e o tempo canta

fotos: daryan dornelles

Rio de Janeiro, década de 90. Um cenário bastante favorável à produção musical na cidade fez surgir bandas como Cidade Negra, Planet Hemp, O Rappa, Sex Beatles, Mulheres Q Dizem Sim, Boato, Pedro Luís e a Parede, Acabou La Tequila e Los Hermanos. Diferentemente da geração que a precedeu, esta apontava para uma união entre diversos gêneros e a música brasileira que, na década seguinte, acabaria por influenciar uma nova safra de artistas. 
Formada em 1990 por Alvin L. (guitarra), Cris Braun (voz), Vicente Tardin (baixo), Marcelo Martins (bateria) e Ivan Mariz (guitarra), a banda Sex Beatles chegou a lançar dois álbuns: “Automobilia” (1994) e “Mondo Passionale” (1995). Em 1997, a gaúcha Cris Braun fez o debut de seu primeiro álbum solo, “Cuidado Com Pessoas Como Eu”, lançado pelo selo Fullgás, de Marina Lima. Sete anos depois, trilhando o caminho da independência, gravou seu segundo disco, “Atemporal”, desta vez pelo selo Psicotrônica. Morando há seis anos em Maceió (AL), Cris lançou em 2012 seu mais recente trabalho, “Fábula”, gravado entre idas e vindas da capital alagoana ao Rio. 
Figura importante da geração 90, ao longo dos anos, Cris Braun construiu uma carreira bastante peculiar, respeitando, acima de tudo, o seu tempo. Sabendo de seu envolvimento com diversos nomes da produção musical contemporânea brasileira, o Banda Desenhada aproveitou uma de suas vindas para o Rio e a convidou para esta entrevista. Após a sessão de fotos, Cris conversou conosco no estúdio Fotonauta a respeito dos Sex Beatles, a produção independente, a sua passagem pela indústria fonográfica e o processo criativo.

BD – Você já deve ter ouvido falar que as bandas dos anos 90 têm enorme importância para a atual produção musical brasileira. Pensando assim, os Sex Beatles, direta ou indiretamente, possui certa relevância para esta cena, não acha?  

Cris Braun – Interessante. Verdade. Faz sentido. Você acabou de me dar uma luz. Não havia pensado nisso. Claro que a influência do manguebeat é bem nítida, mas os Sex Beatles? Fazíamos um link com o som dos anos 80 e 90, mas se nos analisarem ao lado do Acabou La Tequila e do Mulheres Que Dizem Sim, por exemplo, acho que realmente é possível fazer esta associação. Nos anos 90, a produção nacional voltou a resgatar um pouco mais da sua brasilidade, já que a década anterior havia sido muito marcada pelo rock. Era tudo bem mais fechado, no bom ou no mal sentido. Mas não acho que a atual geração seja influenciada apenas por nós, vejo também a presença do tropicalismo. Acredito que ela se identifique com essa época, com o Caetano e blábláblá. [Risos]. O que é ótimo! Gosto muito do que está sendo feito hoje. Acho bem bacana.

BD – E, de certo modo, outra associação que poderia se feita com esta nova geração é o fato de vocês não terem pertencido diretamente a uma grande gravadora e sim a um selo...

Cris Braun – Na verdade a gente era da Rock It!, via EMI. Já o segundo disco, saiu pela Rock It!/Virgin, um selo da própria EMI. Então, era como se estivéssemos em uma major. Tínhamos uma relação direta com o Dado [Dado Villa-Lobos, músico e então proprietário do selo Rock It!] porque éramos próximos, mas havia todos os protocolos de uma grande gravadora, toda uma estrutura e um distanciamento entre o artista, a gravadora e a assessoria. 

BD - Mas isto chegou a interferir no processo criativo da banda?

Cris Braun - Não! Nunca! Pelo menos não nos Sex Beatles. Mas quando eu saí da banda, gravei um álbum para o selo da Marina [Lima], o Fullgás, vinculado à Polygram. Aí houve um pouco de interferência. Não da Marina, obviamente. Mas tivemos que fazer dois discos! Produzi o primeiro com o William Magalhães e quando chegamos à gravadora, eles pediram para refazermos praticamente tudo! Algumas músicas tiveram de ser retiradas porque eles as consideraram muito pra baixo. Queriam que elas fossem alegres, pra cima. Sou totalmente avessa à ideia de ter que animar a festa. Acho isso cafona, mas enfim... Não que eu não goste de ritmos e de animação, mas essa obrigatoriedade de alegrar é um saco. A música é muito maior do que isso, entende? Bem, a master foi então descartada. Nem imagino onde esteja, mas ela era fantástica. Eu e Willian fizemos muitas coisas loucas.  Já o “Atemporal”, mesmo ainda sendo por um selo, foi completamente independente, e o “Fábula” é todo meu. Feito com os meus recursos e só. Fiz tudo. Contratei a Tratore para fazer uma distribuição para pessoa física, ao invés jurídica, através do sistema Fonomatic. Hoje em dia, muita gente está fazendo isto. E estou gostando bastante deste contato direto. Sempre fui uma pessoa muito direta, mais rock’n’roll. Não gosto de frescuras. Acho que artista é como um marceneiro, quando pega um trabalho, vai lá e faz. Detesto essa aura mítica criada em torno de nós! Graças a deus isso caiu. Teve o seu tempo, mas acabou.


BD – Você parece não ter problemas em dialogar com as gerações, tanto foi parceira da Paula Toller quanto gravou músicas do Wado e do Lucas Santtana. Você tem facilidade em dialogar com artistas de diferentes épocas? 

Cris Braun – Sim, acho que sou anacrônica! [Risos]. Não é há toa que penso tanto no tempo. Estou sempre lidando com esse tema. Não me sinto na obrigação de buscar e produzir uma identidade ou uma sonoridade que se restrinja a um período específico. No caso do Wado, eu o acho um letrista extraordinário. Ele também tem umas melodias muito bonitas. Mas na verdade sou muito orgânica, estou sempre respirando, olhando e pensando no entorno. Sou bastante atenta aos amigos, às músicas, ao que vejo e consumo... Tudo isso faz parte da minha estética. O fato de gravar discos de sete em sete anos acaba me levando para outros contextos e isso é muito interessante, porque interfere também nas escolhas e na forma como vou construir o disco. Por exemplo, o “Atemporal” é um álbum muito fechado, concentrado. Foi feito basicamente por mim, Gustavo [Corsi], Billy Brandão e Beni Borja. Utilizamos poucos instrumentos. Eu morava na serra, em Teresópolis, isoladíssima. Ouço muito música clássica e queria uma espécie de concerto de guitarras em que simulássemos muitas cordas. É um disco quase sem bateria. O “Fábula”, que foi feito comigo morando em Maceió, já é mais aberto. Na verdade, eu busco o que me agrada e me uno às pessoas que tenham o desejo de experimentar, de serem musicalmente livres. Ouço todo tipo de música que você imagina! E assim vou montando o meu quebra-cabeça. Algumas pessoas costumam falam: “Ah, a Cris faz rock”! Não! Eu faço o que eu quiser! Eu faço “Cris Braun”! [Risos]. Sinto-me livre para usar todo tipo de sonoridades, de ritmos... colocar no mesmo disco um samba funkeado, um tango, um samba-canção... busco todas essas referências, entende? Gosto de circular livremente pela música. 

BD – Por falar em música clássica, você trabalha em uma rádio apresentando um programa de música clássica, não é?

Cris Braun – Sim, eu tenho um programa na Rádio Educativa de Maceió. Como ouço bastante música clássica, propus ao Parque Municipal da cidade levar este tipo de música para as pessoas. E a partir desse projeto, fui convidada pela rádio para fazer um programa. 

BD – E, ao que parece, a música clássica serve de referência para o seu trabalho, não?

Cris Braun - Acredito que sim. São linhas melódicas e harmonias muito ricas. Consigo ouvir um violino e imaginar uma linha de guitarra. Não importa o período em que uma música é criada, ela irá dialogar o tempo todo com as outras, porque, no fundo, todas são atemporais. Elas podem até ser classificadas ou rotuladas por conta do seu contexto histórico, mas não se fixam necessariamente em um único tempo. 

BD – Você já falou em “Música Livre Brasileira”... Como vê essa perplexidade das mídias em lidar com a atual geração, da incapacidade de dar um nome melhor do que neoMPB ou nova MPB?

Cris Braun – A classificação é necessária para que seja possível falarmos de algo. Até para facilitar a vida do cara que vai escrever. É uma prática, não vejo nada demais nisso. Mas não consigo me situar assim. É difícil. Porque em determinado momento o jornalista pergunta: “Mas que tipo de som você faz?”. O que é que eu vou dizer?!  Você mesma vai buscar um rótulo, não tem como. Seria muito egocêntrico eu falar que faço um som “Cris Braun”. Ele vai dizer: “Porra, quem é você?!”. [Risos]

BD – Seus álbuns têm bastante coerência, parecem contínuos e, mesmo com uma discografia tão espaçada, não há grandes mudanças estéticas. Você concorda? 

Cris Braun – Também acho! Falam: “Ah, como é diferente”! Ok, é diferente, mas como sou eu, acho que há uma linha. Principalmente do “Atemporal” para o “Fábula”. Existe um pensamento estético parecido. Tenho a impressão que quando saiu o “Atemporal” algumas pessoas chegaram a falar: “A Cris Braun está se encaminhando para a MPB”. Só porque eu regravei “Nenhuma Dor”, do Caetano [Veloso] com o Celso Fonseca tocando violão. Mas eu percebo um traçado ali. No caso do “Cuidado Com Pessoas Como Eu”, ele não me pertence tanto esteticamente. Tive sorte de ter parceiros, como o Nilo Romero que foi o meu produtor e os músicos, que tinham a ver comigo e conseguiram captar as minhas inquietações. Mas não fui assim tão autora deste disco, principalmente na questão estética. Dava uma ideia ou outra, apenas. Já a parti do “Atemporal” eu me tornei mais independente. Os discos passaram a refletir como eu realmente penso música. 



BD – Ser independente e ter uma discografia relativamente pequena nunca a afligiu?

Cris Braun - Não. Para mim é um aprendizado. Estou lidando com a independência de forma gradativa. Nunca tive contratos longos. Nem na época do Sex Beatles. Só no primeiro álbum, quando estava muito inserida no sistema, é que fiquei bastante ansiosa: “Passou um ano... será que eles não vão renovar o contrato? Tá tocando na rádio? Tem CD em loja? Ai meu Deus!”. Foi ali que tive meu último momento de angústia em relação à música. E também foi ali que decidi que não queria mais isso para mim. A partir de então, todos os meus tempos são naturais. Mas quanto à sobrevivência é outra história... Se você quer viver só de música aí é fogo. Por exemplo, estou levando quase seis meses para produzir um show porque não tenho como pagar os músicos para os ensaios. Entretanto, não me angustio mais com isso. A idade já me alivia dessas dores. E também o que garante que você terá algum retorno financeiro se fizer um disco por ano?  É o preço a ser pago, sabe? Essa história é um pouco complicada. Vejo que talvez algumas portas tenham se fechado por não ter mais todo aquele aparato, todo aquele suporte, que uma gravadora é capaz de te proporcionar. Realmente gerava um conforto. Mas, de modo geral, não tenho do que reclamar, a grande maioria das portas está aberta e as pessoas vêm se mostrando bem receptivas em relação ao “Fábula”. 

BD – E como foi a sua ida para Alagoas? Excetuando-se o Wado, não tenho muita informação sobre os artistas de lá...

Cris Braun – Voltei para Maceió há seis anos. Os meus pais moram lá. Sou filha única e meu pai é diabético. Ele acabou amputando um pedacinho do pé... achei que era hora de ficar mais perto deles. Então me mudei. Fico nessa ponte aérea Rio - Maceió, Maceió - Rio. Tive um longo período de readaptação, até mesmo para poder montar a minha casa. Fiz alguns shows bacanas, poucos, mas sempre com público. A cena musical em Maceió está crescendo, inclusive nas periferias da cidade, mas ainda não é muito consolidada, falta um pouco de articulação. A galera está se movimentando, mas ainda é difícil para um artista alagoano que não tenha alguma projeção conseguir divulgar seu trabalho para o resto do país. Tento ser otimista. Acho que tudo é progresso. As coisas vão indo, vão indo... Existem ótimos artistas por lá. Tem um cara que se chama Vitor Pirralho que você deve prestar atenção. Ele faz um rap excepcional! Um que vai lançar disco agora pelo selo MP.B é o Júnior Almeida. Ele é um puta compositor, um artista fantástico. Tenho uma música sua em meu disco [Memória da Flor]. Também tem uns meninos do hardprog que fazem parte da banda Messias Elétrico... então, existe uma cena! Mas nos comunicamos muito pouco. Não tem a força que tem Pernambuco, por exemplo. Entretanto, alguns vêm tentando fazer esta articulação, caso do coletivo Popfuzz. Mas Alagoas é um estado massacrado pela corrupção, pelo roubo. Os políticos são terríveis. Acaba empobrecendo a todos. A falta de recursos acaba por diminuir e muito a força da cena, o que é lastimável.

3 Responses to e o tempo canta

  1. muito bacana, muito elegante como sempre !!obrigado !

  2. germano :

    Adoro Cris Braun!

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