da sérvia, com amor

fotos: daryan dornelles
Mesmo que não se fale tanto a respeito, o produtor sérvio Mitar Subotić, o Suba, foi, ao final dos anos 90, um dos principais responsáveis pela criação de uma nova estética na música popular brasileira. Radicado em São Paulo, desenvolveu um trabalho inovador ao unir elementos da música popular à eletrônica. União esta que também foi utilizada por diversos artistas, como Otto, Max de Castro, DJ Patife, Rica Amabis, Beto Villares, BID, Lucas Santtana, Arícia Mess, Katia B, Cibelle, Bebel Gilberto, Bossacucanova, DJ Dolores e outros tantos vinculados ao selo belga Ziriguiboom e às gravadoras Trama e YB Music. Ao lançar em 1999 o álbum “São Paulo Confessions” (Ziriguiboom), Suba também teve o mérito de recolocar a música brasileira nas paradas mundiais, algo que até então era exclusividade da bossa nova. Deste disco, repleto de participações especiais, despontaram duas novas cantoras que vieram a se destacar na música brasileira: Cibelle e Katia B. Toda essa movimentação no cenário mundial se tornou mais nítida quando Suba produziu, ainda em 1999, “Tanto Tempo” (Ziriguiboom), o bem sucedido álbum de Bebel Gilberto. Entretanto, com a sua morte precoce e a saturação natural do mercado, o que se viu nos anos seguintes foi certa rejeição por parte da crítica – principalmente a brasileira – a um tipo de música que acabou sendo rotulada de lounge e que se deteriorou rapidamente ao ser utilizada à exaustão por uma infinidade de artistas de primeira hora que se deslumbraram com a possibilidade de se inserirem no mercado internacional. Contudo, o trabalho dessa geração foi importantíssimo para a incorporação de diversos elementos à música brasileira, como o dub, o trip-hop e o drum and bass, influenciando nomes da atual música popular, como Céu, Bruno Morais, Curumin, Gui Amabis, Claudia Dorei, Anelis Assumpção e Dois em Um.
Uma das artistas seminais dessa estética, a carioca Katia B começou sua carreira aos 17 anos, ao participar como atriz do musical “A Chorus Line”. Chegou a atuar no cinema, em filmes como Bar Esperança (1983) e Ópera do Malandro (1987), e em minisséries e novelas para TV. Também foi personagem ativa na fundação do Circo Voador, nos anos 80 no Rio de Janeiro. Fez parte também da Falange Moulin Rouge de Fausto Fawcett, com quem gravou o CD “Básico Instinto” (1993). De forma independente e virtual, lançou seu primeiro disco em 1999, fazendo a sua prensagem apenas no ano seguinte. Nele, além de composições próprias e parcerias, interpretou canções de João Donato, Herbert Vianna, Vitor Ramil, entre outros. Neste mesmo ano, foi lançado o álbum de Suba, “São Paulo Confessions”, onde participou na faixa “Segredo”. Três anos depois, participou do disco em homenagem ao produtor sérvio, intitulado “Suba Tributo”. O mais autoral de seus trabalhos, “Só Deixo Meu Coração Na Mão de Quem Pode”, foi lançado em 2003. Com ele, Katia realizou diversas apresentações na Europa e no Japão, vindo a lançar, no ano seguinte, seu primeiro DVD, homônimo ao disco, com a apresentação do espetáculo no instituto Itaú Cultural, em São Paulo. Em 2007, lançou “Espacial”, onde regravou dois clássicos da MPB: “Cais”, de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos, e “Amor em Paz”, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Neste período, fez participações especiais nos álbuns de Plínio Profeta, Vitor Ramil e Marcos Suzano. Lançou em 2012 seu quarto trabalho, “Pra Mim Você é Lindo”, onde privilegiou seu lado intérprete ao cantar músicas de Lamartine Babo, Caetano Veloso e Jacques Dutronc. Ao longo da carreira, Katia destacou-se também como compositora, fazendo parceiras com diversos músicos, como Fausto Fawcett, Lucas Santtana, Teresa Cristina, Suely Mesquita, Rubinho Jacobina, JR Tostoi e Jam da Silva.
Em meio aos ensaios para a sua apresentação no Auditório Ibirapuera (SP), Katia aceitou o convite do Banda Desenhada para esta entrevista, realizada no café da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio. Ali, conversamos longamente a respeito de sua carreira, Suba e a cena independente do país.

BD – Ao que parece, o Suba foi muito importante para a sua geração, ao definir uma estética que influenciou diretamente diversos artistas, como você, a Cibelle e a Bebel Gilberto. Poderia falar de sua experiência com ele?

Katia B – Para mim, o Suba foi um divisor de águas. Em todos os sentidos, inclusive afetivo. Eu o conheci em 99. Nós éramos grandes amigos e tínhamos muitas afinidades. Ele não chegou a produzir meu primeiro disco, mas o mixou. Eu chamei o Marcos Cunha e o Plínio Profeta. Eles estavam começando a produzir e o Suba nos ensinou muito ao pegar todo aquele material e dar um acabamento. Depois participei de seu álbum, “São Paulo Confessions”. Queria muito que ele tivesse produzido o meu segundo disco... era o meu desejo. O meu primeiro era muito experimental, eu havia saído do Fausto [Fawcett], já havia passado por muitas bandas e me apresentado em diversos espetáculos musicais. Alguns achavam que eu era atriz, outros bailarina... Decidi então me focar na música, comprei algumas coisas e montei um estúdio bem legal em minha casa. Comecei a operar aqueles equipamentos. Sentia que estava mais do que na hora de fazer um trabalho autoral e me definir esteticamente. E o Suba foi importantíssimo para isto. Contaram para mim que havia um iugoslavo morando em São Paulo que tinha tudo a ver comigo. Eu liguei para ele e marcamos de nos encontrar em um fim de semana. Peguei um avião e fui à sua casa. Foi quase um blind date! Só que de trabalho! [Risos]. Ele comprou as minhas ideias e veio para o Rio mixar o disco no antigo estúdio do [Roberto] Frejat. Era lindo vê-lo trabalhar, vê-lo mexer nas músicas, criando texturas, atmosferas... Era esse o caminho que eu queria para o meu som, esse processo de experimentação, algo lisérgico, repleto de efeitos, capaz de levar o ouvinte para uma viagem. Um som delicado e feminino. E com referências não só brasileiras, mas de várias partes do mundo.O Suba fazia isso de forma esplêndida. Trabalhar com ele foi muito bom para mim, foi muito bom para descobrir o que eu realmente queria, me localizar enquanto cantora  e me posicionar em um cenário musical. Minhas músicas foram colocadas em várias compilações na Europa e a Madonna chegou a tocar o “São Paulo Confessions” na abertura de uma de suas turnês. Fui à Sérvia duas vezes por conta do Suba. Na primeira, fui em uma homenagem que a sua mãe prestou nos dez anos de sua morte. As pessoas de lá são muita parecidas com a gente, sabe? Muito mesmo. Houve uma ligação muito forte. Na segunda vez, fui ao Exit, um festival em Novi Sad, cidade onde o Suba nasceu. O Exit é um dos maiores festivais de música da Europa. Os shows acontecem durante quatro dias em uma fortaleza do século 18 com diversos palcos simultâneos. Kraftwerk, Patti Smith e a Cibelle também se apresentaram naquele ano [2009]. Havia pequenas, médias e grandes atrações, além de tendas com DJs de música eletrônica. Então, eu realmente devo muito ao Suba. E não só eu. Como você mesmo disse, ele também foi muito importante para a Bebel e a Cibelle. 

BD – Mas, com o passar do tempo, essa mistura de bossa nova com eletrônica acabou sendo vista com maus olhos pela crítica. Você chegou a sentir isso na pele? A Bebel, muito provavelmente, foi a mais afetada por isso...

Katia B – Quando cheguei ao ponto em que queria, quando ficou claro para todos que eu era uma cantora, também constatei que havia uma necessidade de organização, que as pessoas precisavam categorizar a minha música, definir qual era o meu tipo de público...não achei interessante ir contra isso. Todos nós estamos sujeitos a rótulos. Há uma necessidade de se contar a história, de analisar a evolução de um artista ou de um gênero. O primeiro disco da Bebel [“Tanto Tempo”], produzido pelo Suba, vendeu mais de um milhão de cópias! Foi o disco brasileiro de maior sucesso na história da música brasileira. Mais do que os de bossa nova! Isso é muito relevante e não pode ser deixado de lado. Eu fui às gravações, a vi colocando voz...  a Bebel fez o disco como quis, do jeito que ela e o Suba acreditavam. Esse seu trabalho serviu para abrir muitas portas, vários outros artistas conseguiram se lançar no exterior por conta do seu sucesso. A única coisa que me incomodava eram as associações que eram feitas: chegaram a me chamar de “a nova Bebel”! Isso foi muito chato. Eu tinha lançado meu primeiro disco antes do dela e até hoje não consigo ver tantas semelhanças assim em nossos primeiros trabalhos. O meu som era muito experimental. Não tinha essa ligação tão forte com a bossa nova, como era o caso da Bebel... Eu realmente não sei o peso que é estar no lugar em que ela está, não sei quais são as responsabilidades ou com quantos problemas ela tem que lidar. Nunca tive essa experiência de estar no mercado pop. Não sei se é algo fácil. Você tem que ser muito tenaz para não cair em algumas armadilhas. Talvez, ao chegar nesse ponto, seja inevitável utilizar alguma fórmula que você imagina que dará certo. Mas não há uma fórmula, entende?  Não estou dizendo que este seja o caso da Bebel e nem quero aqui fazer qualquer julgamento. Não sei exatamente o porquê dessas críticas. Não sei se ela tentou entrar em algum formato ou se repetiu. Porque todo mundo que cantava mais cool e fazia uma instrumentação econômica, flertando com o eletrônico, poderia ser alvo dessas críticas. E nós de fato temos esse tipo de canto, que remete a Nara Leão e a Astrud Gilberto. Mas acho que sou assim por limitação mesmo, e não porque quero! [Risos]. Comecei a cantar com a Bebel aqui no Parque Lage, em um curso ministrado pelo [grupo teatral] Asdrúbal [Trouxe o Trombone]. Fui muito influenciada por ela, pela musicalidade incrível que ela tem. Eu ouvi agora o seu disco novo [“Bebel Gilberto in Rio”]. Ela está cantando lindamente. E tem esse espírito de Rio de Janeiro, Arpoador, Olimpíadas...  algo um pouco mais formatado. Mas não tenho tanto distanciamento assim para poder falar a respeito do seu trabalho. A Bebel tem muito a ver com a minha história, com a minha inspiração. No meu caso, sou uma cantora independente, não tenho nenhuma meta de vendas para alcançar, não tenho nenhuma obrigação. Então, posso me permitir trilhar um caminho bastante pessoal, continuar a minha evolução, evolução como compositora, como cantora... correr riscos e fazer experimentações, buscando novos encontros, nova parcerias.


BD – Você, ao lado de outros artistas que surgiram nos anos 90, foi uma das primeiras cantoras a seguir o caminho da independência. Naquela época, essa opção era bem mais arriscada do que agora, não?

Katia B – Mas sabe que foi muito interessante?A minha geração surgiu exatamente no período das mudanças do mercado. Ela não pegou nem a época das grandes gravadoras e nem a internet com as redes sociais já estabilizadas. Foi um trabalho hercúleo para se criar uma cena. O meu primeiro disco, de 1999, foi um dos primeiros que você pôde acessar pela internet. Só depois é que fiz a primeira tiragem, totalmente independente. No segundo, “Só Deixo Meu Coração Na Mão de Quem Pode”, houve uma parceria, do meu selo com a MCD. A gravadora vivia um momento muito interessante, com um ótimo catálogo de música eletrônica e com artistas com um sabor musical muito parecido com o meu. Além disso, ela trabalhava seus artistas no exterior. O meu disco foi lançado no Japão, na Inglaterra, na Alemanha e nos Estados Unidos. E em cada lugar com uma capa diferente! Foi sensacional! E o disco vendeu umas 15 mil cópias. O que para uma artista independente é um bom número. Eu viajei bastante por conta dele, com a gravadora me dando algum suporte. Mas, ainda assim, sempre mantive o controle sobre a minha obra, sempre fui dona das minhas músicas. Talvez por conta disso não tenha sentido o baque. Não estava acostumada com o esquemão das majors, então não precisei me readaptar ao mercado de uma hora para outra, coisa que aconteceu com vários colegas e amigos. Eu tenho uma visão muito de operária, entende?Ser artista para mim é um ofício. Não é um trabalho onde eu fico à espera de inspiração enquanto alguém resolve todos os problemas por mim. Acho muito importante estar presente em todas as etapas de produção dos meus discos, dos meus shows... Claro que tenho momentos mais inspirados e outros menos. Mas eu acredito que a inspiração vem a partir do instante em que você se põe em movimento. Às vezes, fico uma ou duas horas tocando e aí vem uma ideia. Eu preciso disso. Faz parte da minha natureza. Gosto desses processos, dessa busca, dessa construção.


BD – Você chegou a reclamar em diversas entrevistas da precariedade da cena carioca. Há tanta falta de espaços assim? Os cachês continuam sendo um problema? 

Katia B – Esse capítulo é difícil... Se eu pensar muito nisso vou acabar ficando em casa. Tudo é muito artesanal. Cada show é uma luta. Ele tem que ser construído e não é fácil fazer um circuito com a banda toda. Precisamos sempre buscar apoio para isso. Ao mesmo tempo em que é legal, não dá pra viver só de editais! Acho lamentável que o artista independente tenha tanta dificuldade em colocar seu trabalho nos veículos de comunicação, nas rádios... Tem tanta gente fazendo música boa no Brasil! Como fazer as pessoas saberem disso? Como divulgar nossas agendas? É uma infraestrutura muito precária. Conseguimos produzir discos que não devem em nada ao cenário internacional, mas não somos capazes de fazer uma turnê com uma boa produção, com uma boa divulgação. Eu ouço frequentemente: “Poxa, eu não soube que você se apresentou por aqui”. Mas está no site, no Facebook... mas não nas mídias tradicionais. Elas ainda são muito importantes para o desenvolvimento da carreira de um artista. Só que poucos conseguem alcançá-las. Então tudo fica muito frágil. Temos que fazer muitas parcerias. Fazer turnês em grupo... Vou me apresentar agora no Auditório Ibirapuera com participação da Ná Ozzetti e do Edgard Scandurra! Olha que maravilha! Eu gostaria de ter conseguido ampliar um pouco mais o meu público. Acredito que muita gente gosta do meu trabalho, mas não é fácil divulgá-lo...



BD – Mas e no exterior? Não há um bom retorno? Por exemplo, Lucas Santtana, Céu e Tulipa [Ruiz] parecem estar conseguindo circular e divulgar seus trabalhos com bastante sucesso...

Katia B – Eu já fui algumas vezes. No segundo e terceiro discos, me apresentei no Japão, Alemanha, França e fiz uma passagem rápida pela Inglaterra. Mas depende de muitos fatores. Eu tive um momento de abertura muito interessante, mas depois eu mesma deixei de lado, porque tive um filho e demorei pra lançar o disco seguinte. E aí tudo foi mudando rápido demais. Agora tenho que me reconectar, redescobrir como rodar o meu trabalho. Todo mundo pergunta se eu fiquei mais conhecida lá fora do que aqui. Eu não sei.  A história com o Suba me ajudou muito. Saí no The Gardian, meu segundo disco ganhou quatro estrelas...foi superlegal. Mas acho que para você realmente fazer uma história no exterior, você tem que morar lá. Porque não são pequenas turnês que irão realmente te abrir para um mercado, para um público que não seja somente de brasileiros. Você tem que estar ali. Alguns poucos conseguem isso pontualmente. A Adriana Calcanhotto conseguiu construir uma história interessante em Portugal. Talvez essa turma esteja conseguindo também. O que é formidável.

BD – No segundo disco você gravou “Só deixo o meu coração”, do Fausto Fawcett. Como é cantar uma música de um compositor com um estilo tão marcante quanto o dele? Como consegue dar a sua identidade a uma canção do Fausto?

Katia B – Acho que esse foi o disco que mais me marcou, por conta dessa faixa com o Fausto. Várias pessoas já me contaram que têm essa letra na porta de seus armários! É o meu grande sucesso underground! [Risos]. É incrível, tem muita gente no Brasil que a conhece. Foi uma canção encomendada. O Fausto gosta de trabalhar assim. Então, eu dei um tema: o ciúme. A letra fala: “Porque não quero teu ciúme que é o cúmulo/ Ciúme é acúmulo de dúvida, incerteza/ De si mesmo...”. E aí ele me chegou com cinco folhas manuscritas! Fiquei uns quatro meses trabalhando naquele material. Como eu ia falar aquela letra gigantesca sem parecer a Fernanda Abreu? Porque a parceria dos dois sempre foi muito forte, muito marcante, e eu precisava criar um jeito próprio para falar aquilo. Eu me lembro de ir ao estúdio, grávida do Vicente... a faixa foi totalmente working in process. Deu um trabalho! Eu refazia até achar o tom, a intenção. A partir dessa minha intenção tudo foi construído. Fui gravando em partes. Cada dia eu descobria um pedaço novo, falava de um jeito... o Plínio entrou e trouxe o violão de sete cordas, trouxe a harmonia. E foi um barato! Porque quando fui botar a voz no disco, eu simplesmente não conseguia repetir o que tinha feito na demo! Então não regravei! Ficou a versão que eu cantei sentada no sofá, com a cabeça baixa, o microfone aqui [aponta para o queixo] e com vazamento. [Risos]. Quando fomos mixar, o Antoine Midani ficou louco porque a primeira parte foi gravada em um dia e a segunda 15 dias depois! Mas não tinha como mexer!


BD – Uma das características do seu trabalho é a pluralidade no repertório, inclusive ao cantar em outros idiomas. O que, hoje em dia, é algo bastante corriqueiro na música brasileira. Como você vê esta questão?

Katia B – Eu sempre tive dificuldade em arquitetar esse tipo de coisa: “eu quero ser uma cantora assim ou assado”. Até hoje eu não consigo fazer isso. Vou atrás do que me toca, buscando a melhor linguagem para expressar o que eu sou e o que estou sentindo. Muito do que eu aprendi em música veio através dos Beatles, eu os ouvia muito. Por causa deles fui para a Inglaterra aprender inglês. Eu ouço muita música em inglês. Gosto de cantar e compor nessa língua. Talvez porque me ajude a falar coisas que em português eu não conseguiria. Em meu último álbum, tem uma música tristíssima chamada “Where is Your Heart?”que eu nunca faria se fosse em português. Eu me sentiria supercafona! [Risos]. Em inglês eu consigo ter um distanciamento e ser outra pessoa. Posso trabalhar meu lado teatral ao cantar em outros idiomas, incorporando personagens, brincando um pouco com a intérprete que existe dento de mim. Mas acabo me questionando: “Será que devo gravar? A música é em inglês...”. É nesse momento que eu vou buscar a opinião das pessoas com quem trabalho: os produtores, o Felipe Abreu, que é meu professor de canto... e eles me incentivam: “Por que não? Por que não cantar em outras línguas?”. O Felipe inclusive me sugeriu que gravasse “Le Temps de L'Amour” [Jacques Dutronc / Lucien Morisse / André Salvet]. Eu a cantei em 2006, quando me apresentei em Paris, e depois a incluí em meu repertório. Sinto que sou um pouco atriz ao cantá-la, há um clima de cabaré, que é algo que eu adoro. Tem a ver com o meu som, tem a ver com a minha expressão. Acho que a minha performance no palco quebra um pouco essa história de cantora cool, de cantora de bossa nova. Desde o meu primeiro disco, há sempre algum elemento oriental. No primeiro disco havia “Tuareg” [Jorge Ben Jor] e “Beijos de Beco” [Katia B / Laufer / Fausto Fawcett], que é uma letra do Fausto e  que a melodia é totalmente oriental [cantarola]. Nesse meu último álbum eu gravei uma música em iídiche. Desde criança ouvia música judaica. Não sou de uma família muito religiosa, mas tenho essa memória. Recentemente, cantei uma música em hebraico que gosto muito, no Midrash [Centro Cultural, RJ]. Eu comecei a chorar! Deu um negócio! Aí decidi pesquisar com alguns músicos, o Jaques Morelenbaum, o Leonardo Fuks... e cheguei ao iídiche, que é uma língua que os meus avós falavam. Ela é bem feminina e é usada hoje em dia pelos mais velhos e religiosos. Continuei pesquisando e encontrei essa música, “Bei Mir Bist du Schon” [Jacob Jacobs / Sholom Secunda / Sammy Cahn / Saul Chaplin]. Ela tem uma história incrível! Originalmente foi composta para um musical, em 1932. Só que foi um fracasso, a peça saiu de cartaz super-rápido, mas a música começou a ser tocada nos bares e clubes de jazz. Um letrista americano resolveu então fazer uma versão em inglês, as Andrews Sisters a gravaram e virou um megasucesso. A música arrecadou milhões, mas o autor que a compôs tinha vendido os direitos e nunca ganhou nada!A música teve dezenas de gravações: Ella Fitzgerald, Judy Garland, Glenn Miller... aí decidi cantá-la em  iídiche com um pedacinho em inglês. Para mim, a questão da língua tem muito a ver com uma busca, de querer despertar determinadas sensações no ouvinte. Não é uma questão mercadológica. Quero evoluir enquanto cantora, quero descobrir coisas. Eu estudo as línguas, cheguei a ter aulas de iídiche e de francês. Vou fundo nas minhas pesquisas e tomo o maior cuidado ao gravar essas músicas.  

BD – Em seu último álbum, você se aproximou de um dos principais nomes da cena carioca atual, a dupla Letuce. Como foi esse contato? 

Katia B – Eu fui um dia assistir ao show da Letuce. Vi no jornal e fui. Acabou o show, fui falar com eles e entreguei meu disco. A partir daí a gente começou uma colaboração. Eles me chamaram pra cantar em dois shows e depois o Lucas [Vasconcellos] começou a dar aula de música para o meu filho. Foi assim que começou a nossa ligação. O Lucas me ensinou bastante coisa. Ele é muito desapegado e eu sou muito organizada, vou coletando as ideias, as experiências, e vou construindo. Foi muito interessante lidar com a sua forma de trabalho. A gente ensaiava a música de um jeito e quando ia gravar ele já havia mudado tudo! Eu falava: “Mas Lucas, aquilo que você fez estava sensacional...” e ele me dizia: “Não, não, vamos fazer desse jeito agora!”. [Risos]. Eu precisava dessa experiência. E a gente tem uma empatia musical. Comecei também a ter aulas com ele. Quando comecei a gravar o disco, eu o chamei para produzir uma faixa, “Sete Mil Vezes”, do Caetano Veloso. Gostei do resultado e o convidei para fazer uma segunda. E acabei chamando-o para fazer uma terceira! [Risos]. Por conta disso, o Lucas entrou para a minha banda. Eu realmente acho que quando estamos trabalhando, quando estamos fazendo música, não há nenhuma diferença geracional. Na minha banda, tem o Lucas de 33 anos e o Antonio [Saraiva] de 53! Os dois têm uma diferença de 20 anos, mas quando estão trabalhando, ela deixa de existir. Um aprende com o outro. Eu realmente não acredito que artista tenha idade. Veja o Ney Matogrosso com seus 70 anos! Eu nunca escolhi meus parceiros por questão de idade ou geração... Acho que o Lucas será um grande produtor e fico muito feliz por tê-lo incentivado a montar seu estúdio e a começar a produzir. É isso o que me interessa, essa troca de experiências que nos faz seguir em frente.


BD – E como foi ser parceira de Teresa Cristina? Um nome, a princípio, muito ligado ao samba. Seu próximo trabalho estará relacionado a este gênero, não é?

Katia B – Está vendo? Eu e a Teresa temos praticamente a mesma idade e fazemos coisas muito diferentes. O que não impede que haja um ótimo diálogo entre nós. Essa parceira foi um barato! A gente se encontrou em algum evento social e começamos a conversar. Falei que estava compondo, ela também estava, e sugeri fazermos alguma coisa juntas. Não foi papo furado. A gente trocou e-mails e a Teresa pediu que eu enviasse alguma ideia. Mandei então uma música que já tinha começado a fazer com o Dé Palmeira. Cinco minutos depois ela me ligou e disse: “Que lindo! Adorei! Quero fazer!”. Marcamos um encontro em minha casa, ela veio, trouxe um bolo e passamos a tarde toda conversando [Risos]. Depois  fomos ao estúdio,  ela terminou a letra e mudamos um pouco a melodia. E, enfim, nasceu a música. Aí, resolvi convidá-la para cantar na faixa. Ficamos experimentando. A gente gravou vários e vários takes. Para mim é muito importante ter essa vivência. Eu cultivo isso, gosto de receber os meus parceiros em casa. Às vezes só para uma conversa, às vezes já para meter a mão na massa. Cada um é de um jeito: Rubinho Jacobina, Jam da Silva, todo mundo passou por esse processo de trabalho. Depois eu chamei a Teresa para cantar no show. Foi ótimo. Ela realmente está querendo experimentar, fazer coisas diferentes. Assim como eu. Quero cantar samba, cheguei a compor alguns. Minha mãe ouvia muita música brasileira, muitos sambas. Ela me levava às rodas e à Marquês de Sapucaí. Eu adorava! Enfim, tenho muito respeito e cuidado por esse universo. Desenvolvi esse novo projeto junto com um antigo parceiro, o Marcos Suzano, e um novo, o Luiz Filipe de Lima. É um projeto paralelo, chamado “Coletivo Samba Noir”, em que saio da minha zona de conforto e interpreto clássicos da música brasileira. É uma releitura, um olhar bem particular sobre os sambas pré-bossa nova, os sambas de dor de cotovelo, melancólicos. Quero trabalhar o ambiente sonoro destas canções, auxiliada pelos elementos eletrônicos que o Suzano irá trazer e somá-los com a incrível sabedoria musical do Luiz Filipe de Lima. As apresentações terão uma ambientação cênica que me ajudará a penetrar neste universo musical. Vamos fazer shows e lançar um CD. Serão dois anos de trabalho e começará em janeiro. É um projeto muito legal, pois finalmente eu me sinto uma cantora com recursos para entender essas músicas, que já foram interpretadas pelas maiores vozes da música brasileira. Acho que agora eu já tenho uma vivência, uma maturidade para brincar com isso.

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