soluços

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Entre surtos e soluços 
Fred Coelho

Até pouco, achava que o Banda Desenhada, blog de Márcio Bulk, já tinha feito um trabalho fundamental na renovação da obra de Jards Macalé com o álbum virtual E volto pra curtir. Eis que, no fim desse ano de surtos e rupturas, ganhamos ainda esta versão de “Soluços”, feita com maestria por Alice Caymmi e Cadu Tenório. A faixa, composta por Macao, foi originalmente lançada em 1969/1970, no compacto “Só Morto (Burning Night)”. O disco ainda continha mais três composições: “O crime” (Macalé e Capinam), “Só morto (burning night)” (Macalé e Duda) e “Sem essa” (Macalé e Duda).
Portanto, é impactante ouvir uma música completamente esquecida no repertório de Macalé (foi relançada recentemente em um disco de arquivos do selo Discobertas) sendo renovada de forma impecável pela jovem dupla carioca. Vindos de universos sonoros aparentemente distantes, o encontro entre Alice e Cadu nos mostra como a música brasileira contemporânea tem uma vasta trilha de possibilidades pela frente. Alice, com sua voz etérea, vem de um universo sonoro cuja maior referência, claro, é sua própria família musical. Mas essa referência é apenas o ponto de partida para sua curiosidade e pesquisas, cada vez mais amplas e criativas. Já Cadu, articulador e produtor intenso da música experimental carioca e que hoje ganha cada vez mais visibilidade na cidade, coloca sua experiência com projetos e bandas como Sobre a Máquina e Ceticências à serviço de uma delicada canção. E de um desafio muito bem enfrentado.
A junção entre a voz e a interpretação precisas de Alice e a marca musical e maquínica de Cadu fazem com que a canção original, um rock típico de bandas hard rock da época como Cream ou Mutantes, torne-se uma torrente densa de sonoridades, experimentos, teclados, efeitos e vozes. Alice leva a interpretação original de Macalé para um patamar de dramaticidade que joga com o tema da canção na medida certa. Em 1969, tínhamos uma voz masculina, tensa e raivosa pela aparente fragilidade do homem que canta a própria incapacidade de encarar nos olhos seu amor que o abandonou. Na versão atual, Alice subverte o lugar da fala e torna-se a afirmativa voz feminina que fulmina o ex-amado, deixando-o desarmado frente à situação. Ela, sem os óculos escuros, ordenando que ele não fale e não olhe para ela. Pois ela não fugirá do encontro. Dominando a dramaticidade do tema, Alice canta com a maturidade de uma pessoa que entende perfeitamente o mundo poético que atravessou para gravar “Soluços”. 
A produção de Cadu Tenório, por sua vez, arremessa o mundo de Jards Macalé para dentro de sua usina de sons, ruídos, experimentos e transgressões dos códigos que a canção brasileira sempre evitou, na medida do possível. A voz de Alice tem como chão (e céu) camadas sonoras que atravessam a melodia e ajudam a compor o clima inóspito, sufocante e de abandono que a letra nos passa. Com a colaboração de Lucas Vasconcellos (backing vocal) e Emygdio (produção e masterização), o arranjo respira, hesita, agride, sofre. Com a faixa bônus “Soluços (Epílogo)”, Cadu atinge o cerne do universo mais escuro de Jards Macalé, como se entrássemos na mente daquele que odeia soluços e esqueceu seus óculos escuros. Estamos em plena alucinação sonora, sem esperanças. E, mesmo assim, em algum momento, encontramos a paz. 
A nova versão de “Soluços”, portanto, faz com que possamos sentir, em 2013, a barra pesar ainda mais nesta versão do que nos sufocantes dias de 1970. Talvez as transformações e perplexidades de hoje nos deem pistas sobre essa faixa pungente, certeira e desnorteadora para os que buscam águas mansas e lugares comuns para a música brasileira. Isso, essa percepção transgressora do seu tempo, é a prova de que a nova versão de “Soluços” nos mostra o quão atual é a canção. E nos mostra, principalmente, que Alice Caymmi e Cadu Tenório são um dos mais felizes encontros que ocorreram na música brasileira contemporânea.

curadoria – márcio bulk
capa – rodrigo sommer
masterização – emygdio costa

1 – alice caymmi + cadu tenório
soluços (jards macalé) fermata do brasil
alice caymmi – vocais
lucas vasconcellos – backing vocal
produzido por cadu tenório e emygdio costa.
gravado por cadu, emygdio e lucas vasconcellos.

2 – cadu tenório + alice caymmi
soluços  epílogo (cadu tenório, alice caymmi)
alice caymmi – vocais
produzido e gravado por cadu tenório.

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ultrapássara

fotos: daryan dornelles
Sim, Elis Regina, Gal Costa e Maria Bethânia sempre foram consideradas referências fundamentais para grande parte das cantoras deste país. Entretanto, em meados de 2000, com o desenvolvimento da cena independente paulistana, outro nome de igual importância começou a ganhar destaque: Ná Ozzetti.
A cantora iniciou sua carreira no final dos anos 70 ao ingressar no grupo Rumo, um dos principais representantes da vanguarda paulista. Com ele, Ná gravou seis discos, recentemente relançados em uma caixa, em edição especial. Com o seu primeiro disco solo “Ná Ozzetti” (Continental), de 1988, ganhou os prêmios Sharp e Lei Sarney, na categoria "Cantora Revelação". Seu segundo álbum, “Ná” (1994, Núcleo Contemporâneo), recebeu dois prêmios Sharp, na categoria Pop/Rock, “Melhor Disco” e “Melhor Arranjador” (Dante Ozzetti). Dois anos depois, a convite da gravadora Dabliú, lançou "Love Lee Rita", homenageando a cantora e compositora Rita Lee. Em 1999, pela Ná Records, lançou o elogiadíssimo “Estopim”, reforçando o elo com seus parceiros mais constantes: Luiz Tatit, seu irmão Dante Ozzetti, José Miguel Wisnik e Itamar Assumpção. No ano seguinte, participou do Festival da Música Brasileira, promovido pela TV Globo, ganhando o prêmio de melhor intérprete. Por conta disto, gravou no ano seguinte, pela Som Livre, o  disco “Show”.  Em 2005, em parceria com o pianista André Mehmari, lançou “Piano e Voz” (MDC), gravando posteriormente uma de suas apresentações para o DVD homônimo. Em “Balangandãs” (Ná Records/MCD), lançado em 2009, a cantora revisitou alguns clássicos do repertório de Carmen Miranda, ganhando com ele o 5º Prêmio Bravo! Prime de Cultura. Para comemorar seus 30 anos de carreira, Ná lançou, em 2011, seu disco mais autoral, “Meu Quintal”. Deste álbum, sua parceria com Luiz Tatit, “Equilíbrio”, foi indicada na categoria “Melhor Canção Brasileira” no Latin Grammy Awards. Este ano, após iniciar um produtivo diálogo com alguns nomes da nova cena paulistana, Ná lançou seu nono álbum, “Embalar” (Ná Records/Circus), contando com diversos colaboradores e parceiros, entre eles, Kiko Dinucci, Juçara Marçal e Tulipa Ruiz.
Influência perceptível no canto de Tulipa Ruiz, Andreia Dias, Paula Mirhan (Filarmônica de Pasárgada), Iara Rennó, Rhaissa Bittar, Mariana Degani (ex-Loungetude46) e outras cantoras da atual cena paulistana, Ná Ozzetti foi convidada para esta entrevista pelo Banda Desenhada. Após a sessão de fotos, que se realizou em uma tarde chuvosa na praia do Leme (RJ), fomos com a cantora a um bistrô, onde conversamos a respeito de sua carreira, influências, vanguarda paulista e a nova cena independente.

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