ISTO NÃO É UM POEMA

fotos: daryan dornelles
Criado em 1990 pelos poetas Chacal e Guilherme Zarvos, o CEP 20.000 tornou-se ao longo dos anos um dos pontos de referência da produção cultural carioca. Tendo por objetivo ser um espaço para a inovação e o diálogo entre artistas de diversas áreas, o CEP (Centro de Experimentação Poética) vem mantendo suas portas abertas para que novos nomes surjam e amadureçam seus trabalhos. Pelo seu palco principal — o Espaço Cultural Sérgio Porto — já passaram centenas de escritores, performers, artistas plásticos, atores e músicos. Michel Melamed, Rubinho Jacobina, Pedro Luis e a Parede, Mulheres Q Dizem Sim, Viviane Mosé, Funk Fuckers, Jonas Sá, Ericson Pires, Boato, Rogério Skylab, Gregório Duvivier, Thalma de Freitas, Os Outros, Fausto Fawcett, Do Amor, André Dahmer, Qinho, Chelpa Ferro, Letuce, Mariano Marovatto... a lista é longa e bastante significativa. O evento sempre teve uma estreita ligação com a cena musical carioca, o que o tornou um dos responsáveis pelo surgimento do mais importante festival de música independente da cidade, o Humaitá Pra Peixe, criado em 1994. Com o passar dos anos, o CEP diversificou-se e passou a ter, em alguns momentos, um caráter itinerante, percorrendo bairros das zonas norte e oeste, como Méier, Pavuna, Complexo da Maré, Bangu e Campo Grande.

Uma de suas crias mais conhecidas, o músico e escritor Botika começou sua carreira aos 12 anos, como ator na peça infantil A Mulher que matou os peixes, baseada na obra de Clarice Lispector. Mais tarde, envolveu-se com a música, por influência de seu pai, o compositor e diretor musical Caíque Botikay. Junto com o amigo e parceiro Vitor Paiva, integrou as bandas A Neura e Os Outros, lançando dois discos: Nós somos Os Outros (2007, Bolacha Discos) e Pacote felicidade (2010, Bolacha Discos). Paralelamente, envolveu-se com a literatura, publicando em 2004, seu primeiro livro, Autobiografia de Lucas Frizzo (Azougue Editoral), inspirado em PanAmérica (1967, Ed. Tridente), de Agripino de Paula. Seis anos depois, publicou o elogiado Búfalo (Língua Geral). Em 2012, lançou com sua banda e a cantora Teresa Cristina o álbum Teresa Cristina + Os Outros = Roberto Carlos (Deckdisc), onde interpretam canções de Roberto Carlos. Ao lado de Paulo Tiefenthaler, Alexandre Vogler e Guga Ferraz, foi um dos idealizadores do Aplique de Carne, projeto multimídia apresentado em 2013 no Galpão 5, da Funarte, em Belo Horizonte. Nesse mesmo ano, foi convidado pela jornalista Lorena Calábria a participar do projeto Agenor — As canções de Cazuza (Joia Moderna), onde fez uma releitura de “Ritual”, composição de Cazuza e Roberto Frejat. Ainda em 2013, ganhou destaque na mídia ao se envolver em uma discussão e ser agredido pelo prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes. Em 2014, já com a banda desfeita e em carreira solo, lançou Picolé de cabeça (Bolacha Discos), produzido por Bernardo Palmeira.

Após diversas conversas e resolvidos alguns contratempos, fomos entrevistar Botika em sua casa, em Botafogo, no dia seguinte ao show que realizou no Espaço Cultural Sérgio Porto, onde dividiu o palco com a banda Do Amor. Contando com a presença de sua esposa, a produtora Ana Maria Bonjour, grávida de nove meses de sua primeira filha, Odete, Botika nos falou a respeito de sua carreira, projetos musicais e literários e da importância do CEP 20.000 para a cena carioca.

BD  O CEP 20.000 parece ter sido muito importante para a sua carreira. Poderia falar um pouco sobre ele?

BOTIKA — Fui pela primeira vez ao CEP em seu aniversário de dez anos, em 2000. Foi um momento superfestivo, com diversos eventos. Eles estavam registrando algumas performances para lançar em CD, que seria encartado em uma revista [Trip #83]. Eu e o Vitor Paiva, meu parceiraço, fomos ao CEP por curiosidade mesmo, éramos moleques e queríamos conhecer as coisas. Chegamos lá sem saber de nada e o Zarvoleta [Guilherme Zarvos] veio falar com a gente. Ele nos convidou para irmos mais vezes, começamos a participar do projeto e fomos chamados para trabalhar nele. Fazíamos produção, divulgação, apresentação... um monte de coisas. Esse período foi importantíssimo para mim. O CEP tornou-se uma grande escola onde conheci várias pessoas e pude, artisticamente, fazer muitas experiências. Ele não é um lugar voltado apenas para os grandes artistas, já maduros e com enorme talento. É, acima de tudo, um lugar que promove a mistura, o diálogo, onde todos podem mostrar seus trabalhos e experimentar. Estive ali por muitos anos, trabalhando e me apresentando. Toquei com Os Outros diversas vezes naquele palco. E foi ali que comecei a escrever. Até então, só fazia música. Só compunha. Foi o Zarvos que me botou pilha, que me convenceu a entrar na literatura. Eu sempre o menciono nas entrevistas porque ele é muito importante para mim. Zarvoleta fez com que eu me conhecesse melhor, descobrisse os meus potenciais e os colocasse pra fora.

BD  Então, para você, a música veio primeiro que a literatura?

Botika — Sim. Meu pai é músico, compõe para teatro. Sempre fez isso na vida. E isso me influenciou muito, com certeza. Sempre tive um compositor em casa. Então, foi natural que eu começasse primeiro com a música. Eu tive uma banda... Na verdade, o Vitor, que é amigo de muitos anos, teve uma banda chamada Aneurisma. Era um lance bem de garotada mesmo. Acho que eles só tocavam cover do Nirvana... Eu fui apresentado a essa galera, começamos a sair juntos... e me bateu uma puta vontade de compor! Só para também ter uma banda! [risos] Gostei da parada, sabe? Era algo meio fantasioso, mas, mesmo assim, comecei a compor. Eu sabia tocar um pouco de violão, por causa do meu pai, e mostrei algumas músicas para eles. Daí, fui chamado para a banda. Ela mudou de nome, virou A Neura e passou a ter músicas autorais. Foi mais ou menos nessa época que eu tomei contato com o CEP.

BD  E, paralelamente, você não escrevia nada?

Botika — Escrevia as minhas músicas malucas! [risos] Rock’n’roll! [risos] Era só isso.

BD  Nem contos, nem poesia?!

Botika — Nada, nada! Se bem que você pode pensar que há poesia nas minhas letras. Existe essa possibilidade. Mas eu não era um escritor. Comecei no CEP apenas cantando. Só depois é que passei a escrever e a apresentar meus textos, meio que na brincadeira. Não havia qualquer pretensão. Por isso que, mesmo enquanto trabalhava em meu primeiro livro, não conseguia me ver como um escritor. Não me considerava um escritor. Autobiografia... foi escrita num vômito só. Como se fosse um tapa. Não há pontuação, nem parágrafo, nem capítulo. Eu mostrava meus textos pro Zarvos e ele comentava, sempre me incentivando. Gostei do negócio e aí decidi me tornar um escritor pra valer. Passei a escrever mesmo, com rotina.


BD  Como era a sua relação com o Ericson Pires [poeta e produtor cultural, morto em 2012]? Você tem uma parceria com ele, não?

Botika — Sim, chama-se “Ela não pode parar”, mas não entrou no Picolé de cabeça. Ela está apenas no show. Vou gravá-la no próximo álbum. Fizemos essa canção há bastante tempo. Foi por conta de uma discussão feia que tivemos no meu aniversário de dezessete anos...

BD  Mas você ainda era uma criança!

Botika — É! [gargalhadas] Mas já estava bem acompanhado. [risos] Fiz meu aniversário na casa de uma namorada e chamei algumas poucas pessoas. E aí o Ericson apareceu por lá com, sei lá, umas 15 cabeças que eu nunca tinha visto na minha vida! E sem nenhuma cerveja! [gargalhadas] Tava rolando um disco supercalminho do Caetano Veloso e ele trocou por um eletrônico pesaaaaaado. Começou a sacanear a festa. Discutimos e o expulsei de lá. Dei um gelo nele. Mas voltamos a nos falar quando uma grande amiga nossa morreu. A Paula [Bernardes] tinha a minha idade. Caiu da janela do apartamento onde estávamos. Foi uma situação muito pesada. Horrível. Foi a primeira vez que eu perdi alguém. E aí, ele veio me dar uma força. Eu estava fudidaço. Tinha gente achando que eu poderia ter empurrado a menina! Então, o Ericson veio falar comigo e fez um poema para ela. A Paulinha era uma maluquete, livre e solta. Todo mundo se amarrava no jeito dela, inclusive o Ericson. Eu acabei musicando esse poema. E depois ele morreu. Aquele filho da puta! Agora, quando canto essa música...  [pausa] ela também serve para ele. Porque se trata de uma perda, da pessoa ir e você imaginar que... é muito doido... [pausa] Bem, parceira musical nós só temos essa. E ainda bem que tem. Porque me é muito cara... Mas você chegou a conhecer o Ericson?

BD  Quem não conhecia o Ericson?! [risos]

Botika — [Risos] Maneiro. Eu o conheci no CEP 20.000. O Ericson foi um grande amigo. Vivemos muitas coisas juntos. Desde o começo. Acho que ficamos uns 14 anos colados. Trabalhando e vivendo. Tínhamos uma relação muito próxima, como poucos. Assim como o Zarvos, o Ericson me transformou profundamente. Montamos uma banda, a Laptop Violão. Foi um trabalho nosso e do Daniel Castanheira, que também é outro irmãozão. Eu tocava violão e cantava, Daniel fazia as programações e sons eletrônicos e o Ericson fazia umas loucuras. [risos] Ele gostava muito do palco. Comprou duas maracas para tocar e ficava, durante a apresentação, fazendo intervenções, lendo poemas e outras doideiras. Foi uma puta experiência.

BD  Em seu primeiro livro há uma influência muito forte do José Agripino. Quais outros autores também te influenciaram?

 Botika — O Agripino é realmente uma influência forte. Mas, desde garoto, lia os beatniks: William [S.] Burroughs, [Jack] Kerouac, Allen Ginsberg... Sempre li muita prosa. Diferente de poesia, que é algo que, praticamente nunca leio. Sinto muita dificuldade em entrar e ser tocado por um poema. Claro que há um ou outro autor que me arrebata, mas não tenho muita paciência para ler poesia. É um negócio chato! [gargalhadas] Desculpa, mas é verdade. [risos] Então, sempre li prosa... Quando escrevi Autobiografia..., eu ainda não tinha tomado contato com os livros do [Julio] Cortázar. Quando li, fiquei maluco. Histórias de cronópios e de famas me deixou trelelé da cabeça e me fez escrever de uma forma que eu não imaginava. Por causa disso, passei a me interessar pelos escritores latino-americanos que trabalham com a prosa inventiva: [Jorge Luis] Borges, Felisberto Hernández, Bioy Casares, Gabriel García Márquez... Conheci também o Macedonio Fernández. Ele é da pesada! Foi meio que o guru desses malucos. Escreveu um livro chamado Museu do romance da eterna que também mexeu muito comigo e com a minha escrita.

BD  Li que Autobiografia... irá se tornar um monólogo com Matheus Nachtergaele. Em que pé está esse projeto?

Botika  — No momento não está andando. Eu e Matheus nos encontramos várias vezes e fizemos algumas leituras bem empolgantes e intensas. É um projeto que está na gaveta, mas sempre querendo sair. O Matheus é bem ocupado e eu também sempre acabo me enrolando. Quando conseguirmos afinar os ponteiros, a coisa sai! Acharia muito interessante ver meus livros no palco, mesmo que eu não participasse do processo... Não escrevo para que o livro se tranque nele mesmo. Acho ótimo que ele transborde para além de seus limites formais. O Walter Carvalho leu o Búfalo e ficou muito a fim de transformá-lo em filme. A gente se encontrou algumas vezes pra conversar e acabei escrevendo um argumento com meu amigo Lucas Paraizo. É um lance que me anima muito, mas que não é moleza de botar pra frente. Mas nada está enterrado. Nunca deixo de alfinetar os amigos que se mostram interessados em parcerias criativas.

BD  E o próximo livro, Calendário?

Botika — Faz alguns anos que estou escrevendo, mas estou terminando, finalmente. Calendário é uma brincadeira com o tempo e a história. Faço pesquisas no Google e na Wikipédia a respeito de cada dia do ano e recolho todas as informações que me chamam a atenção, não importando se são verdadeiras ou falsas. A partir daí, eu as coloco em meu calendário e começo a modificá-las, a reinventá-las. Reconto a história mesmo. Serão todos os 365 dias do ano, cada um em uma página. E no final de cada uma, deixo uma dica para o aniversariante do dia.

BD  Existe uma relação próxima entre sua literatura e suas músicas. Tanto em uma quanto na outra há bastante humor e acidez, como em Nós dois...”, “Pequenininho” e “Pipoca”...

Botika — Há sim, mas isso é algo que identifiquei muito recentemente. Antes eu não ligava a escrita literária à escrita musical. Eu tentava me afastar dessa ideia. Nem sei por que fazia isso... Mas hoje em dia, estou achando interessante pensar que tudo é misturado. Percebo que em algumas músicas há palavras e versos que poderiam estar nos meus livros, que possuem um humor parecido. Tenho gostado bastante de ver o meu trabalho como uma coisa só, de poder utilizar todos os recursos que tenho em qualquer uma das linguagens. Mas, assim, em relação aos exemplos que você deu, a letra de “Pipoca” não é minha não! [risos] É um poema de uma amiga, a Bruna Beber.

BD  Ops! [risos] Mas, ainda assim, você se apropriou de um texto bastante próximo ao de sua escrita...

Botika — Sim. Total. Eu me identifico bastante. Gostaria de ter escrito. A Bruna é muito boa. Gosto de ler seus poemas. Eles são meio dispersos, meio soltos. Não é uma poesia querendo ser poesia, entende? Acho ótima essa despretensão! Não tenho paciência pra pessoas que se levam muito a sério. Isso me incomoda pra caralho! [risos]

BD  Falando mais especificamente sobre música, o seu trabalho solo é bem diferente do que você fazia com Os Outros...

Botika — Isso acontece porque Os Outros era uma banda. Havia um casamento, com todos os integrantes podendo opinar e discutir... só que isso nos deixava um pouco cansados, eu acho. Então, senti necessidade de pedir arrego. Já estava gravando o Picolé de cabeça e trabalhando com uma banda que eu mesmo havia montado... Isso me deixou mais solto e fez com que esse trabalho tivesse mais a minha cara. Claro que todos contribuíram, o som final é da banda. Os caras criaram muito em cima das minhas ideias. Mas n’Os Outros, as músicas eram minhas e do Vitor. E o Vitor também tem um jeito de compor muito particular, muito próprio. Então, não havia espaço suficiente para que eu pudesse me expandir. É por isso que o meu trabalho solo é tão diferente. Agora, estou fazendo tudo do meu jeito. Picolé de cabeça é bem mais cru e os músicos são muito diferentes. Os guitarristas d’Os Outros, o [Eduardo] Sodré e o Papel, são, na minha opinião, grandes guitarristas. São muito bons, muito criativos. Propunham muitas ideias malucas, mas, ao meu ver, sempre pensado em um som mais redondo, mais bem acabado. No caso de agora, é mais tosqueira, sabe? Os músicos da minha banda também são muito bons, mas é tudo mais solto. É tudo meio no deixa rolar. As músicas têm forma, só que não estamos muito preocupados em aparar as arestas. A gente curte o estranho, o desafinado... durante o show, podemos terminar a música quando bem entendermos! [risos] Uma coisa que eu faço agora e que não rolava n‘Os Outros é pedir pra banda tocar mais baixinho ou então pra ser mais porrada, dependendo do que acontecer durante o show. Eu nunca tinha feito isso na minha vida! Estou adorando! Nessa hora, fico me sentindo uma diva! [risos]

BD  Maria Bethânia! [risos]

Botika — [Gargalhadas] Bethânia total! Vai (grita, levantando o braço de forma teatral)! [gargalhadas] É muito maneiro. Fica uma putaria mais gostosa! [risos] A minha banda é bem louca. O Berna [Bernardo Palmeira] é um baterista que, além de tocar, faz um monte de outras coisas. Ele está sempre AAAAAH [grita], totalmente à flor da pele! O Daniel Castanheira, o meu baixista, também é um cara que transa muita coisa ao mesmo tempo: escreve, faz doutorado em literatura, é performer... E o baixo, por exemplo, é um instrumento que ele não estava tocando. Eu que propus! O Castanheira nem tem baixo! Pra você ter ideia, ele toca com o do [Rodrigo] Amarante! [risos] O Berna e o Dani são ótimos músicos, mas quem é o instrumentista da parada, íntimo do negócio, é o Bubu [Gabriel Mayal]. Só que ele é todo bluóóó [faz uma careta e entorta o corpo]! [risos] Ele é essencial pra banda, porque só temos baixo, bateria e guitarra. É bem vazio, entende? Essa é outra diferença entre o meu som e o d’Os Outros. N’Os Outros, as duas guitarras soavam o tempo inteiro, ocupando todos os espaços. E, agora, estou achando muito bom poder tirar e simplificar as coisas.

BD  O seu disco solo seria produzido pelo Otto, mas acabou sendo produzido pelo Bernardo Palmeira. Por quê?

Botika — Teve essa história... Quando comecei a pensar no Picolé de cabeça, eu estava muito colado ao Otto. Ele botava muita pilha: “Vai fazer um negócio seu, rapaz! Do seu jeito!” E aí, quando comecei a me articular, ele disse que iria produzir. É claro que aceitei. Mas depois... O Otto é difícil de pegar. [risos] Ele se ofereceu lindamente e eu achei ótimo, mas o cara não se aguenta. Ele não consegue ficar muito tempo parado. [risos] Quem sabe um dia role. Vamos ver se o maluco consegue parar quieto! [risos] Mas achei bonito o seu convite. Ele super quis fazer.

BD  A sua performance no palco é impressionante: você se joga no chão, corre, dança...  sempre foi assim?

Botika — Ganhei essa presença de palco com o tempo. Através da experiência mesmo. Quando eu era d’A Neura, ainda garoto, tocava violão e cantava. Havia um instrumento me segurando. Depois, n’Os Outros, eu quis apenas cantar, justamente pra poder ficar com os braços soltos e me expressar mais com o corpo. Gostei da parada e a cada show eu vou experimentando mais... É assim que rola. Na carreira solo, talvez isso ganhe destaque porque estou cantando apenas músicas minhas, escolhidas por mim. Fica mais fácil incorporar aquelas palavras e me expressar, me soltar. Eu me torno aquilo que canto e o corpo acompanha, viramos tudo uma coisa só. Além disso, antes de entrar no palco, eu sempre tomo umas biritas. [risos] Pra ficar mais soltinho, sabe? Ontem, eu tomei umas boas cervejas. Tava beeem solto. [risos] E o Ney Matogrosso estava na plateia! Imagina! Eu tinha que arrasar! [risos] Quis dar um showzão pro Ney. [risos] Gosto muito desse cara.

BD  Os álbuns com Os Outros, é bastante pop, remetendo ao BRock e à geração 90. As bandas dessa época eram uma referência para vocês?

Botika – Pois é, a gente tinha essa pegada. Mas é engraçado porque a banda não teve muita influência desse tipo de rock. Durante a adolescência, eu e o Vitor só ouvíamos Nirvana! [risos] Só depois é que fomos abrir os ouvidos. E ainda bem! Porque senão seríamos dois bitolados. Mas realmente não me lembro de termos parado para ouvir as bandas dessa época. Não era uma parada nossa.

BD  O interessante é que você acabou participando do tributo ao Cazuza, que é um ícone do BRock...

Botika — Participei a convite da Lorena Calábria, que é uma amiga querida, e do Zé Pedro [Joia Moderna], que conheci através desse projeto. Adorei estar ali. Sempre identificaram meu jeito de cantar com o do Cazuza. Olha que doido! Hoje, a obstetra da minha esposa veio aqui em casa e eu dei o Picolé de cabeça pra ela. A primeira coisa que ela falou quando ouviu foi: “Cazuza, né?” [risos] Escuto esse comentário desde quando comecei a cantar. De forma alguma isso me irrita, apesar de eu concordar só um pouquinho...

BD  Ainda participando d’Os Outros, você lançou um disco em parceria com a Teresa Cristina interpretando canções de Roberto Carlos. Como foi a experiência?

Botika — O encontro com Teresa Cristina foi muuuito bom. O Vitor era amigo dela e a banda estava em uma temporada no Sérgio Porto com diversos convidados. Teresa foi e pediu pra tocar uma música do Roberto , "Do outro lado da cidade". Deu certo e nos empolgamos. Depois trabalhamos tudo juntos: escolha de repertório, arranjos, figurinos e tal. Gravamos o disco Teresa Cristina + Os Outros = Roberto Carlos, e fizemos shows muito divertidos durante dois anos. Eu passei a conhecer melhor o som do Roberto através desse trabalho. Ele tem um número enorme de canções que servem para todos os gogós. Suas músicas podem ser curtidas tanto com seriedade quanto com avacalhação...

BD  Você participou do projeto Aplique de Carne... Ele era bastante ousado e envolvia diversos artistas. Como foi isso?

Botika — Montamos o Aplique... no comecinho do ano passado. Foi a coisa mais maluca que fiz na vida! Foram 12 artistas trabalhando coletivamente. A gente ganhou o edital da Funarte em BH, onde fizemos o espetáculo. Estamos até hoje tentando trazê-lo pra cá, mas não conseguimos verba. A ideia surgiu em um papo de bêbado entre eu, o Alexandre Vogler, o Guga Ferraz e o Paulo Tiefenthaler. Alguém falou: “Imagina uma mulher em que os grandes lábios não param de crescer!” E a gente achou isso maneiro, que poderia ser uma espécie de mito, um saci-pererê contemporâneo! [risos] Mas morreu aí. Anos depois, o Vogler retomou essa história, escreveu um projeto com a Ana Maria e mandou para vários editais. E passou! Só que a gente só tinha pensado nesse mote! Mais nada! Então, alugamos um loft na Gamboa, um apartamento enorme, todo aberto, para que pudéssemos começar a produzir. Terminamos a história, que é totalmente surreal, e fizemos uma série de reuniões. O espetáculo tinha de tudo! Havia uns quatro projetores, com uns vídeos que a gente criou. Havia também uma instalação que ficava exposta para a visitação. Eu fazia parte da banda, as Apliquetes, com a Amora Pêra e a Flavinha [Flavia Belchior]... Tocávamos em cima de um tapete que era um bicho preguiça gigantesco. Os grandes lábios da Aplique, interpretada pela Nana Carneiro [da Cunha], eram feitos de látex, tinham três metros de comprimento! Era uma coisa linda! Esse foi o trabalho mais próximo da performance que já fiz. Eu estava ali no palco, tocava, cantava... tirei todos os pelos do meu corpo para ficar mais feminino. Foi um projeto fantástico que contribuiu para que me soltasse ainda mais.

ANA MARIA BONJOUR [sai do quarto e se dirige até nós]  Oi, tudo bom? Estou pensando em fazer algo pra gente comer. Você aceita? Acho que consigo fazer umas tapiocas...

BD — Claro! Obrigado.

Botika — Boa!

BD  Voltando à conversa, você tem uma relação próxima com diversos artistas plásticos, inclusive o Tunga...

Botika — Conheci o Tunga através de uma ex-namorada que, na época, trabalhava como sua assistente. Eu já gostava muito do seu trabalho, mas ele não me dava muita bola. [risos] Mas daí, ele leu o Autobiografia..., ficou bastante entusiasmado e me falou: “Vamos trabalhar juntos?” Mas acabou não me propondo nada. [risos] Mesmo assim, comecei a escrever pequenas cartas que achava que tinham a ver com o seu trabalho. No final de cada uma, havia algumas sugestões, alguns comandos: faça isso, faça aquilo... era tudo bem louco. Imprimia no computador e deixava na caixa de correio dele, sem assinar, totalmente anônimo. Mandei umas dez cartas. Só pra instigar. Após deixar a última, eu fui lá falar com ele: “E aí, Tunga, está recebendo as minhas cartas?” Ele me olhou e: “Porra! A minha mulher está puta comigo! Por causa dessas cartas, cismou que estou tendo um caso com alguém!” [gargalhadas] Aí fui explicar tudo para a Cordélia [Mourão, esposa de Tunga na época]. Essas cartas acabaram sendo publicadas em uma revista [Líneas de Fuga], em uma antologia, no México. Mais tarde, no aniversário de dez anos da Cosac Naify, a editora lançou uma caixa comemorativa com trabalhos do Tunga e ele me pediu para escrever um texto que dialogasse com algumas dessas gravuras. Depois disso, fizemos mais algumas coisas. Esse diálogo com ele aumentou meu interesse e me fez ficar mais próximo das artes plásticas. Conheci outros artistas, como o Alexandre Vogler e o Thiago Rocha Pita, que é outro amigão. O Thiago também me chamou para escrever sobre o seu trabalho. Achei ótimo, porque abriu um caminho novo para a minha escrita, diferente da literatura e da música.

BD  Bem, não tem como terminar essa entrevista sem tocar em um assunto delicado: a sua discussão com o prefeito Eduardo Paes. O seu comportamento destoa bastante do resto de sua geração, que, pelo menos até as manifestações de 2013, era bastante apática...

Botika — Preciso deixar algumas coisas claras: a primeira é que eu nunca fui um militante, nunca fui politicamente ativo. A minha militância está na arte. Nunca estive à frente de uma passeata, gritando no megafone ou levantando bandeiras. Apesar de, obviamente, ter minhas convicções políticas. E acredito que o meu trabalho revele isso. Abordo diversas questões tanto na minha música quanto nos meus livros. Eles revelam muito de mim, do que eu acredito, do que eu almejo. Certamente fazer arte, cantar e me expor é um ato político.

BD  Por conta dessa agressão, você compôs uma música...

Botika — Pois é! “Tubarão Prego”! Ela foi composta para o nosso digníssimo prefeito. Mas a questão principal dessa história é que eu sempre tive tudo para ser politicamente contrário a ele. Poderia tê-lo xingado por causa disso. Não vejo nenhum problema. Mesmo. Acho bastante justo um cidadão ter um comportamento agressivo diante de um político tão canalha quanto ele. Mas nossa discussão não começou por conta disso, por questões políticas. Na verdade, eu havia visto o [escritor] Francisco Bosco em uma mesa e fui falar com ele. Eu não tinha percebido que o Eduardo Paes estava ali, sentado na mesma mesa. Nem imaginava. Após falar com o Chico, me virei e dei de cara com ele. Levei um puta susto e disse: “Eduardo Paes?!” Começou assim. Eu o abordei tranquilamente. Se ele não tivesse sido sarcástico talvez não o tivesse xingado. Foi ele que começou a parada. O Paes começou a rir da minha cara por ter ficado surpreso ao vê-lo e, ainda rindo, disse que era o César Maia. Ele foi irônico de uma forma muito soberba. Perguntou a profissão de minha mulher e deu gargalhada quando ela respondeu. Estava claramente de sacanagem comigo e com a Ana Maria. E aí, quando o sangue esquentou, deu no que deu, o prefeito fez aquele merda, dando dois socos na minha cara.

BD  A maioria dos artistas independentes tem seus projetos financiados em editais do governo. Você não ficou com medo de sofrer alguma retaliação por causa disso? 

Botika — Na primeira semana eu fiquei é com medo de ser assassinado pelos capangas dele! [risos] Foi a maior pressão. Teve gente do mundo inteiro me ligando. Todos querendo saber da história. Foi horrível. Em apenas alguns dias, deu pra sacar como é ruim ser famoso! [risos] Ainda bem que passou. Mas não houve nenhuma perseguição política. Pode ser que tenha acontecido e eu não tenha percebido. Inscrevi alguns projetos em editais que não foram contemplados, mas isso é algo normal. Não posso afirmar que o resultado tenha sido por conta de uma retaliação. Mas a Ana Maria, por exemplo, perdeu dois trabalhos que já estavam fechados porque os empregadores ficaram com o cu na mão e não quiseram ser associados a ela. Algumas pessoas também se afastaram da gente. Tivemos que esperar a poeira baixar para voltarmos ao ritmo normal de nossas vidas.

Ana Maria [trazendo o lanche para a sala] —  O que me irritou bastante foi ouvir das pessoas, inclusive de jornalistas, que nós queríamos aparecer! Que éramos artistas em busca de fama! Que fizemos aquilo tudo só para sairmos nos jornais! Como se o principal objetivo de um artista fosse isso!

Botika — Foi muito doido.

BD  E a imprensa? Quando você lançou Picolé de cabeça, conseguiu fugir um pouco desse assunto?

Botika — Uma vez ou outra... Por exemplo, a Liliane [Reis], do Estúdio Móvel [TV Brasil] não tocou nessa história. Mas não vejo problemas. Porque é normal falar a respeito, né? Foi uma parada que rolou mesmo. Mas prefiro seguir trabalhando e fazendo força para que o que penso, sinto e invento seja algo que valha estar presente entre nós, as pessoas vivas. Eu tenho muuuuitos outros assuntos para trocar com quem tem o mínimo de alma, vontade e fome pelo nosso presente.


3 Responses to ISTO NÃO É UM POEMA

  1. Anônimo :

    Ótima entrevista! Botika, tomara que continue a surpreender com a sua arte pois é autêntico e ainda por cima é uma graça!!

  2. Anônimo :

    muito bacana seu trabalho, adorei a entrevista, perfeito, parabéns! Precisamos de idéias novas, jeito novo, sangue novo pra chacoalhar as cabeças caretas desse país maluco.

  3. Anônimo :

    NÃO CONHECIA SEU TRABALHO, POR ACASO VÍ A ENTREVISTA E FUI OUVIR O SOM! MASSA, FORTE E GENEROSO, SUCESSO!

comente