barca, com quem realizou uma extensa pesquisa na área de cultura popular, o que resultou em dois álbuns, Turista aprendiz (CPC-Umes, 2000) e Baião de princesas (CPC-Umes, 2002), além de Trilha, toada e trupé (Cooperativa de Música, 2006), caixa com três CDs e um DVD,  e a Coleção Turista Aprendiz (Cooperativa de Música, 2010), contendo vários registros sonoros e sete curtas. Em 2007, ao lado do violonista e compositor Kiko Dinucci, iniciou sua parceria mais prolífera, lançando o disco Padê (2007, Cooperativa de Música). No ano seguinte, formou com Kiko e o saxofonista Thiago França o trio Metá Metá. Com o Metá Metá, lançou dois álbuns: Metá Metá (Desmonta, 2011) e Metal Metal (independente, 2012). O trio ganhou, em 2013, o Prêmio Multishow de “Música compartilhada”, tendo sido também indicado às categorias “Disco do ano” e “Versão do ano”, com a canção “Let’s Play That” de Jards Macalé, regravada no disco E volto para curtir (Banda Desenhada Records,2013). O grupo já realizou turnês em diversos estados do país, além da Europa e América Latina. Em 2014, Juçara lançou Encarnado. No disco, interpretou canções de seus colegas Kiko Dinucci, Rodrigo Campos, Romulo Fróes e Thiago França, além de Itamar Assumpção, Tom Zé, Siba, entre outros.

Em turnê de lançamento de seu álbum, Juçara veio ao Rio, onde se apresentou em curta temporada na Audio Rebel. Aproveitamos a oportunidade para entrevistá-la em um passeio pelo Largo do Machado e o bairro do Flamengo. Ali, conversamos a respeito de sua carreira, parcerias, vanguarda paulista e muito mais.

BD  Na entrevista anterior, conversamos com Lívia Nestrovski a respeito do cenário atual e da presença acentuada de cantautoras, em detrimento das intérpretes. Você também compartilha dessa visão?

JUÇARA MARÇAL — Eu percebo essa tendência... já compus algumas coisas, mas essa não é a minha via mestra. Criar algo para cantar e me expressar... sinceramente, acho que não tenho talento para isso. Não possuo essa veia de compositora. O meu interesse está mais em garimpar músicas que acho interessantes e trabalhar o seu conteúdo, buscando uma linguagem própria. Gosto de criar a partir de uma canção, reinventá-la. Pegar uma música, entender como foi construída e buscar uma forma de incorporar aquele discurso, absorvendo a personagem à ponto dela se tornar eu mesma. Esse é o barato de um intérprete. Tem tantos compositores fantásticos por aí, tantas músicas a serem descobertas, tanta coisa boa que gostaria de cantar, que realmente não vejo necessidade de compor. Pode ser que, daqui a pouco, eu encontre um motivo para fazer isso, mas, atualmente, não. Não pretendo ceder à pressão para me tornar compositora só porque é o que todo mundo está fazendo. Posso até fazer uma coisinha ou outra, uma vinheta para o meu disco, uma música [“Canto pra aurora”] que fiz com o Chico Saraiva... mas é algo muito bissexto. Não me preocupo com isso. Ainda há muita coisa que quero fazer no campo da interpretação. Ainda há muito pano pra manga. E isso ocupa todo o meu tempo.

BD  Encarnado é um bom exemplo disso que você falou, não? Conseguir, através da interpretação e dos arranjos, criar uma unidade e desenvolver uma narrativa própria...

JUÇARA — Sim. O que eu gosto de fazer, o que me diverte, é justamente isso: criar, a partir dessas canções, uma narrativa, uma identidade. É assim que eu me expresso...  incorporando o conteúdo dessas canções e as recriando com o meu jeito de cantar.  Eu me lembro muito do Vésper, quando a gente gravou Ser tão paulista. Era um disco só com compositores de São Paulo. Uma parada bem MPB, né? [risos] Tinha Rita Lee, Adoniran Barbosa, Paulo Vanzolini... um montão de gente... E aí eu ficava falando: “Nossa, mas precisa ter Racionais! Precisa ter Racionais!” Eu era superfã, mas não via nenhuma composição que pudesse entrar no disco, que eu pudesse interpretar. Não achava, não achava, não achava... e quando a gente estava quase fechando o repertório, eles lançaram o Nada como um dia após o outro dia [2002]. Quando ouvi “Negro drama”, putz! Eu consegui me imaginar cantando! E aí fizemos um ostinato que funcionou como a base do rap e fiquei com a parte da poesia. Bem, dei essa volta toda para que você perceba que a escolha do meu repertório passa por esse caminho. Precisa ser um negócio que, quando ouço, desperte o desejo de dar voz àquele texto, àquela canção. Foi assim com “Ciranda do aborto”. Nossa! Tem alguma coisa nessa música, no jeito que o Kiko a construiu, que me fez querer incorporar aquela personagem. Às vezes, as histórias podem não ter nada a ver com você... Na “Ciranda...”, além do fato de a protagonista ser uma mulher, não há nada que se relacione diretamente comigo. Mas só de experimentar aquela dor que ele constrói... [pausa] É uma das músicas mais incríveis compostas nos últimos anos... Sentia algo semelhante, mas por outro víeis, quando cantava “Vias de fato”... eu demorava um tempinho pra voltar à Terra.

BD  Já foram feitos alguns comentários a respeito de "Ciranda do aborto", comparando-a a algumas canções do Chico Buarque. O que você achou disso?

JUÇARA — Pois é... Houve essa analogia. Um amigo nosso, o [professor e pesquisador] Walter Garcia, que é um superestudioso da canção, se debruçou sobre essa história e está fazendo um paralelo entre “Ciranda do aborto” e “Uma canção desnaturada”, do Chico.

BD  Em seu show, você também canta “Xote da navegação”, uma música do Chico. É interessante essa sua aproximação com a obra de um artista que, ultimamente, tem sido considerado datado ou fora de moda...

JUÇARA — É quase impossível alguém não gostar do Chico Buarque, não é? [risos] Pode ser que os seus últimos discos não tenham a força dos anteriores, mas... minha Nossa Senhora! Várias de suas músicas já se tornaram clássicas! O “Xote...” é um clássico! Fico muito irritada com esse negócio de oporem o seu trabalho ao do Caetano. O Chico tem músicas incríveis. É um puta compositor. Não dá para negar isso. E mesmo que você não concorde com o caminho que ele tenha seguido a partir de certo momento de sua carreira, não faz o menor sentido achar que agora sua obra não vale mais nada! Não existe isso, né? Pelo amor de Deus! Acho isso tudo muito estranho. Essa polarização...  Ou você é Caetano ou você é Chico.... Não tem isso, gente! Não mais. Para com isso! Já! [gargalhadas]

BD  Além do Chico, você também interpreta canções do Paulinho da Viola e Zé Keti, todos compositores cariocas. O que a motivou a isso?

JUÇARA — Olha, em momento algum eu pensei nisso. Não tenho o hábito de escolher músicas pelo bairro ou cidade! [risos] Para chegar nesse repertório, eu ouvi muita coisa. Ouvi Erasmo Carlos, Tom Zé, Itamar... ouvi outras composições dos meninos [Kiko, Rodrigo e Romulo]... mas foi difícil encaixar algo novo, porque eu precisava encontrar composições que somassem ao matiz sonoro do disco, que dialogassem com os temas que já estavam ali. Então, quando ouvi essas três músicas, percebi que elas poderiam enriquecer o meu roteiro. Achei que faria sentido. E acho que funcionou. Não é por acaso que “Xote...” está ao lado de “Odoya” e “Ciranda do Aborto”.  Ela é uma canção existencial, possui um clima onírico... e o arranjo do Thomas [Rohrer], repleto de ruídos, aprofunda todas essas questões nesse momento do show. Penso muito na construção de uma linguagem sonora para cada história, sabe? Já “Comprimido”, do Paulinho, achei que tinha a ver com “João Carranca”, que é do Kiko, mas que poderia ser muito bem um samba das antigas. Foi assim que pensei o roteiro do show, e não porque estava faltando um compositor carioca. Não passou por aí. Foi uma pesquisa centrada na canção. Nossa, eu ouvi muita coisa. Juro pra você! [risos] Teve uma hora que até pensei: “Não, não vou colocar mais música nenhuma! Não cabe mais nada! Vai ter que ser um show curtinho mesmo!” [risos] Cheguei a pensar em colocar “Roendo as unhas”, mas várias pessoas já haviam gravado e eu era louca para cantar “Comprimido”. Também tem isso, né? Muitas músicas que acabam entrando em seu repertório já estavam te povoando, e daí, na hora certa, quando rola uma oportunidade, elas entram na roda. O “Xote...” foi bem assim. E acho que se encaixou muito bem ao roteiro do show. A gente fez uma primeira vez, fiquei meio na dúvida, mas depois, com o arranjo que os meninos fizeram, senti que fazia sentido.

BD  E “Opinião”, do Zé Keti?

JUÇARA — Essa, na verdade, fez parte de um espetáculo [Do silêncio ao grito — música popular brasileira x ditadura militar] que o Romulo, Kiko e Rodrigo dirigiram, com músicas da época do golpe militar e outras mais atuais que, de alguma forma, dialogam com as questões desse período, como violência policial e autoritarismo. Fizemos o show em abril, no Centro Cultural São Paulo, com a participação do Odair José e do rapper [Rodrigo] Ogi. O arranjo dessa música ficou tão legal que ficamos com vontade de continuar tocando. Então, resolvemos colocar no bis do Encarnado. O seu tema ainda é muito atual e tem a ver com a proposta do meu trabalho.

BD  Em um debate com o Romulo Fróes, Walter Garcia afirmou que Padê era um disco bastante convencional, dentro dos moldes da MPB. Você também acha isso?

JUÇARA — Sim. Até porque eu realmente vinha desse universo. Eu cantava Tom Jobim, Djavan, Caetano, [Gilberto] Gil... esse pessoal da MPB. [risos] Não gosto muito desse termo... ele tem um peso tão grande que chega a me incomodar, sabe? A MPB ficou pesada! [risos] Mas lááááá atrás, nos anos 80, fiz um show chamado “Onde a dor não tem razão”, só com clássicos dessa tal MPB. [risos] Nessa época, todo mundo começava fazendo uma fita demo e lá fui eu fazer a minha. Ainda me lembro como se fosse hoje, eu ouvindo o resultado da gravação, olhando a paisagem pela janela e achando que aquilo tudo não fazia o menor sentido. Não havia por que gravar aquelas canções. Acabou que não fiz o disco. Porque senti que não havia ali uma força motivadora, uma proposta sólida que justificasse uma empreitada dessas. Era legal, mas faltava algo... até mesmo no repertório do Vésper, por exemplo, tem algumas músicas que não curto muito. Porque nós somos um grupo pessoas e é necessário chegar a um acordo. Então, mesmo não gostando tanto, já cantei diversos clássicos da MPB que, dentro do contexto de um grupo vocal, faz bastante sentido. Porque esta é a viagem do Vésper: a pesquisa, o laboratório... Propusemos coisas que, pra linguagem vocal, são consideradas muito ousadas. Ainda hoje, mesmo não tendo o mesmo gás de 20 anos atrás, tem várias coisas que fazemos que são muito pouco usuais. Então, sempre participei do grupo de boa. Mas é outra viagem.

BD  Você também integrou A Barca. Como foi a experiência?

JUÇARA — A Barca foi um divisor de águas... Formamos o grupo no final dos anos 90. Surgiu a partir de uma inquietação de um bando de amigos que estavam cansados desse papo de “MPB”. A música brasileira não poderia ser só aquilo, entende? Havia muito mais coisa rolando pelo país. A princípio, parecia loucura querer tocar música da cultura popular tradicional em uma formação totalmente urbana. Mas pra gente fazia sentido. O material e principalmente os músicos que íamos encontrando durante as pesquisas modificaram completamente a maneira como entendíamos a música brasileira. Fiquei diversas vezes atordoada com os artistas que encontramos. O que era aquele jeito de cantar, tocar e dançar?... Tão dedicados à brincadeira, ao rito... os cantores tão íntegros na maneira de usar a voz, sem se preocupar com um padrão vocal... Fui mudando o meu jeito de cantar, fui mudando o meu jeito de entender a canção, a música, a arte. Todos nós mudamos com esse trabalho.

BD  Foi nesta época que você conheceu o [babalorixá] Pai Euclides?

JUÇARA — Sim. Conheci Pai Euclides Talabyan com A Barca. Ele tem uma voz linda, um jeito de cantar que é muito impressionante. A sensação que tive ao ouvi-lo era de que sua voz suspendia o tempo. Algo que nunca havia presenciado! Sempre que algum jornalista pergunta qual a minha referência de cantor, falo dele e do Itamar... Mas, quando vou ler a entrevista, isso nunca aparece. Acho engraçado... Por conta d’A Barca, visitei vários terreiros, entre os quais, a Casa Fanti-Asanti, lá no Maranhão. Foi ali que eu conheci o Pai Euclides. Ele é o chefe da casa e um conhecedor profundo de seu ofício. Possui uma memória absurda! Eu o vi comandando várias cerimônias diferentes, sempre com a mesma inteireza, com a mesma entrega... Ao cantar aquelas cantigas, ele conseguia nos transportar para dento delas, para dento de suas histórias. Era uma forma muito singular e saborosa de usar a própria voz. A Renata Amaral, que é d’A Barca, fez um filme com ele, chama-se Pedra da memória. Pai Euclides também participou de outro filme, lançado este ano, Atlântico Nego, na rota dos Orixás. A sua memória é um assombro! Ele se lembra de histórias que viveu quando criança, lembra de nomes, sobrenomes... inclusive de pessoas que fizeram parte dos registros do Mário de Andrade! Nessas viagens, com A Barca, encontrei pessoas que foram muito importantes para a minha formação, que me inspiraram e me instigaram a buscar novos caminhos através do canto. Conheci, na Paraíba, a Dona Odete de Pilar, seu canto era mais solto e áspero... nossa, não dá nem pra explicar! Não passa por aqui [aponta para a cabeça], sabe? Vem direto pra cá [aponta para o coração]. [risos] Eu nunca tive aula particular de canto, aprendi fazendo, pesquisando, testando... então, foi muito importante encontrar essas pessoas. Elas me influenciaram de verdade e me ajudaram bastante em meu aprendizado. Fui descobrindo o meu caminho desse modo, através dessas confluências, desses entendimentos.

BD  E como foi o seu encontro com o Kiko? Apesar de estar a um bom tempo na estrada, você ganhou mais projeção a partir dessa parceria...

JUÇARA — O nosso encontro foi marcante e tem muito a ver com essa minha busca. O Kiko também é bastante inquieto. Saiu do rock, passou pelo samba... quando nos encontramos pela primeira vez, não sabíamos exatamente qual caminho iríamos seguir, estávamos apenas tentando nos entender, reconhecendo o ambiente. Mas a afinidade era palpável. E o Padê foi o resultado disso. Eu vinha da história d’A Barca e, quando o conheci, fiquei impressionada com o seu jeito de compor. Havia algo ali que me agradava, que fugia do convencional e que estava de algum modo relacionado com a minha busca. Havia aquelas canções de orixás que não tinham nada a ver os afrosambas do Baden Powell e que remetiam mais diretamente aos pontos. Você percebia que eram narrativas criadas a partir de uma vivência real. Eu não havia visto nada parecido com aquilo antes. E quis cantar e viver aquela histórias. Foi assim que surgiu o Padê. Esse disco é o ponto inicial dessa nossa trajetória. E o repertório foi escolhido a partir de um show que fizemos, basicamente de sambas.

BD  Tanto no Encarnado quanto no Padê e nos discos do Metá Metá há uma presença forte de temas relacionados a religiões afro-brasileiras. Houve algum momento em que você receou ficar estigmatizada por conta disso?

JUÇARA — Não. Porque a religião, o tema da religião de matriz africana, é um tema caro, como são muitos outros, porque fazem parte da minha vida. Se isso servir pra indicar algo de mim como artista, como pessoa, está valendo. O público que vai assistir ao show do Metá Metá já sabe do que se trata. Vai porque se identifica com aquele universo, com aquela linguagem. A plateia está sempre conectada. E ela não consiste apenas de pessoas que compartilham dessa nossa religiosidade. Até mesmo em shows na rua, dá para perceber que existe uma conexão. As pessoas têm consciência do que estamos falando. E não nos restringimos apenas a esse tema. Essa nunca foi a onda do Metá Metá. Existem outros elementos presentes ali, sabe? Então, é possível você se conectar ao nosso trabalho por outras vias.


BD  Teve aquela história surreal do Metá Metá no Jornal da Record News, em que vocês tocaram “Oranian”. Aquela apresentação poderia ser considerada um ato político?

JUÇARA — Sim, foi um ato político: música de orixá numa rede caracterizada pelo direcionamento evangélico, com forte campanha contra as religiões afro-brasileiras. Mudamos o título da música e tocamos. Até hoje eu não sei se o pessoal de lá percebeu o que fizemos. [risos] Era algo um pouco arriscado, não dava para prever o que aconteceria. Mas também, e isso é importante, estávamos ali fazendo a nossa música, mostrando-a e falando das coisas que fazem sentido pra gente, na vida e na arte.

BD  Pensando um pouco mais a respeito desse assunto, Marcel Duchamp dizia que o verdadeiro artista do futuro teria que viver à margem, no underground. A postura do Metá Metá em relação ao trabalho, às premiações e ao mainstream parece ser a constatação de que este futuro que Duchamp fala finalmente chegou, não?

JUÇARA — Acho que se o futuro que Duchamp vislumbrava chegou, ele se caracteriza principalmente por embaralhar essa divisão, essa forma de visualizar o panorama artístico. Prova disso é a gente ter concorrido com Caetano Veloso e Guilherme Arantes na categoria Melhor disco” em um premiação como a do Multishow! Esse fato é surpreendente e, ao mesmo tempo, esperado, pois vivemos em um tempo em que as notícias correm por outras vias. As margens que dividiam os “de fora” e os “de dentro” são mais porosas, graças à internet e às redes sociais. O prêmio que ganhamos no Multishow,  Música compartilhada,  é algo que precisou ser criado pra dar conta de uma demanda, de uma efervescência artística que não pode mais ser ignorada. Na época do Itamar, por exemplo, era terrível! Era como se ele não existisse! Como se dissessem: “Se você não seguir as regras do mercado, está fora.” Hoje, esse comportamento não se sustenta! Jornalistas, críticos e artistas que não olharem para o que acontece fora da considerada “mídia tradicional” estão fadados a perder o bonde de uma maneira categórica! A pulverização da mídia com o surgimento da internet e das formas alternativas de se falar de música e de arte em geral, como os blogs, os podcasts e as fanpages, possibilitou uma capacidade de circulação que os alternativos dos anos 80 não tiveram. Então, o termo underground, de repente, soa ineficaz! A gente faz tudo, ou quase tudo, por nossa conta, sem produtor, sem manager, sem mecenas, sem investidor... Quebramos a cara várias vezes, mas vamos aprendendo com os erros e, principalmente, vamos para todos os lugares com o trabalho do jeitinho que a gente pensou, sem interferências externas. Isso é muito compensador. Onde quer que a gente vá, seja no interior do Paraná ou em Paris, sempre há um bando de malucos como nós, ligados no nosso movimento e se identificando com ele. Uma adesão que se faz pelo simples fato de o cara procurar, achar, curtir e pronto, sem fórmulas de marketing e sem jabá.

BD  Encarnado é, provavelmente, um dos discos que melhor sintetiza o mal estar pelo qual estamos passando por conta das repressões da PM às manifestações populares e a quebra constante dos direitos civis. Entretanto, o disco é trabalhado de forma criativa e longe da obviedade ou de qualquer clichê de “música engajada”. Como você conseguiu achar o ponto?

JUÇARA — O Encarnado conseguiu tudo isso?! [risos] Aí é você quem diz! [risos] O que posso dizer é que as escolhas de repertório e sonoridade procuraram sempre refletir o momento que estou vivendo... Se existe algo de compositor em mim, é aí que ele se manifesta, nessa busca, nessas escolhas. E isso tem muito a ver com o momento, com o que está acontecendo em minha volta. As músicas que interpreto, não importa se antigas ou novas, precisam fazer sentido para mim, precisam estar conectadas com o meu tempo. “Damião”, do Douglas Germano, é uma dessas músicas que falam de uma questão que a gente vive o tempo todo. O Douglas vai na ferida. E esse jeito de falar eu acho muito instigante. Porque ele te cutuca, sabe? Para mim, isso é importantíssimo. Gosto dessa ideia, de que a arte, de alguma forma, te mobilize, te comova, que faça você sair do seu lugar de conforto, que tire a sua cabeça do lugar. A arte tem isso, não é? De dar uma nova visão, ampliar a percepção sobre algo. É isso o que eu busco.

BD  Você chegou a falar que o Itamar a influenciou bastante... Chegou a conhecê-lo?

JUÇARA — Não. Na época de maior movimentação da vanguarda, eu estava fazendo faculdade e trabalhando. Tudo ao mesmo tempo. Trabalhava durante o dia e estudava à noite. Vivia sem grana. Duranga kid total! [risos] Além disso, eu era uma caipira, vinda do litoral [São Sebastião, SP]. Foram meus amigos da faculdade que me apresentaram aos discos do Itamar, do Rumo, do Premê... Sempre que tinha show de graça, lá na USP, eu ia. E na Funarte, que era baratinho. Foi lá que eu vi Itamar e fiquei chapada. Comprei o Beleléu... e ouvi loucamente! Ainda sei todas as músicas de cor e salteado! Também curtia muitíssimo o Rumo. Foi uma coisa de descoberta mesmo. E o Arrigo Barnabé?! Nossa Senhora! [risos] Assistir ao show do Arrigo Barnabé foi, para mim, um negócio surpreendente! Como assim?! Eu fiquei transtornada. Pirei mesmo. Porque a vanguarda me mostrou que era possível fazer música de uma forma muito diferente do que eu conhecia. E daí, virei fã. Mas eu não era próxima da galera. Ia assistir, mas não conhecia as pessoas.  Agora, sou até amiga, mas, na época, estava em outro rolê.  Mas acho que de tanto ser fã, de tanto conhecer essa história, de tanto me identificar, acabou rolando essa proximidade. Você começa a conversar com um e outro e... com o [Luiz] Tatit foi um pouco assim. Eu o conheci na faculdade... porque, depois do jornalismo, fui fazer letras. Não cheguei a estudar com ele, mas o Walter [Garcia] o conhecia e nos apresentou. E de tanto conversarmos e de ele saber o quanto eu era apaixonada pelo grupo Rumo, fui convidada para cantar em seu disco [Sem Destino, 2010]. E deu certo. Gravei “Quem gostou de mim”, uma música superbonita dele e do Jonas [filho de Tatit]. Depois, me convidaram para participar do show. Eu me lembro que, no meio da apresentação, eu pensei: “Gente, estou aqui com o Tatit! Cantando com o cara!” [risos] Quando fui gravar o Padê, cantei “Velha morena”, uma de suas músicas da época da vanguarda, dos primeiros discos do Rumo. Então, esse contato se deu bem aos pouquinhos. Infelizmente, não tive oportunidade de conhecer o Itamar. Não deu tempo. Ele morreu em 2004. Mas me tornei próxima de suas filhas [Anelis e Serena Assumpção]. Vou até participar de um projeto da Serena... ela havia chamado o Kiko para fazer os shows de lançamento da Caixa Preta [2013] e aí acabei participando. Foi muito legal poder encarnar o Itamar em um palco. Porque eu o assistia, sempre fui fã e, de repente, estava ali, com o seu repertório para cantar! Mergulhei muito nessa história. Foi uma realização. Na verdade, todos esses contatos podem ser considerados realizações. É muito louco!

BD  Você também participou do último disco da Ná Ozzetti. Como foi isso?

JUÇARA — Com a Ná foi a mesma coisa. Eu a conheci através de uma amiga, que fazia aulas de canto com a mesma professora da Ná. E aí, um dia, após um show, a gente foi conversar com ela. Eu não conseguia nem falar! [gargalhadas] “Meu Deus, a Ná! O que eu faço?!” [risos] E agora, a gente vai participar do disco novo do Rodrigo! Veja só! Eu e a Ná vamos fazer o coro. Pense nisso! [risos] A Suzana Salles também é outra queridíssima. Uma figura muito importante dessa cena e que eu conheci através de shows e projetos em comum.

BD  Foi durante a faculdade que você passou a se dedicar à música?

JUÇARA — Eu era apaixonada por música, mas não me via trabalhando com isso. Ainda tinha na minha cabeça aquela ideia de que precisava trabalhar em um emprego regular. Eu fazia jornalismo, na USP, mas, na verdade, comecei estudando matemática. Só que desisti no primeiro ano! [risos] E aí entrei para o jornalismo e comecei a cantar no coro da faculdade. Aos pouquinhos, fui me envolvendo com a música... cantar em coro me possibilitou trabalhar na Companhia Coral, que era mantida pela Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo. Houve um grande teste e, olha que louco! O amigo que me incentivou a participar estava ontem na Audio Rebel! O Vitor Hugo! Olha as voltas que o mundo dá! A gente não se via há mais de vinte anos. E ele foi assistir ontem ao meu show. Trabalhávamos em um negócio chatíssimo, fazíamos informes esportivos. Víamos os jogos de futebol, fazíamos um boletim e gravávamos as notícias para que as pessoas ligassem e se informassem. Era um saco! [risos] A gente odiava, mas precisávamos da grana. E aí surgiu esse teste da Companhia Coral. O Vitor ia participar e me chamou. Eu achava que não tinha a menor chance, mas ele acabou me convencendo a fazer. Consegui entrar, mas ele não! [risos] Esse foi o meu primeiro trabalho remunerado nessa área.

BD  Ao longo de sua carreira, seu canto foi se dirigindo cada vez mais para um caminho experimental. Como foi esse processo?

JUÇARA — Acho que experimentar jeitos diferentes de cantar é algo que já começou lá no Vésper. Aos poucos fui ouvindo mais coisas, aprendendo, achando matéria-prima que me permitiu fazer mais experimentação. Conforme encontrava novos parceiros musicais, conforme esse diálogo se estendia, o leque de recursos vocais se ampliava. como já falei antes, A Barca foi muito importante para que isso acontecesse. Depois veio o encontro com o Kiko. Na época, esse encontro foi tão marcante que tive a vontade e a certeza de que precisava gravar algo nosso. Mas também seguimos adiante... Hoje, quando ouço Padê, percebo que meu canto mudou muito. E isso é muito legal. Significa dizer que, para onde quer que você vá, seus parceiros musicais irão te instigar a buscar novos recursos... e essa dinâmica nunca tem fim.

BD  Mas você poderia ter escolhido um caminho, vamos dizer assim, mais convencional, mais harmonioso e belo... No entanto, você optou pelo oposto...

JUÇARA — Mas eu acho belo o que faço! [gargalhadas] Entendo o que você quer dizer. Talvez o meu canto provoque algum desconforto pela forma pouco usual que, por vezes, emprego a minha voz. Mas foi um caminho inevitável... A própria formação do Metá Metá já diz um pouco dessa busca. Sempre procuramos a troca. Assim, o meu canto interfere no jeito de eles tocarem e a minha forma de cantar também sofre a influência dos dois. Isso é excelente. Então, acho que não tomei o rumo do convencional e do harmonioso, pra usar suas palavras, porque não me interessa trabalhar com quem me faça cantar dessa forma. O que me nutre, o que me dá gás para continuar trabalhando é justamente esse diálogo, poder encontrar pessoas que me instiguem. O resto é consequência. Senão eu estaria cantando ao lado de alguém que tocasse igual ao Tom Jobim ou ao João Gilberto. Poderia, mas não é o que eu quero. É claro que muita gente deve achar horrível o que faço! [gargalhadas] Deve achar que eu só sei gritar! [risos] Mas tudo bem, não me importo. Para mim, o meu trabalho faz um puta sentido. Essas músicas e a forma como as interpreto estão totalmente vinculadas com o que vivo, com o meu presente. O berro, o grito, faz sentido para mim. Quando canto “Let’s play that”, nossa! É uma música de outra época que faz um baita sentido pra falar do hoje. Acho importante a possibilidade de provocar um sentimento no ouvinte que não seja o “oh, que grande técnica vocal!” A arte passa por outras vias. Há falhas, arestas de imensa força expressiva. É uma busca nossa. Acreditamos nisso. Mas não é uma fórmula: “Ah, agora vamos fazer noise”...não tem isso. É através das nossas experimentações que os caminhos vão surgindo. No Encarnado, na hora de gravá-lo, o que fez sentido para mim foi a sonoridade das guitarras. E é engraçado, porque cogitamos colocar mais coisas: bateria, baixo... mas, no final, só ficaram as guitarras do Kiko e do Rodrigo e a rabeca do Thomas. Porque havia um significado nessa combinação. Não precisava de mais nada.

BD  Pode-se dizer que você, Thiago [França], Kiko, Romulo, Rodrigo e Marcelo [Cabral] formam uma espécie de coletivo, interagindo e participando ativamente dos trabalhos de seus pares. Isso é bastante incomum na cena atual, que, pelo menos em discurso, privilegia o individualismo...

JUÇARA — É que temos muitas afinidades. Afinidades não só estéticas, de se identificar com o que o outro está fazendo, mas também de se identificar com o modo como o outro trabalha. São pessoas que entendem o fazer artístico do mesmo jeito. Por isso que faz sentido você nos chamar de coletivo. Nós não temos essa visão individualista. Não é assim que a gente pensa. Estamos todos juntos, no mesmo barco. Gosto de trabalhar no coletivo, com as pessoas criando junto comigo os arranjos. Não basta pensar o arranjo e chegar com ele pronto. Não! O gostoso é fazer tudo junto! [risos] Essa troca é que é o divertido da história.

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