entre cabelos, olhos e furacões

fotos: daryan dornelles




Filipe Catto poderia ser facilmente apontado como o enfant terrible de sua geração. Ainda na adolescência, o cantor e compositor gaúcho já se dedicava à música, gravando suas canções de forma caseira e se apresentando em saraus e bares de Porto Alegre. Nessa época, chegou a integrar algumas bandas como Catto & Os Corujas, Ácido Vinil e Nancy Nancy, até lançar seu primeiro trabalho, o EP “Saga”, em 2009, atraindo a atenção de público e crítica com sua voz e interpretação peculiares.
No ano seguinte, já radicado em São Paulo, Filipe assinou contrato com a gravadora Universal, lançando em 2011 seu álbum de estreia, “Fôlego”. Nele, reuniu canções autorais e de outros composições, como Zé Ramalho, Arnaldo AntunesReginaldo Rossi e seus conterrâneos Cachorro Grande e Nei Lisboa. Assim, sem premeditar, Filipe adotou uma postura que o distinguiu de seus demais colegas. Sendo um dos pouquíssimos artistas de sua geração a pertencer ao casting de uma major, o músico trouxe para o seu canto um tom teatral que remete às grandes cantoras do passado, como Elis ReginaMaria Bethânia, traduzindo uma reverência que contrasta e muito com o desapego e a busca por novas linguagens que tão bem caracterizam a cena independente. Em meio a estas questões e sendo constantemente comparado a Ney Matogrosso, Felipe conseguiu ainda assim se mostrar um intérprete de fôlego, produzindo um trabalho que, ao seu modo, acrescenta novos ingredientes à atual música brasileira.
Em fase de divulgação de seu álbum e já iniciando a turnê de lançamento, Filipe recebeu o Banda Desenhada após duas apresentações no Rio de Janeiro. No saguão do hotel onde estava hospedado, no centro da cidade, o cantor nos falou a respeito de sua carreira, influências e, inevitavelmente, de suas diferenças e semelhanças com seus colegas de geração:

BD – Em pouquíssimo tempo você deixou de ser um artista independente e entrou para uma grande gravadora. Como foi este processo?

Filipe Catto – Foi bem tranquilo. Entrar para a Universal faz parte da minha trajetória, é o resultado de um trabalho. Disponibilizei meu EP para download [“Saga”, 2009] e comecei a fazer muitos shows em Porto Alegre. O público foi crescendo e passou a postar vídeos das minhas apresentações na internet. O sucesso do meu trabalho se deve muito a isto: Ao boca a boca e às redes sociais. O vídeo de “Saga”, gravado no estúdio da Trama, é um dos mais acessados que tenho, rodou muito, e caiu nas mãos da Universal. Eles assistiram e entraram em contato comigo no ano passado. Paralelamente, eu já estava negociando para que essa música entrasse na trilha da novela [“Cordel Encantado”], mas nada havia sido confirmado. Realmente não sei dizer o porquê do convite. Não sei qual é a fórmula ou o bê-a-bá para se conseguir isto. O pessoal da Universal de São Paulo e do Rio foi no meu show, no Tom Jazz [SP], e a partir daí decidimos que trabalharíamos juntos. Ficamos um tempo negociando contrato, assinamos e gravei o disco. Comigo aconteceu muito no passo a passo. Não me empenhei em entrar para uma grande gravadora, mas, durante o desenvolvimento do meu trabalho, acabou surgindo a oportunidade.

BD – Ao mesmo tempo, você circula bastante entre os artistas independentes de São Paulo. Chegou a se apresentar ao lado de Tulipa Ruiz e a Marcia Castro, não?

Filipe Catto – Mas foram projetos em que fui convidado a fazer. Realmente existe uma afinidade, mas ainda assim, cada artista tem a sua trajetória. Não acho certo pensar nesta geração como se fosse um coletivo. Cada um tem a sua identidade. 

BD – Sim. Entretanto, a maioria permanece independente e se mostra incrédula em relação à indústria fonográfica. Você, por sua vez, parece estar bastante satisfeito com a sua gravadora...

Filipe Catto – Super. Fiz o disco do jeito que queria, com o repertório que escolhi. Não teve esse monstro, não foi uma coisa assustadora. Sinceramente, a minha relação com a Universal é muito tranquila. Eu sei trabalhar dentro deste modelo. Para mim funciona. O que me interessa, enquanto artista, é fazer música e me comunicar com as pessoas, de uma forma natural. Estar inserido em uma gravadora me auxilia neste sentido, traz certas oportunidades. Tudo está rolando de uma maneira muito fluida, muito certa e com grande apoio do público. Acho que isto é o mais importante porque a gente faz um trabalho, acima de tudo, para se comunicar. Eu sou um cara de palco, eu gosto de fazer shows, meu negócio é este. Não tenho outras pretensões. Li recentemente um livro, da Edith Piaf, “No baile do acaso”, e fiquei muito impressionado com o modo com que ela se relacionava com a música. Costumava falar algo assim: “Jamais faça concessões. Porque você nunca saberá até onde elas poderão chegar”. Achei isso muito foda. Piaf preferia não se apresentar a ter que cantar um repertório que não fosse o seu, que não a representasse ou emocionasse, ganhando aplausos que não fossem motivo de orgulho. Nós artistas precisamos sempre nos lembrar qual é o real motivo para estar em cima de um palco ou gravando um novo trabalho. Lembrar que a primeira pessoa que temos que agradar é a nós mesmos. Temos que ter orgulho do que estamos fazendo, de nossa postura e também do público que está ali nos prestigiando. Ter gratidão por isto. Porque fazer um trabalho honesto e receber um puta aplauso é a melhor coisa do mundo. 

BD – Mesmo pertencendo a uma geração heterogênea, você parece ser o que mais destoa do restante. Você tem esta sensação?

Filipe Catto - Eu consigo perceber, mas foi o que falei, o meu compromisso é apenas com a minha verdade, com o que gosto de cantar, com o que faço. Então, não estou interessado em ser inserido. Os artistas desta geração têm uma trajetória muito particular e não estão preocupados em fazer parte de nada. Está todo mundo buscando seu espaço e desenvolvendo seus trabalhos com autenticidade. Sou mesmo diferente e não quero parecer com ninguém. O que posso lhe dizer é que se existe algo em comum a todos nós é a forma como iniciamos a nossa carreira: Utilizamos a internet como principal ferramenta para dar os primeiros passos e divulgar nossa música. Ninguém é fabricado. Trabalhamos muito e se a nossa arte vem chamando a atenção é por mérito próprio e do público. Ninguém está ali querendo ser o que não é. Acho que esta é a questão. E graças a Deus somos todos bem diferentes sim. O trabalho da Tulipa é totalmente diferente do trabalho do (Marcelo) Jeneci, que por sua vez é totalmente diferente do trabalho da Karina Buhr. E justamente por buscarmos uma identidade própria, dialogamos bastante. As diferenças também unem, cara. 

BD – Sim, e uma das características que o diferencia do restante da cena é a sua passionalidade. É quase impossível ouvi-lo e não se lembrar de Angela Rô Rô, Maria Bethânia ou Maysa. Da onde vieram essas referências?

Filipe Catto – É que isso é tudo muito meu, sabe? Sou um cara que sempre escutou Elis (Regina). Gosto muito de Janis Joplin, Joe Cocker, Jeff Buckley, P J Harvey, Bethânia... Então, não sei fazer de outra forma. Nunca vou deixar de fazer o que faço em prol de uma estética vigente. Acredito que a gente tem que partir do interno para o externo e não ao contrário. Não acredito em um trabalho briefado: “Eu sou um cantor de estilo x que vai atingir o público y”. Isso não existe para mim. Sou um cara honesto no que faço, canto aquilo que considero verdadeiro, sem brincadeiras. Acho o palco um lugar tão sagrado, mas tão sagrado, que não consigo conceber outra hipótese além desta, me mostrando da forma mais verdadeira possível. É algo meu, nunca vou deixar de ser assim. Sou uma pessoa completamente apaixonada, tenho um puta tesão em estar ali em cima do palco. Não vou reprimir este sentimento em prol de qualquer estética. 


BD – E com relação ao repertório? Você canta composições próprias e também de outros autores. Como elas dialogam entre si?

Filipe Catto – Toda a minha escolha de repertório, tanto do disco quanto do show, é através das letras. Vem daí as minhas escolhas. Escolho as músicas cujas letras dizem tanto a meu respeito que são como se eu as tivesse escrito. Este é o critério: Ser uma canção que me represente textual e musicalmente. Muitas eu retiro da minha própria memória afetiva. “Garçom” [Reginaldo Rossi] e “Mente” [samba de Eduardo Gudin e Paulo Vanzolini gravado por Clara Nunes] são dois exemplos. Boa parte do meu repertório é composta por músicas que canto no chuveiro e que resolvo levar para o público. Escuto bastante coisa e tenho facilidade em resgatar as canções mais antigas, mas não chego a ser um pesquisador. Até por conta disso, ultimamente venho me dedicando a escutar composições de novos autores. 

BD – Parece que você não tem muitos problemas em misturar os gêneros ou se apropriar de músicas mais populares, como “Garçom”, do Reginaldo Rossi.

Filipe Catto– No momento em que estou fazendo um trabalho, tudo tem que ser coeso. Não acho que exista música sofisticada e música vulgar. O que existe é música adequada e música não adequada para o repertório. No momento em que a escolho, ela se torna parte da minha identidade. E se faço isso com propriedade, me entregando ao seu texto, mensagem e melodia, a canção passa a ser a minha verdade. “Garçom” me emociona muito, poderia ser do repertório da Maysa. Eu a regravei com todo o respeito que merece, sem ser pejorativo. Porque é muito fácil você criar um discurso pretensioso e dizer que ao gravar este tipo de música está fazendo um enorme favor a ela, sendo que a própria, por si só, já é linda.

BD – Ter uma música [“Saga”] em um veículo de massa como uma novela da Globo foi importante para você?

Filipe Catto – Achei ótimo! Gente, como é que eu não vou gostar de saber que a minha música está sendo ouvida em uma casinha de pau a pique no meio do Tocantins?! A pessoa não tem uma geladeira, mas tem uma televisão! Como é que eu não vou gostar disso? Eu quero que a minha música toque. Não tenho a pretensão nem a vontade de tocar apenas para gente que se veste como eu, que tem os mesmos óculos ou o mesmo penteado. Quero tocar para o povo, para a gente do dia a dia. São essas pessoas que escutam música. É tão louco... Tem uma pessoa de um lugar que nunca ouvi falar na vida e que está com o meu CD na mão! Isto é lindo! Eu jamais colocaria a minha música em uma propaganda que fosse ecologicamente incorreta ou contrária aos meus ideais. Mas ter uma música na novela e, por consequência, ter acesso a um público tão vasto é maravilhoso! Ainda mais por ser tratar de um trabalho que não só foi muito popular, como também teve um respeito imenso aos telespectadores. “Cordel Encantado” não subestimou o público. Nós artistas temos a obrigação de nivelar sempre por cima, não julgar e nem subestimar as pessoas. Temos que realizar o nosso trabalho com o máximo de qualidade possível! Porque o povo gosta de coisas boas, cara! Quem é que disse que ele só gosta de porcaria? Eu não sei quem inventou isto. Fiz 11 shows na periferia de São Paulo. As pessoas iam lá, cantavam junto, faziam um silêncio sepulcral na hora das músicas mais densas, se emocionavam, pegavam autógrafos, tiravam fotos, e tudo com o maior respeito. Porque estamos fazendo isso olhando nos olhos delas, de igual para igual. A gente não está lá... [Bufa e faz uma careta de entediado]. Entende? Sendo pedante com a galera. Acho que é isto. Tem que ser olho no olho com todo mundo, com o público, com a equipe... Não tem erro.


BD – Você canta em seu show duas músicas ["Piensa em mi" e "Puro teatro"] de trilhas sonoras do Amodóvar. Como é a sua relação com ele e com o cinema de um modo geral?

Filipe Catto – Eu adoro Almodóvar. Sou completamente fã. Acho muito bonito o destaque que ele dá para a música em seus filmes. Neste último, “A pele que habito”, há um número maravilhoso com uma cantora que amo, a Concha Buika. Sempre me interesso pelo que está tocando nos filmes dele e do [Quentin] Tarantino. Acho incrível.

BD – Além do Almodóvar, você já citou como referências Caio Fernando Abreu, Hilda Hilst e Mapplethorpe. Todos, à sua maneira, são extremamente polêmicos. Isso te atrai de alguma forma?

Filipe Catto – Eu não os acho polêmicos, acho viscerais. É essencial que o artista tenha coragem ao se expressar. Caio Fernando, Hilda Hilst, Almodóvar, Mapplethorpe, todos possuem um trabalho muito forte e ousado. E é por isso que são ícones, porque não rezaram na cartilha de ninguém. Estavam simplesmente sendo eles mesmos. Acho isso muito foda e muito difícil de alcançar. Principalmente em uma sociedade como a nossa, em que os artistas são induzidos a serem coisinhas. Não podemos ser múltiplos, temos que ser uma coisinha x, y ou z! E se não formos, as pessoas ficam desconfortáveis porque não conseguem entender e nem sentir o que estamos fazendo. Não quero julgar o trabalho do Mapplethorpe, suas fotos provocam um impacto tão grande que transcende a cognição, assim como a obra da Hilda Hilst. Se você quiser tirar uma historinha de algum de seus livros, você não vai conseguir. Mas aquilo por si só, pela poética, pelo jogo de palavras, pelo ritmo que ela dá a cada página, a cada linha, naturalmente me emociona e eu não busco explicação para isto. Realmente eu não quero saber o porquê. 

BD – Ainda em se tratando de referências, não consigo perceber uma grande ligação entra a música gaúcha e o seu trabalho. Ela existe?

Filipe Catto – Na verdade acho que o que mais tenho de gaúcho é a intensidade. Porque os gaúchos são pessoas muito apaixonadas. Talvez esta seja a característica que mais me diferencie do restante da cena. Outra questão é o elo natural que existe entre o Rio Grande do Sul, a Argentina e o Uruguai. É muito comum você ver artistas argentinos e uruguaios fazendo shows no sul do país. Acaba que nos familiarizamos com o seu idioma. Cantar em espanhol para mim é tão natural quanto cantar em português. Faz parte da minha cultura, do meu aprendizado. Com certeza a admiração que tenho pela música latina se deve ao fato de ser gaúcho. 

BD – Você começou cantando em Porto Alegre, foi para Nova York, voltou para o Sul e, pouco tempo depois, se mudou para São Paulo. Essas idas e vindas foram por conta de sua carreira?

Filipe Catto - Não, não![Risos]. Eu não fui para Nova York cantar, fui para estudar inglês, fazer um intercâmbio. Morava em Porto Alegre, fazia shows, tocava, mas não estava muito preocupado com música nessa época. Fui para lá e fiquei oito meses, estudando e me alimentando de outras coisas. Tive acesso à comunidade latina de Nova York e fui a muitos shows dessa galera. Fiz amizade com equatorianos, argentinos, mexicanos, cubanos... Mas não compus muito durante a minha estadia. Quando voltei para Porto Alegre, retomei a composição. Lancei o EP “Saga” e, um ano depois, me mudei pra São Paulo.

BD – Na cara e na coragem?

Filipe Catto – Na cara e na coragem. Tinha um show marcado, peguei a minha malinha e fui. Se não desse certo, voltaria para Porto Alegre. Mas acabou que deu tudo certo e estou lá. Faz quase dois anos.

BD – Para terminar: Já se cansou de ser comparado tantas vezes com o Ney Matogrosso?

Filipe Catto – Olha, acho que a gente tem muitas coisas em comum, mas nunca foi a minha intenção. Não quero o lugar do Ney. Não quero. Porque eu o acho um cara tão autêntico, que fez e ainda faz um trabalho tão maravilhoso e revolucionário, que seria patético qualquer artista querer se comparar a ele. Mas, ao mesmo tempo, é muito bacana toda essa história, porque o Ney é um artista muito querido. Então, de certa forma, é uma aprovação. É muito normal, no primeiro momento, que as pessoas te comparem a alguém. E que bom que sou comparado com um artista que tem toda essa sabedoria, talento e carisma. Eu encontrei o Ney faz uns dois anos e ele foi de uma docilidade, de uma generosidade! Supersupersupergente boa. Um cara muito do bem e pé no chão. Tenho certeza que ele sabe de sua nobreza, do importante lugar que ocupa na nossa música e acredito que deve rir muito com essas comparações. 

comentários - entre cabelos, olhos e furacões

  1. TOM :

    Sensacional entrevista, dá pra imaginar o Catto falando, é exatamente como ele é... Estou acompanhando a carreira deste menino talentoso e humilde, ele vai longe... Parabéns!

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