E O TEMPO CANTA

fotos: daryan dornelles
Durante décadas, foram fatos incontestáveis a baixíssima presença e o preconceito em relação à figura feminina no espaço composicional da música popular brasileira. Esse quadro só foi alterado a partir dos anos 90, com o surgimento de nomes como Adriana Calcanhotto, Zélia Duncan, Arícia Mess, Suely Mesquita, Mathilda Kóvak e Érika Martins. A expansão do mercado independente desencadeada na década seguinte fez esse número ampliar, decretando, enfim, o término dessa longa misoginia. Entretanto, paralelamente, desenvolveu-se em boa parte dos jornalistas e críticos musicais uma aversão sintomática às novas cantoras que se dedicavam exclusivamente ao trabalho de intérprete. Uma aversão provocada tanto pela quantidade desmedida de vozes que surgiram no rastro de Marisa Monte e Cássia Eller quanto pelos inúmeros tributos que impregnaram o mercado fonográfico. Coube então às novas intérpretes reiterar suas convicções estilísticas e confiar na qualidade de seus trabalhos. Assim, nadando contra a corrente, Marcia Castro, Fabiana Cozza, Juçara Marçal, Simone Mazzer e Lívia Nestrovski, dentre outras vozes femininas, passaram a conquistar seu devido espaço e, aos poucos, obter reconhecimento.

Filha do compositor e violonista Arthur Nestrovski, Lívia nasceu em Iowa City, nos Estados Unidos. Voltou definitivamente ao Brasil em 2002, onde formou-se em canto popular pela Unicamp.Ainda na universidade, conheceu Arrigo Barnabé, com quem passou a se apresentar em shows como Clara Crocodilo e Salão de beleza. Em 2009, formou um duo com o guitarrista Fred Ferreira, apresentando-se em diversos palcos do país, além de Colômbia e França. Lívia também fez parte do grupo Cumieira, com o qual gravou, em 2010, o CD Festa da Cumieira (Cumieira). Em 2011, integrou-se ao grupo vocal BeBossa, realizando apresentações ao lado de Roberto Menescal e Wanda Sá. Em 2012, atuou nos espetáculos Dolores Duran por Lívia Nestrovski, Dalva & Herivelto — Sinfonia de pardais e Ary Barroso — Pra machucar meu coração. No mesmo ano, lançou com Fred Ferreira o CD Duo (independente/Tratore), interpretando composições de Tom Jobim, Milton Nascimento, Kurt Weill, José Miguel Wisnik, entre outros. Em 2013, defendeu sua dissertação de mestrado em musicologia sobre o scat singing na música brasileira. Nesse mesmo ano, gravou, ao lado de Arrigo Barnabé e Luiz Tatit, o álbum De nada mais a algo além (Atração Fonográfica), lançado em 2014.

Uma das vozes mais interessantes do atual cenário musical brasileiro, Lívia Nestrovski aceitou o convite do Banda Desenhada para esta entrevista, realizada no Hotel Sesc Copacabana. A cantora nos falou a respeito de seu trabalho de intérprete, influências, vanguarda paulista e universo acadêmico.

BD — Nos últimos anos, houve uma grande valorização das cantautoras em detrimento das intérpretes. De alguma forma, isso chegou a afetar o seu trabalho?

LÍVIA NESTROVSKI — Pois é. São poucas intérpretes. Atualmente, existe uma pressão para que você componha. É algo muito geracional. Não sei o porquê disso, mas acredito que cada artista tenha uma natureza. Eu nunca tive esse desejo de compor. Mas quando escolho repertório, penso nos arranjos e canto, também estou me envolvendo em um processo composicional. As pessoas esquecem, mas arranjos e repertório também precisam ser criados... assim como a interpretação. Venho a minha vida toda me dedicando a isso: trabalhar a voz e as suas possibilidades, pesquisar repertório, improvisar... Cantei jazz por muito tempo. Gosto muito de todos esses processos. Mas a minha criação vem a partir de algo já feito. Esse é o meu lance. É engraçado... sempre houve os compositores e os intérpretes, mas hoje, sinto que a mídia não acha isso mais interessante. Você envia o seu disco para os jornalistas e acaba ouvindo: “Ah, tá... mas não é autoral?!” Como se a criação de arranjos e a interpretação não fossem autorais! Veja só! E isso se tornou uma questão. Não é que eu não queira compor, mas não pode ser algo impositivo. As ideias precisam fluir. Se um dia eu fizer uma composição e achar o resultado satisfatório, ok. Mas, atualmente, não me vejo nesse papel...

BD — Talvez essa pressão se dê por conta da saturação do mercado, não? Nos anos 90, com o sucesso de Marisa Monte e Cássia Eller e o surgimento de dezenas e mais dezenas de cantoras que a mimetizaram, ficou um pouco difícil de ver com bons olhos o surgimento de mais uma intérprete... 

LÍVIA — Realmente não sei. Eu era muito criança nessa época... Nasci em 1988! [risos]. Quando Tom morreu [8 de dezembro de 1994], eu mal sabia quem ele era. Essa década, para mim, é um pouco desconhecida, há uma lacuna, entende? Minha casa sempre foi muito musical, mas eu ouvia mais música erudita, jazz e música brasileira dos anos 60, 70... Então, sempre achei essa divisão de papéis, entre compositores e intérpretes, algo absolutamente normal. Nunca pensei que precisasse fazer as duas coisas. Acho que existem tantos caminhos possíveis! É claro que eu ouvi bastante essas cantoras que você falou. Adorava o [Verde, Anil, Amarelo,] Cor-de-Rosa e Carvão [1994], da Marisa Monte. Foi o disco da minha pré-adolescência. E nunca tive essa sensação de que aquela linguagem havia se esgotado, sabe? Porque se o intérprete é bom, não tem por que você se cansar dele. Além do mais, sempre tivemos tantos compositores... Tom Jobim talvez tenha sido muito regravado, mas ele sempre será regravado e merece ser regravado, entende? Há tantas possibilidades de criação a partir de sua obra... Da mesma forma, você precisa ter algo a dizer quando decide gravar composições próprias. Você não vai gravar algo seu só por gravar, não é? Só porque é a sua música! Afinal, mesmo que sejam inéditas, elas podem ser muito redundantes.


BD — Uma das dificuldades em ser intérprete hoje em dia é a questão dos valores pagos às editoras por conta dos direitos autorais. Você enfrentou algum problema relacionado a isso?

LÍVIA — Um pouco. Eu e o Fred tivemos que lutar bastante pra conseguir diminuir os gastos com direitos autorais. Ser um duo é algo bastante econômico... conseguimos gravar as músicas em apenas dois dias, praticamente ao vivo... mas, em se tratando de direitos autorias, o disco se tornou muito caro. Se fôssemos pagar o primeiro valor orçado, antes de negociar, teríamos gasto duas vezes mais. Era algo em torno de 16 mil reais por onze músicas. Tivemos que negociar. Fizemos uma parceria com um selo associado à ABMI, que é a Associação Brasileira da Música Independente. Isso diminuiu muito os nossos gastos. Foi ótimo. Mas, ao mesmo tempo, é um pouco estranho que haja uma diferença tão grande. Porque um artista independente que não está sendo patrocinado por nenhuma empresa deve pagar mais do que um artista que tem um selo ou uma gravadora o auxiliando? Não faz sentido!

BD — Talvez isso tenha levado os novos artistas a compor e evitar esses pagamentos abusivos...

LÍVIA — Eu não sei se foi esse um dos motivos... Talvez tenha sido mais uma influência do rock dos anos 80...

BD — Sério? Os artistas da sua geração não costumam falar dessa influência...

LÍVIA — Eu posso estar equivocada, mas a linguagem do rock é muito presente na produção atual. Ela é mais direta e você consegue compor uma música ótima com apenas três ou quatro acordes. Há uma facilidade técnica e vocal. As melodias são mais simples, o que não é muito costumeiro na MPB tradicional. Você pode observar uma sofisticação maior nas canções de Noel [Rosa], Chico [Buarque], Milton [Nascimento]... são harmonias mais complexas e letras mais arquitetadas. Há todo um processo ali que te exige uma dedicação maior, um estudo... Mesmo nos anos 30, quando os músicos tocavam de forma mais intuitiva, você percebia esse cuidado. Havia a escola do choro, com  harmonias e melodias rebuscadas. Quando você decide estudar essas escolas, até desiste de tentar fazer algo parecido! [risos] Talvez seja um pouco por aí: uma geração que ouviu muito o pop rock dos anos 80 e 90 e por causa disso tenha familiaridade com esse tipo de linguagem. Porque o que a gente ouve hoje é isso! Parte dos artistas da nova geração, inclusive independente, harmonicamente é assim. Ela vem dessa escola, do pop rock, e não daquela MPB mais tradicional. O que não quer dizer que eles sejam ruins ou piores do que outros artistas. Apenas é uma linguagem mais acessível. Pegue uma canção da Legião Urbana! Algumas têm apenas dois acordes e utilizam uma levada básica que você aprende na primeira aula de violão. E é maravilhoso! Mas, inegavelmente, é muito mais fácil você tocar Legião Urbana do que Tom Jobim ou Edu lobo.

BD — Alguns intérpretes também costumam reclamar da qualidade dos letristas atuais...

LÍVIA — Exatamente. É claro que há letristas muito bons nesta geração, mas sinto que há muita gente falando coisa demais e que não acrescenta nada. Pode ser um pouco por ansiedade, sabe? Há uma pressão muito grande para que você tenha um disco. Até por conta das facilidades de gravação de hoje em dia, lançar um álbum se tornou algo banal. Então, as pessoas se atropelam nesse processo. Às vezes, tudo acontece rápido demais e você perde a chance de dar maior coesão ao seu trabalho... não se dedica tanto às letras, aos arranjos... Não dá tempo de amadurecer e consolidar as ideias. E esses processos, pelo menos para mim, são muito importantes. Por exemplo, eu e o Fred levamos cinco anos para definir as 11 músicas do nosso disco. Testamos bastante o repertório e os arranjos. Sempre mexíamos em alguma coisa e fazíamos shows para ver se dava certo ou não... é um processo que exige paciência. Apesar de o mundo estar muito frenético, o nosso trabalho precisa ter um ritmo próprio, uma identidade. E, em alguns casos, é necessário um pouco mais de lentidão. Acredito que o artista que respeita esse processo chega a resultados incríveis...


BD — Há poucas músicas inéditas no álbum de vocês, não?

LÍVIA — Temos duas músicas inéditas: “O paraíso”, do Rudi Vilela, e “Saudade”, do Djaco Loredo. Os dois são amigos nossos e excelentes compositores. Também gravamos “Mortal loucura”, do [José] Miguel Wisnik. Ela foi feita para um espetáculo do Grupo Corpo [Onqotô, 2005]. A canção é relativamente nova, embora tenha sido criada a partir de um poema do Gregório de Matos, escrito no século 17. Nós quisemos criar essa dinâmica temporal no repertório, mas é complicado porque as pessoas, quando vão ouvir o disco, só se atentam para as canções mais antigas. Realmente, fizemos releituras de Milton, Tom, Sérgio Ricardo... mas não foi só isso. Nunca passou por nossa cabeça essa ideia de selecionar apenas compositores consagrados. O repertório possui uma coesão, seja pelos arranjos, seja pelas letras ou pelas harmonias. E isso é o que nos interessa.

BD — Apesar de vocês optarem por regravar alguns clássicos, os arranjos e a sua própria voz vão para uma região bastante peculiar. Parece haver um flerte com o experimentalismo...

LÍVIA — Sim. Em “Jogral” e “Mortal loucura”, chego quase a gritar e, em “Youkali”, do Kurt Weill, vou a um agudo sujo. Poderia ter empostado a voz, mas não quis. Queria algo um pouco mais teatral e que tivesse uma relação direta com o rock, que fosse visceral... Sou apaixonada pelo Jeff Buckley! Ele era um cantor e guitarrista dos anos 90. Morreu muito cedo, mas lançou um disco maravilhoso: Grace [1994]. Ele utilizava a voz de modo especial. Quando a gente começou a preparar o repertório do Duo, eu e o Fred estávamos ouvindo bastante o seu disco. Acho que ele me marcou muito. O seu canto era agudo e estridente, bastante singular. Mas sem ser um exibicionismo vocal. Isso é muito interessante. Eu não vou para o agudo para mostrar o tamanho da extensão da minha voz. E sim porque sinto a necessidade de ir para aquela região em determinados momentos, durante o processo de exploração da música, quando ela te sugere novas possibilidades. Nesse sentido, o nosso disco é bastante experimental, tanto no arranjo quanto na interpretação. Ele não é um disco gostoso de se ouvir, que você põe de fundo para ficar conversando com os amigos. Nosso trabalho não tem essa pretensão, de ser música de entretenimento. Também não quisemos fixá-lo a um gênero específico ou a uma escola composicional. Ele foi concebido para ser um disco de arranjo, onde recriamos as canções a partir de uma pesquisa de timbres e do diálogo entre guitarra e voz. O Fred estudou música contemporânea, se graduou em composição e mexe muito bem com timbres, de uma forma muito pouco convencional. Ele já passou por muita coisa: começou tocando guitarra, depois passou a tocar viola de arco, foi para a orquestra, teve uma relação forte com o choro...  tocou todo tipo de música! [risos]... Então, quando ele pensou os arranjos para o Duo, não se limitou àquelas escolas harmônicas mais tradicionais, associadas ao choro e ao jazz. E isso é muito importante para o nosso trabalho. Porque você estuda, aprende harmonia e as sequências dos acordes, aprende a fazer arranjo, aprende a cantar, a colocar voz, a ter técnica... mas isso tudo qualquer um pode fazer, basta que se proponha a estudar. Já a experimentação, a busca de uma linguagem, é algo mais particular. Você não pode ficar preso a um padrão, a um molde, não importa se é erudito ou popular. O Fred, de alguma forma, consegue fugir do lugar comum e criar aqueles arranjos que eu adoro.

BD — De certa forma, o seu nome está associado à vanguarda paulista. Assim como outros artistas que são descendentes diretos dessa cena. Poderia falar um pouco sobre isso?

LÍVIA — É engraçado. Porque o meu pai e a minha mãe vêm da música erudita. O meu pai era crítico de música clássica e, tanto ele quanto minha mãe, tocavam violão clássico. Na verdade, ela tocava teorba, que é um instrumento renascentista. E aí, sempre havia ensaios lá em casa.  Mas não havia qualquer ligação com a vanguarda paulista. Esse contato veio muito tempo depois. É claro que nós também ouvíamos música popular, mas meu pai só veio a tocar violão popular bem mais tarde. Eu já era adolescente quando ele voltou a pegar o violão e a fazer saraus em casa. Foi aí que conheceu o Wisnik e passou a ser associado à vanguarda. Depois, teve uma matéria na Folha de S.Paulo, se não me engano, em que ele aparecia ao lado de todo esse pessoal. Mas ele não fez parte do início dessa história. Nos anos 80, a gente nem morava em São Paulo. Quando meu pai era bem novinho, chegou a tocar com o Kleiton & Kledir, no Festival Universitário da MPB [1979]. Foi ali que tomou contato com o trabalho do Arrigo. Ele ficou louco com aquele som e o dois se tornaram amigos. Mas ainda morava em Porto Alegre e, um pouco mais tarde, foi para a Inglaterra e os Estados Unidos, só retornando a São Paulo na década de 90. Só nos anos 2000 que ele começou a trabalhar com o Wisnik, o Luiz Tatit e a Ná [Ozzetti]. Enfim, por causa disso, acabei sendo associada à geração de filhos da vanguarda. O que é engraçado, porque não tive contato com eles. Não éramos amigos de infância, entende? Para você ter uma ideia, só fui ouvir Arrigo no primeiro ano da faculdade! A mesma coisa vale para o Tatit e o Itamar [Assumpção]. Eu tinha uns 18 anos. Mas quando parei para ouvir, fiquei enlouquecida! [risos] Foi um choque! Mesmo tendo sido feito décadas antes, havia ali alguma estranheza, um ineditismo, que me atraiu muito. Principalmente o Arrigo. Senti um interesse imediato. Queria entender aquele negócio! [risos] Acho muito chato quando você pega um disco e nos primeiros segundos de audição já consegue imaginar como será ele todo.  Isso é muito cansativo. Gosto de sons que me provoquem. Não precisa ser supermoderno. Não é isso. Você pode criar uma música cuja estrutura se baseie em padrões bastante tradicionais, mas que, ao mesmo tempo, seja criativo e provoque um estranhamento. E foi esse estranhamento que me atraiu na obra do Arrigo e do Tatit. É por isso que gosto tanto de cantar suas músicas.


BD — E como surgiu o convite para participar do disco De nada mais a algo além?

LÍVIA — Foi um acaso da vida! [risos] Em 2008, o Arrigo foi para a Unicamp como artista residente. E, para desenvolver seu projeto, precisou de alguns cantores. Ele estava montando um espetáculo com vários alunos de composição, dança e teatro e necessitava de alguns cantores para interpretar as músicas dos alunos e uma peça composta por ele. Eu já era apaixonada pelo seu trabalho e estava fazendo algumas experimentações na área de canto quando fui selecionada, juntamente com a Luísa Toller, para interpretar a música do Arrigo. Foi uma experiência incrível! Durante as semanas de ensaio, eu só respirava aquela música. Só pensava naquilo. Não conseguia nem dormir! [risos] Porque era difícil, né? Ainda mais no início, quando você ainda não se adaptou àquela linguagem. Eu ficava enlouquecida contando os compassos. A maior parte da música era 13/8, uma contagem toda quebrada! E as melodias eram louquíssimas! Eu deitava para dormir e ficava sonhando com a contagem! [risos] E a partir dessa experiência, ele passou a me chamar para fazer outros trabalhos: participei de uma remontagem de Clara Crocodilo e também do show em comemoração aos seus 60 anos. Foi nessa época que ele começou a fazer as parcerias com o Tatit. E aí, em uma das apresentações, trouxe uma dessas músicas para que eu cantasse.  Chamava-se “De cor”. E eu adorei! Daí, alguns meses depois, ele chegou com o convite para participar do CD.


BD — E como foi gravar ao vivo um repertório tão difícil?

LÍVIA — Olha, não cheguei a participar do processo de produção do disco, então não sei dizer porque exatamente ele foi gravado dessa forma, mas talvez tenha sido por uma questão de tempo e de dinheiro. Eu realmente não sei. Mas nem reclamei! [risos] Era pegar ou largar. E eu não gosto de desistir das coisas. Participaria desse projeto de qualquer jeito! [risos] Foi uma loucura! Porque gravamos tudo em dois dias de shows. Eu estava terminando o mestrado, totalmente envolvida com samba canção, Dolores Duran, Leny Andrade, Beco das Garrafas... e fazendo a produção dos shows de lançamento do Duo, que tinha acabado de chegar da fábrica. Precisei arranjar tempo para aprender essas músicas totalmente insanas do Arrigo e do Tatit! Para completar, só fizemos quatro ensaios! Imagine como eu estava! [risos] Foi tudo muito doido. Viajei pra São Paulo, fiz três ensaios, ouvi os arranjos pela primeira vez, voltei ao Rio, defendi a tese e dois dias depois estava gravando o disco! [risos] É por isso que não consigo compor! [risos] Porque gasto todo o meu tempo estudando as músicas para cantar. Para poder fazer todos esses projetos que eu adoro. Porque as músicas precisam estar fluindo, sabe? Elas exigem um cuidado, um tempo só para elas. E isso não é fácil. Ainda mais se tratando de músicas do Arrigo e do Tatit! [risos] São canções maravilhosas, geniais, mas difíceis de serem interpretadas. Você precisa se acostumar com aquela linguagem, com aquela melodia, com todas as personagens que aparecem nas letras e com as próprias letras, que são dificílimas... Mas, apesar desses contratempos, me senti extremamente lisonjeada por ter sido convidada e participado desse projeto.

BD — A sua voz, em alguns momentos, lembra bastante a da Ná Ozzetti. Ela é uma referência para você?

LÍVIA — Sim, claro. Eu adoro a Ná! Sou apaixonada pelo Estopim [1999]. Sempre ouço e acho muito intrigante. Além disso, nos palcos, ela é uma artista bastante carismática. Mas não somos tão próximas, apesar de ela ter cantado com o meu pai. É que, nessa época, eu estava estudando na Unicamp. Então, quase não tive chances de vê-la ao vivo. Fui ao lançamento do Embalar [2013], aqui no [Teatro] Rival, trocamos umas palavras e perguntei se poderia dar um disco à ela. Entreguei e aí, tempos depois, ela fez um comentário elogioso pelo Facebook [levemente envergonhada]. Foi muito inesperado. Fiquei embasbacada! [risos]

BD — E que outras vozes a influenciaram?

LÍVIA — Eu ouço de tudo. De tudo, de tudo, de tudo... Acho importante manter os ouvidos abertos. Além do Jeff Bukley, ouvi bastante as cantoras mais tradicionais, como Elis, Ella [Fitzgerald], Dolores, Leny e Sara [Vaughan]. Também ouvi Joni Mitchell, Bob McFerry, Milton Nascimento... Gosto muito de como o Milton coloca sua voz, das experiências que faz. A Flora Purim tem um trabalho igualmente interessante. Nos anos 70, ela fazia umas coisas que me remetiam muito ao rock... um modo estridente de cantar, meio gritado, lembrando um pouco a Janis Joplin. Também gosto bastante do Demetrio Stratos. Ele foi um puta cantor, mas não é muito conhecido... Cantava rock no início da carreira e depois foi para um lado totalmente experimental. Assim como o Jeff Bukley, morreu muito cedo. Fiquei chocada quando o ouvi pela primeira vez. Ele fazia umas experimentações vocais muito loucas. A Tetê [Espíndola], a Vânia [Bastos], a Suzana Salles... todas essas cantoras da vanguarda também foram bem importantes para mim... mas acho complicado afirmar o que me influenciou diretamente... porque nem tudo o que você ouve fica. Por exemplo: por mais que eu goste de Maria Bethânia, não acho que tenha uma influência dela. Paralelamente, ouvi muita música barroca, por conta de meus pais, além de músicas de outros países, como o México, o Paquistão, a Coreia... Acho que isso foi muito forte na minha formação. Também ouvi muita música contemporânea, música eletroacústica, música espectral e outras músicas doidas. [risos] E toda essas informações acabaram me levando a novos caminhos e à experimentação.

BD — Parte das suas referências e toda a sua formação musical passa pelo universo acadêmico. Não teve receio de ser engessada por essa estrutura?

LÍVIA — Tive uma sorte enorme de ter tido algumas pessoas na minha vida, na minha formação, que fizeram com que a academia e o estudo da música fossem algo totalmente libertador. Porque, no fundo, a técnica serve para te libertar, para que você tenha ferramentas para experimentar e criar. Então, sempre vi a universidade por essa ótica. O estudo nunca foi algo penoso para mim. Adoro pesquisar. Mas não tenho interesse na academia como instituição. Eu fugi um pouco disso. Mesmo sempre tendo lido bastante, não sou por natureza uma pessoa disciplinada, que senta e produz textos e mais textos. Sou um pouco rebelde nesse sentido. Mas toda a minha família vem da academia, desde os meus bisavós. Muitos foram professores, intelectuais... então, o universo acadêmico nunca foi algo problemático para mim. Gosto de lecionar. Eu realmente me envolvo. Dou aula em uma faculdade e tento trazer para o ambiente universitário o que aprendi: que a música e o seu estudo são libertadores. Não há uma escola mais correta do que a outra, existem diversos gêneros musicais que merecem ser estudados e experienciados: o rock, o pop, o funk, o rap... tudo é material de trabalho, entende? Por que as pessoas ainda acham isso estranho? Por que ainda há tanta oposição? Não sinto necessidade em fazer polarizações. Mas penso assim porque tive pessoas ao meu redor que também possuíam essa visão e que me ensinaram a ver dessa forma. A Regina Machado, que é professora de canto da Unicamp, foi uma delas. E, claro, os meus pais, que sempre foram muito incentivadores desse tipo de pesquisa, do gosto pelo novo, de não ter medo de provar e apreciar o que é diferente ou desconhecido.


comente