Ao redigir, durante as filmagens, o manifesto que deu suporte ao seu primeiro longa metragem, “O Bandido da Luz Vermelha” (1968), o cineasta Rogério Sganzerla acabou por definir o que seria conhecido no Brasil como cinema marginal: produções autorais de baixo custo, filmadas em super-oito, intencionalmente kitsch e caracterizadas pelo experimentalismo, o improviso e a colagem conflituosa de vários gêneros cinematográficos. Em seu filme, Sganzerla burilou na fala de seu personagem principal o que bem poderia tornar-se a definidora de toda a produção underground da época: “Quando não se pode fazer nada, a gente avacalha e se esculhamba”. Em contraponto à grande mídia, o cinema marginal desenvolveu uma nova estética que possui muitos pontos em comum com a atual geração da música popular brasileira. Se a comparação, a princípio, pode parecer estapafúrdia, basta ater-se à história e a alguns trabalhos destes novos artistas para perceber as semelhanças. Forjada distante do grande mercado e em um processo quase artesanal, a neoMPB, assim como o cinema marginal, criou uma nova identidade à produção cultural do país, assumidamente fragmentada e caótica. Mesmo sem a virulência do cinema marginal, encontra-se certa dose de agressividade e de humor corrosivo em artistas como Rafael Castro, Lulina, Otto, Andreia Dias, Karina Buhr, Tatá Aeroplano, Clarisse Falcão e Banda Uó. As tensões entre a alta e a baixa cultura, tão presentes nas produções da Boca do Lixo, são devidamente replicadas pela neoMPB, visto os trabalhos de Cidadão Instigado, João Brasil, Bonde do Rolê, Felipe Cordeiro, Gaby Amarantos, ou mesmo as regravações de hits da música romântica, do forró ou do pagode, como “Garçom” por Filipe Catto, “Você não vale nada” por Tiê e “Poderosa” pela dupla Letuce. O experimentalismo também se revela um ponto em comum, ao se ouvir os álbuns de Rabotnik, Guizado, Isadora, 1/2 Dúzia de 3 ou 4 e Metá Metá. Por fim, mas por certo o mais importante, vê-se nesta geração a mesma capacidade inventiva do cinema marginal, ao tomar para si, na maioria das vezes de forma precária, a quase totalidade da produção de seus trabalhos. Assim, Kiko Dinucci tornou-se o principal responsável pela arte de seus álbuns e de seus projetos paralelos; Tulipa utilizou um de seus trabalhos em Paintbrush como capa de seu disco de estreia, “Efêmera”; Ava Rocha, munida de sua experiência na área de audiovisual, criou diversos clipes experimentais para sua banda, AVA, assim como também o fez a dupla Letuce. De forma artesanal, com uma liberdade conquistada por sua independência e ciente de sua transitoriedade, a neoMPB tem aí as suas mais pertinentes e revolucionárias características que, verdadeiramente, criaram uma nova estética dentro da música popular brasileira.
Exemplo desta comparação, a dupla carioca Letuce, mesmo que não intencionalmente, parece renovar determinados valores apontados por Sganzerla na década de 60: desde o discurso sexual desconcertante de suas composições, passando pela forte presença da estética kitsch, até a confecção de clipes autorais e de baixo custo. Formada em 2008 pelo músico Lucas Vasconcellos e pela multiartista Letícia Novaes, a banda se tornou um dos principais nomes da cena independente carioca. O casal, um misto de Rita Lee e Roberto de Carvalho com Serge Gainsbourg e Jane Birkin, lançou seu primeiro álbum, “Plano de Fuga Para Cima dos Outros e de Mim” (Bolacha Discos) em 2009, seguindo para uma série de shows pelo país, incluindo os festivais Grito do Rock (Volta Redonda) e SWU (SP), e também pelo exterior -Paris e Londres-. Em 2011, a banda foi indicada ao Prêmio Multishow na categoria “Experimente”, além de ter sido uma das Apostas MTV. Neste mesmo ano, no Festival de Gramado, a dupla recebeu o prêmio de Melhor Trilha Sonora Original de Longa Metragem pelo filme “Riscado”, de Gustavo Pizzi. Em 2012, através de um financiamento coletivo, o casal lançou seu segundo álbum,“Manja Perene”, e participou de “A Take Way Show”, série de filmes do cineasta e fotógrafo francês Vincent Moon, lançado em seu site, “La Blogothèque”. Também conhecidos por suas múltiplas atividades, Lucas e Letícia foram os responsáveis pelos projetos “Churrasquinho Sunset” - onde interpretaram sucessos radiofônicos nacionais e internacionais - e, juntamente com qinhO e a bateria da escola São Clemente, pelos anticonvencionais bailes carnavalescos do “Bloco dos Clementianos”. Atualmente, a dupla se apronta para o projeto “Palavras Cruzadas”, onde, acompanhada pelo cartunista André Dahmer e pela poeta Bruna Beber, transformará o centro cultural Oi Futuro Ipanema em uma grande embarcação e apresentará um repertório inédito e temático.
Mesmo ocupados com tantos projetos e uma intensa agenda de shows, Lucas e Letícia receberam o Banda Desenhada em sua casa, no Rio Comprido. A longa e bem humorada entrevista, devidamente acompanhada por um bœuf bourguignon e algumas garrafas de vinho, se deu em meio à comemoração de aniversário do primeiro ano do site. Nela, o casal fala de sua carreira, influências, da banda Binário – precursora de grande parte da atual cena carioca -, e a relação com a crítica e seus colegas de geração.