COM QUANTOS GIGABYTES SE FAZ UMA JANGADA

foto: vitor jorge

Nas últimas duas décadas, as inovações promovidas na área tecnológica produziram uma série de mudanças que alteraram por completo a indústria do entretenimento e o consumo de música. O MP3 solapou a venda de CDs e produziu a mais grave crise da indústria fonográfica. Só no Brasil, de 2000 à 2009, houve uma queda inacreditável de 77% das vendas. As gravadoras passaram então a limitar seus gastos, reduzindo drasticamente seus catálogos e casting, promovendo velozmente uma reformulação em todas as mídias. Ao mesmo tempo, a popularização dos PCs e o avanço das conexões à rede favoreceram o surgimento de blogs que ocuparam a lacuna deixada pelas revistas, programas de TV e rádio. Ainda com certa ingenuidade e sem o assédio das grandes corporações, os blogs serviram para estimular uma nova geração de produtores de conteúdo que, mesmo ao largo do jornalismo tradicional, reproduziam inicialmente as mesmas fórmulas dos antigos veículos de comunicação. Contudo, muito além da crítica, os blogs passaram a servir de espaço para compartilhamento de arquivos e, mais adiante, divulgação de trabalhos de músicos independentes. Estes viram no espaço virtual um local mais fluido e menos opressor que o encontrado nas grandes gravadoras e nos veículos de massa. Assim, através de um caminho alternativo, expandiram carreiras que já vinham ganhando força graças às facilidades proporcionadas pelo barateamento dos home studios e de outros aparatos tecnológicos. Em meio aos milhões de downloads, à fracassada guerra contra a pirataria e à flexibilização das regras de propriedade intelectual, os novos artistas deixaram de lado o improvável lucro que teriam com a venda de seus álbuns e direitos autorais e os disponibilizaram em blogs cujos leitores são garantia relativamente segura de divulgação para sua música.Toda essa agitação despertou o interesse dos grandes portais corporativos, que passaram a hospedar alguns blogs independentes, na tentativa de abarcar um novo público e, assim, aumentar sua lucratividade em um espaço que vem se tornando cada vez mais regido pelas leis de mercado.

Criado despretensiosamente em 2003 pelo mineiro Web Mota, a Musicoteca tornou-se um dos principais endereços para a divulgação e compartilhamento da música independente brasileira. Com uma assombrosa média de 20000 downloads efetuados semanalmente, o blog manteve a sua autonomia ao longo destes anos e conta hoje com seis colaboradores: Swã Medeiros, Pedro Ferreira, Igor Cruz, Sílvia Iama, Lucas Rossi e George Walmsley. Site de referência para o Banda Desenhada, entramos em contato com seu fundador para que nos contasse a história de sua bem-sucedida empreitada e nos falasse sobre os próximos projetos. A entrevista que se segue foi realizada através de e-mails e bate-papos em redes sociais.

BD — Imagino que os primeiros passos para a criação da Musicoteca foram árduos: fazer contatos, disponibilizar os álbuns, divulgar... Além disso, em 2003 o download não era algo tão corriqueiro como hoje e a música independente brasileira não tinha tanta visibilidade. Como foi esse início?  Você era o único responsável pelo blog, correto?

WEB MOTA — Na verdade, o blog não nasceu com a ideia do que é hoje. Eu comecei tudo sozinho, nos tempos do Blogspot. Sempre gostei de música e utilizava o espaço para compartilhar meus gostos e impressões. Na época, ouvia apenas o que tocava nas rádios, na TV e o que se vendia nas lojas. Queria fazer uma biblioteca crítica de tudo que escutava. Demorou até que a coisa andasse e aparecessem as primeiras interações com os leitores. O blog era chato e tratava do que já era conhecido. Mas acabou dando certo por conta das críticas dos leitores incomodados com a mesmice do mercado fonográfico replicada por mim. Começaram a questionar meu gosto e minha falta de vontade em descobrir o novo. Aquilo me deixou muito mal, o blog morreu várias vezes por causa da minha frustração com as críticas. Daí, os próprios leitores começaram a me enviar discos e sugerir artistas novos para ouvir e deixar minhas impressões no blog. Com o passar do tempo tomei gosto e a coisa não parou mais. Acabei me viciando no novo e na busca pelas descobertas sonoras.

BD — Hoje em dia, vários músicos buscam a Musicoteca para divulgar seus trabalhos. Foi um longo percurso para que isso acontecesse? O site ainda realiza buscas e pesquisas ou as novidades chegam naturalmente?

WEB — A Musicoteca é um espaço de pesquisa e referência da nova música brasileira e seus autores. Após oito anos, o site ganhou prestígio e muitos artistas de renome querem lançar ou colocar os seus trabalhos em nosso acervo. Apesar de muitos artistas já conhecerem o site, eles demoraram a amadurecer a ideia da liberação de suas obras. Ter grandes talentos da nova safra em nosso espaço não é uma conquista só nossa, é quase uma necessidade estratégica para os novos músicos. E a Musicoteca é uma bela vitrine. Muitas coisas chegam naturalmente, mas ainda damos preferência às nossas pesquisas e descobertas por todos os lugares do Brasil... Temos colaboradores espalhados e ouvindo muitas coisas novas a todo o momento. É um tesão descobrir algo original e ver os leitores espalhando a música pela rede.

BD — E o processo de seleção? Quais são os critérios utilizados?

WEB — Não temos regras... não somos críticos musicais e nunca tivemos esta pretensão... somos mais sensitivos, como nossos leitores, e isso vai além da qualidade da produção artística. Gostamos do original, da intenção artística, da simplicidade criativa... ouvimos de tudo, dos curitibanos do FelixBravo, passando por Lucy and the Popsonics, de Brasília, até às mineiras do Fofoca Erudita. Nossos colaboradores ouvem, ouvem, ouvem, mas temos nossas preferências sim, elas fazem parte de nosso universo cultural e de formação. Mas o equilíbrio das diferenças nos ajuda muito. Eu gosto de música, arte, design e distribuir as novidades. A Swã ama um bom samba e os ritmos regionais. O Pedro é rock, é indie, é oriental, é pop, é barulho! O Lucas hora é clássico, hora é brega, hora é sertanejo e às vezes arrisca até um funk; ele adora misturar tudo. O George é regional, adora os clássicos do rock, ama cinema e tem ouvidos ótimos para identificar as referências mais sutis. As discussões são necessárias em nosso trabalho, são elas que blindam a identidade do site. Às vezes damos umas boladas pra fora, mas, faz parte.

BD — Como é a relação do site com os artistas? Chega a ser muito complicado conseguir a disponibilização dos álbuns?

WEB — Não temos muitos problemas. Os artistas mais legais acabam compartilhando da mesma filosofia que a Musicoteca. O artista novo já entende que a distribuição gratuita de sua primeira obra não a banaliza e gera uma oportunidade de divulgá-la para um público interessado e formador de opinião. Às vezes alguns músicos se atrapalham, fecham contratos de exclusividade na distribuição e venda de seus discos e acabam perdendo espaço para os artistas “livres”. Já foi mais difícil, quando a legitimidade e a relação com os artistas não eram tão transparentes em nosso site. Hoje a interação entre os músicos, o site e os leitores deixa clara a nossa filosofia e a relação amistosa que possuímos com esses artistas.

BD — Como você analisa o atual cenário musical brasileiro? Qual seria o diferencial dessa geração em relação às anteriores?

WEB — Já enfrentei dilemas com o meu discurso radical de que esta é, sem dúvidas, a geração mais criativa da música brasileira. Mas pensando bem, acho que sempre tivemos ótimos artistas em todos os períodos; o que muda na verdade são os canais que cada geração encontra para mostrar sua arte. Hoje, estamos mergulhados num mar de produção digital para todos os gostos, e não só na música, mas em todas as vertentes artísticas. Acredito que esta geração seja extremamente rica em suas referências e em seu trabalho autoral. Ela é plural e está resgatando a cultura de nosso país, mesclando o urbano com o rural, o simples com o complexo, o orgânico com o tecnológico. Isto é uma mudança muito grande e enriquecedora. Estes novos artistas vêm redescobrindo e divulgando diversos gêneros da música brasileira. Há dez anos atrás eles teriam que encobrir seus regionalismos para ser assimilados nacionalmente. Agora a nossa música se tornou moderna e com sotaque, sendo ouvida pelo mundo afora. Os jovens mais descolados ouvem Karina Buhr! Isto é fantástico.

BD — Você chegou a comentar em uma entrevista anterior que a Musicoteca, mesmo com quase dez anos de estrada, ainda não traz retorno financeiro. Isso o incomoda? Acredita que um dia poderá viver só com o lucro vindo do blog? 

WEB — A questão de ter retorno financeiro nunca foi problema ou necessidade para a Musicoteca. Fazê-la gerar algum tipo de renda requer tempo e dedicação exclusivos. O blog sempre foi uma diversão que virou uma grande ideia e um local de experimentações. Todos os colaboradores são profissionais que já possuem outras fontes fixas de renda e isso sempre cobria nossa ambição monetária. Mas o negócio começou a ganhar corpo e propostas estão surgindo. Com isso, pretendemos dedicar mais tempo e atenção ao projeto.

BD — A Musicoteca possui uma artista exclusiva, a cantora Jô Nunes. Vocês pretendem pretende se tornar uma gravadora/distribuidora virtual? 

WEB — A Jô Nunes é parceira da Musicoteca há mais de um ano. E isto se deve a Swã, que, ao conhecer seu trabalho, a trouxe para o site, onde tivemos total exclusividade no lançamento virtual de seu álbum de estreia [Passarinha, 2011], além de termos sido responsáveis por sua divulgação nas mídias sociais e pelo show de lançamento em Curitiba. Na realidade, tudo foi bem natural, não havíamos planejado nada. Mas cabe ressaltar que a Jô não foi a primeira artista exclusiva do site, já tivemos singles e discos do Araçá Blu, Igor de Carvalho, FelixBravo, Luiz Gabriel Lopes, César Lacerda e outros tantos que são encontrados apenas em nosso espaço. Por sinal, dia 10 teremos mais um lançamento exclusivo: o primeiro álbum da Bande Dessinée [Sinée Qua Non], do Recife. Antes, já havíamos lançado com exclusividade um EP e um single da banda. Estamos com algumas propostas de parecerias com portais, artistas e alguns produtores... Vamos ver o que vai acontecer. Sempre pensamos em criar um selo, é legal, todos os artistas e parceiros dão a maior força. Também está em pauta um festival Musicoteca, uma ideia pilhada pelos próprios músicos que acabaram se conhecendo através do site.

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