| BANQUETE | CADU TENÓRIO + MÁRCIO BULK |
Alice Caymmi | Bruno Cosentino | César Lacerda | Lívia Nestrovski | Michele Leal | Rafael Rocha
1. “Café expresso”
César Lacerda/Márcio Bulk
Voz: Michele Leal
Violão: César Lacerda
Sintetizadores, violino, objetos amplificados, manipulação com fitas cassete, ruídos e processamento: Cadu Tenório
2. “Estela”
Bruno Cosentino/Márcio Bulk
Voz: Alice Caymmi e Bruno Cosentino
Sintetizadores, violino, objetos amplificados, manipulação com fitas cassete, ruídos e processamento: Cadu Tenório
3. “Electric fish”
Bruno Cosentino/Márcio Bulk
Versão para o inglês: Sylvio Fraga Neto
Voz: Cesar Lacerda
Violão: Bruno Cosentino
Sintetizadores, violino, objetos amplificados, manipulação com fitas cassete, ruídos e processamento: Cadu Tenório
4. “Em transe”
Rafael Rocha/Márcio Bulk
Voz: Lívia Nestrovski
Violão: Bruno Cosentino
Sintetizadores, violino, objetos amplificados, manipulação com fitas cassete, ruídos e processamento: Cadu Tenório
Produzido por Cadu Tenório e Márcio Bulk
Arranjos: Cadu Tenório
Gravado nos estúdios 503, Audio Rebel, Marini e Clemente II
Mixado por Cadu Tenório e Emygdio Costa
Masterizado por Emygdio Costa
Projeto gráfico: Márcio Bulk e Rodrigo Sommer
Capa: “Nature morte aux coquillages et au corail”, Jacques Linard
Banquete, o samba-canção manco de Cadu Tenório e Márcio Bulk
Marcos Lacerda
A canção é uma linguagem artística generosa, múltipla e com uma densidade presente tanto em suas formas harmônico-melódicas mais complexas, quanto nos mais simples samba-canções e boleros. Quem realmente a conhece sabe da sua capacidade de gerar encontros e atritos entre as mais diversas linguagens, inclusive em experimentos sonoros radicais, como vem fazendo um segmento expressivo da canção brasileira contemporânea. Esta desenvolveu, ao longo dos últimos anos, um diálogo forte com a música “experimental” ou “de invenção”, algo que podemos constatar de forma clara em
Banquete, o mais novo projeto de Cadu Tenório e Márcio Bulk.
Integrante da chamada cena experimental carioca, o músico e produtor Cadu Tenório é conhecido por encabeçar diversos projetos musicais, dentre eles, Sobre a Máquina, VICTIM! e Ceticências. Em quatro anos de carreira, esteve envolvido na produção e lançou mais de 20 discos. Nesse mesmo período, através do blog Banda Desenhada, o pesquisador musical Márcio Bulk dirigiu e lançou o álbum
E volto para curtir (2013), no qual nomes da nova geração regravaram o primeiro disco de Jards Macalé (homônimo, 1972). No final de 2013, lançou o
single Soluços (Jards Macalé), sua primeira parceria com Cadu Tenório. Agora, com o EP
Banquete, Bulk exibe pela primeira vez sua veia poética. Com influência do samba-canção e das obras de Ana Cristina Cesar e Caio Fernando Abreu, suas letras foram musicadas e interpretadas por alguns dos artistas mais relevantes da atual cena carioca: Alice Caymmi, Bruno Cosentino, César Lacerda, Lívia Nestrovski, Michele Leal e Rafael Rocha. As canções, inicialmente gravadas com acompanhamento de violão, foram desconstruídas e recriadas por Tenório através de processos eletroacústicos que dialogam de forma direta com as letras e com a interpretação dos cantores, remetendo, por vezes, aos trabalhos inventivos de artistas como Scott Walker, Serge Gainsbourg, Nico, Yoko Ono e Björk.
Dessa forma, podemos dizer que
Banquete é um disco bastante árduo, com poética e sonoridade forte e dolorosa, expressando as nervuras de um mundo cuja materialidade é feita de opacidades, sombras e lacunas, além de uma miríade de ruídos que soam como ensaios de despersonalização radical. Entretanto, esses “ensaios” não se resumem a apenas acompanhar a temática das canções. Indo além, Tenório utiliza de suas ferramentas para reiterar o seu posto de coautor do álbum, tornando-se figura decisiva para a sua significação estética. Isso se dá por conta da relação intencionalmente conflituosa entre a dimensão sonora de seus arranjos e as estruturas harmônica e melódica das canções, o que gera uma tensão entre a materialidade sonora — feita de atritos, justaposições, cortes abruptos e acelerações repentinas — e as formas relativamente coesas e inteligíveis da palavra cantada.
A primeira faixa, “Café expresso” (César Lacerda/Márcio Bulk), é interpretada por Michele Leal. A canção se inicia ao som de um violão, como se saído de uma fita antiga, interrompido bruscamente pelo ruído de uma máquina ou veículo acelerando. Esta instabilidade entre a forma sonora inteligível e a aceleração abrupta permeia todo o disco e é o “recanto escuro” no qual as formas poético-musicais das canções vão se fissurando e se esgarçando. Nesse primeiro caso, temos a experiência da frustração diante da perda, na voz do outro cuja presença ainda se sente (“a sua voz ainda/ecoa pelo meu dorso”) e no corpo, que se perde e se anula, em meio a tantos suportes materiais (cama, remédios, escadas, aço, vidros). Michele consegue, de forma bastante criativa, enriquecer essa trama, deixando de lado, ao final da canção, o seu tom dramático e, tomada de ironia, se aventurar em um
spoken word. A canção seguinte, “Estela” (Márcio Bulk/Bruno Cosentino), trata-se de uma bela e sensível homenagem à cantora Stella Maris (1922–2008), esposa de Dorival Caymmi (1914–2008). Interpretada por Bruno Cosentino e Alice Caymmi, neta de Stella, a canção é um apelo desolador diante do medo da separação e da morte. A paisagem oceânica (recifes, pedras, embarcações, horizontes) torna-se símbolo de incomunicabilidade, personificada como testemunha ocular de todo o drama. A forma sonora do álbum, emaranhada de melancolia, só é levemente superada na transgressão do sexo e do gozo — de raras figurações ou mediações simbólicas — como se vê na canção “Eletric fish” (Bruno Cosentino/Márcio Bulk), interpretada por César Lacerda. O cantor dá vida a um personagem cambaleante e bêbado, o que é a deixa para que Tenório possa brincar com a métrica da canção, repleta de mudanças drásticas e vai e vens. Por fim, temos “Em transe” (Rafael Rocha/Márcio Bulk), interpretada de forma impressionante por Lívia Nestrovski. A música amalgama e dá cabo dos principais temas de Banquete: a solidão, a perversidade do discurso amoroso, o ruído e o seu incômodo, impresso por Tenório nas camadas e mais camadas sonoras que ele utiliza ao trabalhar a voz de Lívia. Esta, na busca por sua inteireza, produz uma melodia que derrete e explode na espessura rugosa e inquieta da canção (“um samba-canção manco”).
Com
Banquete, Márcio Bulk se revela um letrista sofisticado, fino e de poética densa que, ao se unir à sonoridade sombria e engenhosa de Cadu Tenório, produziu um pequeno grande disco capaz de dialogar seriamente com a estética musical mais inventiva do nosso tempo, sem abandonar a linguagem da canção e suas singularidades.
Marcos Lacerda é sociólogo, crítico, pesquisador da história da canção e editor da revista Polivox.
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