a hora da mu dança

bixiga 70 | primeira fileira, da esquerda para direita: mauricio fleury, cris scabello, rômulo nardes, décio 7, daniel gralha  | segunda fileira, da esquerda para direita: marcelo dworecki, gustávo cék, cuca ferreira, douglas antunes | fotos: daryan dornelles

De vez em quando, o Banda Desenhada retoma certas questões pertinentes à atual cena musical paulistana. Uma das mais delicadas a ser tratada é a ideia de vínculos estéticos entre os artistas desta cena, o que provoca normalmente grande discussão e, por vezes, embates acalorados. Mesmo que seja impossível classificar a cena como um movimento ou algo que o valha, salta aos olhos o diálogo e a integração de boa parte dos músicos que a compõem. O fato é que traços desse intenso convívio reverberam na produção destes artistas, seja por conta das assumidas afinidades estéticas ou pelo caráter cooperativo da cena, onde os mesmos instrumentistas participam e deixam a sua marca em diversas bandas e projetos, colaborando tanto no campo composicional quanto nas questões harmônicas e de arranjo. Sendo talvez o melhor exemplo disso, os dez integrantes do grupo Bixiga 70 dialogam intensamente com artistas como Pipo Pegoraro, Leo Cavalcanti, Anelis Assumpção, Instituto, Iara Rennó, Peri Pane, Arícia Mess, Kiko Dinucci, Thiago França, Guizado, Curumin, Marcelo Jeneci, Bruno Morais, Emicida, Projeto Nave, Rodrigo Campos, BiD, entre outros. 
Formado em 2010, o Bixiga 70 deve boa parte da sua existência ao estúdio Traquitana, quartel-general da banda e local de idealização de diversos projetos. Composto por Décio 7 (bateria), Marcelo Dworecki (baixo), Cris Scabello (guitarra), Mauricio Fleury (teclado e guitarra), Rômulo Nardes (percussão), Gustávo Cék (percussão), Cuca Ferreira (sax barítono e flautim), Daniel Nogueira (sax tenor), Douglas Antunes (trombone) e Daniel Gralha (trompete), o Bixiga 70 lançou em 2011 seu disco de estreia homônimo. Com forte influência do afrobeat, gênero presente em muitos trabalhos de músicos dessa geração, o álbum figurou nas listas de melhores do ano de várias publicações, como a revista Rolling Stone e os jornais O Estado de S. Paulo e O Globo. Em 2012, o grupo foi uma das atrações dos festivais Rec-Beat (PE), Nova Consciência (PB), Conexão Vivo (MG) e Felabration (Holanda), além de ter tocado no palco principal da Virada Cultural paulistana.
De passagem pelo Rio por conta de sua participação no festival MoLA, os integrantes do Bixiga 70 deram esta entrevista ao Banda Desenhada após a passagem de som em um dos camarins do Circo Voador. O grupo falou da cena de São Paulo, a influência do afrobeat e de seu posicionamento em relação à música instrumental contemporânea.

BD – De uns tempos para cá, diversos artistas e bandas vêm se dizendo influenciados pelo afrobeat. Como vocês encaram isso?

Gustávo Cék – Com certeza existe um boom de afrobeat e de Fela Kuti, mas acho que, no nosso caso, essas referências passam por uma miscigenação bem abrangente. O Bixiga 70 incorpora a musicalidade de cada um de seus integrantes e tem ainda influência de candomblé e música cubana. Na percussão, há também uma pesquisa da cultura mandingue. 

Rômulo Nardes – Sim. Tem muita coisa acontecendo em São Paulo. Ela é uma cidade cosmopolita, mas você pode encontrar uma festa típica do Maranhão, além de terreiros de várias nações: Ketu, Angola, Jeje... Somos influenciados por isso tudo. Já toquei com o Décio [Décio 7] em um um grupo de tambores de música mandingue, que é tocada com djembês [tipo de tambor originário de Guiné]. Trouxemos um pouco desse elemento para o som da banda.

Daniel Gralha – Além disso, todo mundo é bastante antenado com a produção atual, com o que está acontecendo musicalmente neste momento. O Mauricio também é DJ e volta e meia traz muita novidade pra gente.

Mauricio Fleury – Da maneira como trabalhamos, o afrobeat acaba sendo usado mais como uma ideia em nosso processo de criação, como um conceito de mistura, de um som urbano com a questão ancestral. O afrobeat do Fela Kuti trazia em si ritmos eurocêntricos, anglo-saxônicos, funk, jazz e a ancestralidade africana das percussões. Então, tentamos trabalhar em um processo parecido, pensando as linhas de baixo como linhas de percussão, por exemplo.

BD – Mas pela forma como a mídia vem analisando esse fato, o que  parece é que há uma espécie de movimento ou tendência onde o afrobeat é o principal elemento. Isso deve incomodá-los, não?

Mauricio Fleury – No começo a gente tentou se dissociar disso, mas, ao mesmo tempo, a nossa história sempre esteve ligada às festas em homenagem ao Fela [“Festa Fela”]. Então, não negamos radicalmente este rótulo. Até porque fazemos uma fusão, assim como o afrobeat. E se alguém quiser nos classificar como tal, está tudo bem. Não damos nomes ao nosso som. Estamos inventando, entende? A cada música nova, somamos influências que não são vindas diretamente do Fela Kuti e do afrobeat. O que acho interessante nessa ideia de rótulo e de movimento é que isso acaba promovendo uma união. O que é supersaudável. Estamos, hoje, em contato com músicos de vários lugares do mundo que fazem um som que, de certo modo, têm algo em comum com o nosso. Morbo y Mambo, da Argentina, Abayomy [Afrobeat Orquestra], do Rio, The Souljazz Orchestra, do Canadá, o Woima Collective, da Alemanha e o Jungle By Night, da Holanda... há semelhanças, mas cada um está descobrindo e desenvolvendo o seu próprio estilo. A fusão nunca fica igual. 

Daniel Gralha – Essa história de rotular como afrobeat toda produção com alguma referência africana acaba por não revelar o que de fato está acontecendo. Diversas bandas estão utilizando elementos da música africana dos anos 60 e  70 que não necessariamente são de afrobeat, como o Mulatu Astatke, por exemplo. E mesmo dentro do que se convencionou chamar de afrobeat, existem universos bastante distintos. Em Amsterdã, tocamos com o Woima Collective, Jungle By Night, Jimmi Tenor... e cada um deles tem um trabalho bastante peculiar, seja na postura de palco, na condução do show ou no conteúdo das músicas.

Gustávo Cék – Se existe algo em comum entre nós, é a preocupação em sermos interativos, de querer que o público participe, dance, se expresse corporalmente. Isto é algo muito presente na música africana.


BD – Por falar em dançar, uma das críticas em relação a alguns grupos instrumentais é essa visão de se fazer bailes para que o público se divirta e não se preocupar com o conceito ou outras questões...

Mauricio Fleury – Mas baile é uma coisa seríssima! Existe realmente uma preocupação em São Paulo de se fazer eventos onde as pessoas se reúnam em torno da música, ocupando espaços e convivendo de forma tranquila. É uma atitude muito séria que alguns artistas estão tomando em relação à cidade. Precisamos disso, entende? Nós mesmos organizamos, lá no Bixiga, o “Dia do Grafitti” [data celebrada no mundo todo com diversos eventos em homenagem ao artista Alex Vallauri]. Fizemos o primeiro para 250 pessoas e o segundo para 2500. Agora, teve esses eventos [organizados por ONGs e coletivos envolvidos com produção cultural] na Praça Roosevelt... A população está precisando disso, de ter essa liberdade do próprio corpo, a liberdade de movimento, de se soltar, física e espiritualmente. Hoje, as pessoas vivem isoladas, soterradas de trabalho ou presas em suas casas. Criamos então essa contrapartida, por acharmos que é muito importante ter dez músicos tocando ao vivo e fazendo todo mundo se envolver, participar e dançar.

Cris Scabello – Atuamos de uma forma mais subjetiva. Não somos de ficar falando ou profetizando. Sei que existem críticas a nosso respeito por sermos uma suposta banda de afrobeat que não carrega uma mensagem política. Vira e mexe, em nossos shows, até fazemos menção ao Pinheirinho, às recentes desocupações que estão acontecendo em São Paulo e ao processo de higienização que o governo vem praticando. Mas acho que, além disso, o nosso som e a maneira como ele se desenvolve, como você disse, em forma de baile, já tem em si um caráter político e social. A nossa música se propaga de forma horizontal, tanto no palco quanto na nossa interação com o público. Sentimos muita vontade de tocar nas ruas, no chão mesmo... As pessoas respondem imediatamente a um toque, a uma palma ou a uma linha de metais... e isso reverbera. Todo mundo sabe que não é fácil trabalhar em grupo. Não foi à toa que muitos músicos deixaram de formar bandas. Atualmente, você vê muito mais as figuras isoladas, atuando como artistas solo. E nós, não. Acreditamos que é possível trabalhar em nome de um coletivo. Essa ideia é muito forte. Temos essa mensagem de respeito, de horizontalidade, de espírito de comunhão que você vê em nossos shows. Não estamos preocupados com críticas que dizem que precisamos fazer bailes para “bombar”. Fazemos o nosso som e estamos bem tranquilos e satisfeitos com isso.

Daniel Gralha – Eu tenho notado com muita clareza o quanto o público acaba adotando uma postura diferente ao perceber que o artista está se aventurando, se arriscando no palco. De alguma forma as pessoas se sentem cúmplices do que está acontecendo ali. Há uma grande liberdade em nossas apresentações, até pelo fato de nossas músicas não terem letra. Cada um cria internamente o seu próprio enredo, a sua própria história. Uma história sem palavras, mas com sentimentos, imagens, cores...

Cris Scabello – É muito importante não termos uma figura central. Não temos um bandleader, um superstar. Somos dez caras em um palco fazendo um som. Isso leva o público a ter outro tipo de experiência com a música, onde se destaca o espírito de comunhão. Acho que esse é o grande lance do nosso som.

BD – Falando em comunhão, como vocês veem a atual cena musical paulistana? Individualmente, vocês fazem parte de bandas de diversos artistas da neoMPB...

Marcelo Dworecki – Na banda, alguns acompanham a Anelis Assumpção e o Leo Cavalcanti. 

Mauricio Fleury – Também tocamos com o Lucas Santtana e hoje no show vamos receber o Bruno Morais, que é parceirão nosso. 

Daniel Gralha – Durante dois anos acompanhei a Iara Rennó com o espetáculo “Macunaíma”. E, nesse tempo em que estive com ela, participei de outro projeto seu, “Oriki In Corpore”, uma instalação feita para o Museu Afro Brasil, localizado no Parque Ibirapuera. Foi uma experiência muito interessante. De uns anos pra cá, São Paulo tem vivido uma excelente fase, com artistas muito entrosados e que influenciam uns aos outros.

Marcelo Dworecki – Sim. Esse entrosamento é muito importante. Quando tocamos no Bixiga 70, trazemos elementos das nossas experiências individuais com outros músicos. 

Cris Scabello – E levamos elementos da banda para outros trabalhos. É uma via de mão dupla. Eu toco com a Anelis [Assumpção] e, antes mesmo de o Bixiga 70 existir, ela gravou “Sonhando”, um afrobeat com sample do Fela. Mas hoje percebo que o meu “trampo” com ela é altamente influenciado pelo som que fazemos. E, pode ter certeza, tudo o que faço com ela, seja dub, rock ou rap, de alguma forma também influencia o som do Bixiga 70. 

Cuca Ferreira – Nós acompanhamos ou somos parceiros de praticamente mais da metade da cena paulistana atual. E, com certeza, temos bastantes coisas em comum. Isso é um fato. Mas para uma cena acontecer não basta ter só artistas. Tem que haver lugares para tocar, tem que ter uma imprensa disposta a comentar a respeito e tem que ter público. Eu sinto que existe uma turma, uma espécie de movimento acontecendo em São Paulo. Não só pela quantidade de artistas novos que vem surgindo, se arriscado e gravado discos, mas por haver uma integração destes elementos que propiciam a formação de uma cena. O SESC em São Paulo tem um papel fundamental nisso, por nos ter dado espaços de qualidade, garantindo público e cachês dignos. Também é importante o papel da imprensa, das rádios e dos blogs que alimentam a cena. 

Daniel Gralha – Mas, talvez contradizendo a nossa fala, nem sempre sinto a necessidade de trazer para a banda todo trabalho ou pesquisa que desenvolvo. As influências não são tão diretas assim.

Mauricio Fleury – Sim, temos várias facetas, como todo mundo. Também fazemos trabalhos que não têm nada a ver com o Bixiga 70, mas ainda assim somos as mesmas pessoas. O Marcelo, por exemplo, acabou de produzir um disco maravilhoso, o “Canções Velhas Para Embrulhar Peixes”, que é uma onda totalmente diferente, outra viagem.

Marcelo Dworecki – O “Canções Velhas” é um projeto do Peri Pane com o arrudA. É um disco centrado em canções e poesias. É um disco acústico, minimalista e totalmente contemplativo. Gravamos no Traquitana e foi mixado pelo Victor Rice, que também mixou o nosso disco. Realmente a gente acaba misturando tudo. Somos superinfluenciados por todos os cantores que a gente acompanha e, com certeza, eles também devem ser influenciados por nós. Essa é a parada. É a antropofagia versão 2012! [Risos].


BD – Bem, vocês são uma banda com dez músicos e totalmente independente. Como viabilizam tudo? Deve ser complicado na hora de excursionar, por exemplo...

Marcelo Dworecki – É a festa do improvável! [Risos]. Tínhamos tudo para dar errado, mas acabou dando certo. [Risos]. Nós nos lançamos de cabeça nesse projeto e produzimos nosso material em uma hora muito propícia. Fizemos o primeiro disco totalmente na doideira e decidimos botá-lo na rua. Demos a cara à tapa, e acabou sendo muito recompensador para todos nós.

Mauricio Fleury - Tem uma questão fundamental que nos auxilia bastante nesse sentido que é o estúdio. A banda se chama Bixiga 70 por causa do estúdio Traquitana que fica no Bixiga, na Rua Treze de Maio, número 70. A Treze de Maio é a rua principal do bairro, uma rua boêmia, musical, como se fosse a Lapa carioca. Se não tivéssemos esse estúdio, esse espaço, não conseguiríamos ensaiar toda semana. O Traquitana foi importantíssimo para a formação e manutenção da banda, inclusive em termos materiais, de grana.

Cris Scabello – Viver de música é algo bem delicado. Os dez aqui vivem disso. Podemos ter um bico ou outro por aí, mas só. É foda, ninguém aqui está cheio da grana. Estou há duas semanas no azul. Queria até comemorar esse fato inédito! [Risos]. Não estamos nas mil maravilhas por conta do dinheiro e da fama do Bixiga 70. E também não queremos isso, não é o nosso objetivo. 

Mauricio Fleury – Tudo o que estamos conquistando é fruto de muito trabalho. Desde que começamos com esse projeto, ensaiamos toda semana. Então não é uma questão de sorte. Todo mundo aqui trabalhou com música durante muitos anos antes de embarcar nessa. É uma vontade enorme de produzir somada a uma manutenção do ritmo de trabalho. Queremos aprender cada vez mais, estudar mais, trocar mais... e, assim, a gente vai levando, correndo atrás das coisas.

Daniel Gralha – Todos aqui queriam fazer uma música honesta, mais sincera e autoral. Quando o Bixiga 70 se formou, chegamos, obviamente, no sapatinho, todo mundo com muita humildade, sabendo que estávamos nos metendo a fazer um som que não sabíamos direito o que seria. Então, houve todo um trabalho de formiguinha. Eram vários ensaios por semana. Ainda hoje, surgem situações em que fazemos esses intensivos. Existe um senso de humor e respeito permeando todo o nosso trabalho. Respeito, inclusive, às limitações de cada um. Acredito que seja isso que torna esse projeto tão especial para nós e para toda a equipe envolvida. Existe satisfação em estar junto e uma entrega ao trabalho. É uma energia que as pessoas acabam sacando. Posso parecer um pouco soberbo, mas não vejo por aí essa mesma intensidade de entrega. É uma coisa bastante determinante em nosso trabalho e acredito ser esta a razão de estarmos colhendo frutos tão bons.



http://bixiga70.com/


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