a peleja do diabo com o dono do céu

fotos: daryan dornelles

Decididamente, nem só de canções, sol e mar vive o Rio de Janeiro. Cada vez mais conturbada e paradoxal, a cidade vem assistindo nos últimos anos ao desenvolvimento de uma cena que pouco dialoga com as suas alardeadas tradições musicais. Com influências diversas, Duplexx, Chinese Cookie Poets, DEDO, Cadu Tenório, Bemônio e outros tantos nomes passaram a integrar um circuito que, aos poucos, vem se fortalecendo, seja através de eventos como o QuintaAvant ou de festivais como o Antimatéria e o Circo Digital.
Idealizado inicialmente como um projeto solo de Paulo Caetano, Bemônio é um dos mais novos nomes desta cena. Seu primeiro EP, “Daemos”, foi lançado virtualmente em janeiro de 2012. No mesmo ano, Paulo disponibilizou para download os discos “Vulgatam Clementinam” e “Ascoltare Durante Il Pranzo Dopo La Noia”. Ainda em 2012, lançou “Serenata”, integrando o baterista Gustavo Matos ao projeto. Em maio de 2013, foi a vez do EP “OPSCURUM” e, em setembro, seu trabalho mais recente, “Santo”. Mixado e masterizado pelo músico norte-americano Steve Austin (Today Is the Day), “Santo” teve participações especiais de Paulão (Seletores de Frequência), Marcelo Rodrigues (Endoparasites) e das bandas portuguesas Besta e We Are The Damned.
Donos de um dos sons mais radicais que já passou pelo Banda Desenhada, Paulo Caetano e Gustavo Matos aceitaram o nosso convite para a entrevista, que foi realizada no Espaço Ipiranga, em Laranjeiras (RJ). Em meio aos ensaios, a dupla conversou conosco a respeito de sua carreira, influências e cena carioca.

BD – Começando por um ponto polêmico, foi surpreendente vocês aceitarem o convite para esta entrevista, principalmente após ler alguns comentários que o Paulo publicou em seu perfil no Facebook, onde ele não se mostrava muito afeito à MPB ou à neoMPB...

Paulo Caetano – Eu não tenho nada contra a MPB. Até gosto, mas não é a minha essência. Além disso, há muitas coisas nessa nova MPB que, particularmente, não curto. Só isso. Eu tenho amigos que tocam, que fazem parte dessa cena. E eu respeito todos. Mas não pertenço a ela. O Bemônio tem um som muito mais visceral do que essa nova MPB. Quando eu escrevi no Facebook que não fazia parte disso, havia também uma crítica ao Rio: a cidade só abre as portas para o estilo que estiver em voga. E isso acontece desde quando eu me entendo por gente. É algo muito complicado. Só os muito famosos têm público e não há espaços para você que está começando. Isso é muito doido, porque o que mais vejo na cidade são espaços. Há vários lugares alternativos para se fazer shows. É só abrir um pouco a cabeça, entende? Estava conversando com o Bernardo [Oliveira] sobre isso: precisamos descobrir novos lugares. Há vários galpões abandonados por aí...  No final de semana, o centro da cidade fica às moscas, podemos fazer ocupações! Lugar é o que não falta! Não precisamos nos apresentar em casas de shows. Podemos muito bem nos apresentar em... supermercados! Açougues! Imagina o Bemônio em um açougue! [Risos]. A carne pingando e os ganchos batendo e reverberando! Ia ser maravilhoso! O grande problema no Rio é a burocracia. Você precisa de autorização pra tudo! E ela não vem fácil. Tiro o chapéu para o Bernardo. Costumo chamá-lo de “meu guru”, ele é um cara para quem eu abaixo a cabeça, que respeito muito, tanto pelo seu conhecimento musical quanto pelo seu caráter. Ele quer realmente promover a cena. Vive criando eventos e busca novos espaços para nos apresentarmos, sejam alternativos ou não. O Antimatéria foi fantástico! E acabamos de tocar no Circo Voador, no Festival Circo Digital! Esse evento foi muito importante para todos nós, para acabar de vez com certos estigmas. Por exemplo, se o Mogwai, que é uma banda experimental, já tocou no Circo, porque não poderíamos nos apresentar lá? Napalm Death e Cannibal Corpse também já passaram por lá. Fishbone, que é uma das bandas de rock mais importantes e influentes, levou umas cem pessoas para o Circo Voador! A mesma quantidade de pessoas que foram nos assistir no Audio Rebel! E aí?


BD – Além da falta de espaços e da ausência de público, muitos artistas reclamam dos cachês...

Paulo Caetano – Isso é muito triste. Mas eu não entrei nessa pelo dinheiro. Não é minha meta. O dinheiro é consequência. Quando o dinheiro é a meta, pode ter certeza, vai dar merda. Eu não sou um vendido, como muitos artistas que estão por aí. O Bemônio não tem essa pretensão. Mas precisamos viver, precisamos pagar nossas contas. Por exemplo, não teríamos problemas em fazer uma trilha sonora para um comercial da Claro, mas será que a Claro teria culhão de nos chamar? Vai dar merda, não vai? Porque é lógico que a gente não vai fazer uma propaganda bonitinha. Será o nosso som, feito do nosso jeito. 

Gustavo Matos – A gente podia pelo menos parar de perder dinheiro, né? [Risos]. Mas eu até acho legal esse lance de fazermos um som que foge da imagem clichê do Rio de Janeiro. O Bemônio não deixa de representar esta cidade, entende? Mas a representa partida, caótica e com centenas de problemas. Sinto orgulho de estar fazendo um som tão sombrio e sujo em um lugar considerado tão belo e ensolarado. 

Paulo Caetano – Trabalhar com música no Rio é complicado. Para você ter uma ideia, a gente nem recebe cachê! E, por isso, as pessoas acham que o que fazemos é hobby ou brincadeira, mas não é. Ou pelo menos não deveria ser. Mas, aos poucos, as coisas estão acontecendo, há uma receptividade, inclusive da grande mídia. Saímos n’O Globo sem termos feito qualquer esforço. Não procuramos jornalista nenhum. Conheço o Bruno Natal [jornalista e documentarista carioca] desde os tempos da faculdade e nunca cheguei nele para pedir qualquer coisa. 

Gustavo Matos – Sim, as pessoas estão sendo generosas. Foi o Steve Austin que nos procurou, disse que havia gostado do nosso som e se ofereceu para colaborar com a gente. O Paulo entrou em contato e ele acabou masterizando e mixando o “Santo”.  

Paulo Caetano – A gente não esperava mesmo. E isso nos motiva bastante, nos dá ânimo para continuar com o projeto. Além do Steve, John Zorn, Mick Harris [baterista do Napalm Death] e James Plotkin também entraram em contato com a gente. Foi fabuloso! Mas o Bemônio ainda precisa de muito mais infraestrutura. Estamos buscando uma gravadora que nos dê um suporte, entende? Queríamos lançar um vinil, mas não temos grana. Precisaríamos desembolsar dez mil reais para fazer um disco com no máximo 50 minutos, sendo que o nosso último tem mais de uma hora! 

Gustavo Matos – Teria que ser duplo! Ou seja, é mais grana ainda!


BD – Essas reclamações são recorrentes em artistas que não se encontram no maisntream.

Paulo Caetano - Sim. Acho que nos anos 90 havia mais possibilidades de um som não comercial ganhar destaque nas mídias. Foi um período muito rico. Eu me lembro do Chico Science [& Nação Zumbi] misturando MPB e música regional com um rock pesadíssimo! Eu fui a um show do Mombojó que mais lembrava o do Helmet, com aqueles riffs! Quando vi uma das primeiras apresentações do Los Hermanos, pensei: “Esses caras curtem John Zorn e Mr. Bungle”. Mas, com o tempo, essas referências foram se perdendo e muitas bandas dessa safra preferiram seguir por um caminho mais fácil, que traria algum sucesso. As minhas críticas em relação à nova MPB também partem daí: porque eu gosto muito quando uma banda tem uma verdade, uma essência, e toca aquilo que realmente gosta, não importando se é comercial ou não. Hoje em dia, se alguém me chamar para um show do Los Hermanos ou do Nação Zumbi, eu não vou. Porque eles não são mais os mesmos. Essas bandas se desgastaram. E parece que se desgastaram pelo simples fato de não estarem mais interessadas em tocar. Todas seguem o mesmo fluxo, deixando para trás as influências mais pesadas, como se estivessem preocupadas em não perder público. E isso é lamentável. Porque todas essas bandas têm uma história. Não se jogam referências no lixo! Se você descartá-las, você perde a sua identidade. Eu sinceramente acho isso. Você pode se reinventar, mas... [Pausa]. Quando eu critico a nova MPB, quando falo que não faço parte disso, é porque não quero compactuar com essas ideias, entende? É engraçado... O Bemônio tem tudo para afastar o público! Nosso som tem influências de black metal, noise, experimental, jazz... Eu realmente não esperava por esse retorno que estamos tendo. Pessoas do meio musical que eu jamais pensei que fossem gostar do nosso som vieram nos parabenizar! É que nos trabalhamos com algo tão denso e pesado... mas aí, chega a Letícia Novaes, do Letuce, e nos elogia?! Não acreditei: “Pô, mas você gostou de verdade?!”.  Ela falou: “Porra, olha o preconceito! Eu gostei pra caramba!”. [Risos]. Fiquei muito feliz com isso. Já vi show do Letuce e sei que eles tem um estilo completamente distinto do nosso, por isso considerei bastante o que ela nos disse. 

Gustavo Matos – Foi foda! Ela é um amor de pessoa! E veio conversar com a gente.


BD – É importante vocês falarem isso. Porque o conceito de neoMPB ou nova MPB é muito impreciso. Você poderia muito bem estar se referindo à geração mais nova, como Letuce, Tono, Tulipa [Ruiz] ou Metá Metá...

Paulo Caetano – Eu respeito pra caramba todos estes que você citou. O Letuce e o Tono, por exemplo, mesmo fazendo uma música mais pop, têm um trabalho de pesquisa e exploração musical. O Bruno Di Lullo é talentoso pra caralho! E a Letícia Novaes é maravilhosa! Manda muito bem. Se ela quiser cantar com a gente, pode vir, vamos adorar. Nós não somos xiitas. Não ouço só Slayer, Morbid Angel, Carcass e Mayhem. Também não queremos apenas metaleiros de camisa preta batendo cabeça em nossos shows. Não é isso. A nossa intenção é abranger o maior público possível com o som que fazemos, com as nossas referências. A ideia é apresentar ao público uma espécie de trilha sonora onde ele irá mergulhar em nosso universo. É um som pesado, mas não é algo repulsivo.

Gustavo Matos – É aquela história: quem faz música experimental não ouve só música experimental. E quem faz música pop não ouve só música pop. Eu mesmo! Um dos discos que tenho mais ouvido nos últimos tempos é o “Reflektor”, do Arcade Fire! [Risos]

Paulo Caetano – Eu vi o show do Arcade Fire no TIM Festival [2005]! Foi do caralho! E sabe qual a banda que eu mais gosto? Pode botar aí, Duran Duran! Fui sozinho no show do Duran Duran no Vivo Rio e adorei! Eles são uma influência para mim! Só que eu não consigo traduzi-la diretamente. [Risos]. Mas já tentei, no “OPSCURUM”, a ideia inicial era fazer um som anos 80, totalmente new wave! Mas não conseguimos.

Gustavo Matos – É, tentamos pegar essa ideia, mas... [Gargalhadas]. O pessoal deve olhar pra gente e achar que somos uns animais, sacou? Pô, cara, é óbvio que eu ouço metal pra caralho, eu troco figurinha direto com o Paulo: “Ouve essa porra aqui! Olha só esse negócio que eu baixei!”. Mas o que eu mais ouço mesmo é rap. Rap de todas as épocas: Eric B. & Rakim, J Dilla e Chief Keef. Isso me influencia pra caralho! Porque hip hop é ritmo puro e é muito rico, se mistura fácil com outros estilos, além de trabalhar com samples e colagens. E volta e meia, eu ouço Caetano [Veloso], [Gilberto] Gil... mas é bom dar uma zoada na MPB de vez em quando, né?  Tem uma galera que se leva muito a sério.

Paulo Caetano – A gente é metaleiro desde moleque! E, como qualquer metaleiro, nós também já fomos zoados. Porque espanta. É verdade. Assusta mesmo! Minha esposa não gosta de muita coisa que eu ouço. Faz parte, você gosta ou não gosta. Tem muita gente que acha que o que fazemos é ridículo, que é uma ignorância. Cheguei a ler um comentário de um leitor d’O Globo que se indignou por termos aparecido no jornal! E eu acho isso irado! É importante ouvir o que as pessoas pensam, mesmo que você discorde delas. Mas também não é sair por aí dizendo que isso ou aquilo é uma merda!


BD – Ouvindo o que vocês acabaram de falar, parece que essa geração é bastante predisposta ao diálogo, não? É só observar as colaborações entre os músicos experimentais e os artistas mais voltados à canção...

Gustavo Matos – As barreiras estão sucumbindo, né?

 Paulo Caetano – Nós nunca nos abstivemos do diálogo. Para você ter uma ideia, o nosso sonho é que o Zé Ramalho cante com a gente “Mistérios da Meia Noite”! 

Gustavo Matos – É nosso sonho mesmo! Verdade! E muito antes dessa parada de “Zépultura” [Zé Ramalho se apresentou ao lado do Sepultura no Rock in Rio deste ano]!  Quando entrei na banda, há um ano, a gente foi beber e o Paulo falou: “Mermão, sabe com quem eu sonho fazer uma parceria? Zé Ramalho!”. Porra, é o meu sonho também, cara! 

 Paulo Caetano – Porque alguns artistas da MPB têm muito a ver com o nosso trabalho. Não é uma questão de ser do metal ou ser disso ou daquilo. Não evitamos ninguém. Mas prezamos muito a identidade do nosso som. Esse é o nosso combustível, é o que nos faz seguir adiante.


BD – Apesar de vocês flertarem com muitos estilos, a imagem de vocês, principalmente por conta do figurino, está muito atrelada ao metal. Porque essa escolha?

Paulo Caetano – Depende, se você observar a arte dos nossos discos anteriores ao “Santo”, verá que cada um deles segue um caminho, traduzindo um momento específico de nossa carreira. A capa do “Ascoltare Durante Il Pranzo Dopo La Noia” é uma foto de um salgado num boteco! Já a capa do “Serenata” tem um clima meio Aphex Twin... No “OPSCURUM” queríamos trabalhar com cores, como se elas representassem a variação de estilos musicais que havia no álbum. O que permeia todos os nossos trabalhos, na verdade, é o drone e a ideia da ritualidade. Nos primeiros shows, ainda não havia uma indumentária. A primeira máscara que usei era uma do Homem Elefante. Na verdade, uso máscaras porque não gosto de aparecer. Sou tímido, tenho vergonha mesmo. No início, eu tocava olhando para baixo, não queira ver ninguém. Basicamente isso. Claro que há também uma relação com a proposta da banda, com a questão do ritual. Mas não é uma regra. O nosso interesse é criar uma ambientação, uma espécie de instalação sonora. Em “Santo”, quisemos trazer alguns elementos do metal, então resolvemos usar um figurino que fizesse esse link. Mas se algum metaleiro xiita for ao nosso show, vai achar estranho. Porque além de trabalharmos com esses elementos de forma alegórica, a intenção é gerar um ruído. Nada é claro no Bemônio. Podemos ter uma capa de disco superpop e o som ser o mais pesado do mundo. E isso é pensado, entende? Não queremos ser óbvios. Para você ter uma ideia, “Santo” também tem referências de jazz, mas a arte remete ao metal old school

Gustavo Matos – As nossas famílias vêm de uma tradição católica, saca? Quando a minha mãe leu a matéria sobre o Bemônio n’O Globo, ela chegou a falar: “Meu filho, olha, eu já sabia que você era doente, mas esse seu amigo, Paulo Caetano, é mais doente do que você!”. [Risos].

Paulo Caetano – A minha mãe também é uma católica fervorosa. E não aceita o que eu faço hoje em dia. Ela fica muito triste, chega a chorar...  acha que eu tenho pacto com Satanás!

Gustavo Matos – É um lance basicamente estético, com elementos teatrais, mas... “Yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay [Risos]. Eu me interesso muito por ocultismo. Estou sempre lendo a respeito. 

Paulo Caetano – É óbvio que temos a referência do metal, mas também temos muito de experimental. Não sentimos necessidade de nos rotular. O que a gente quer mesmo é continuar com o nosso som e com esse clima ruim.  E só! [Risos].


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