Década de 1930. Em busca de uma identidade nacional, o Estado Novo de Getúlio Vergas, aliado às elites do país, encontra no samba dos morros cariocas a musicalidade perfeita para enaltecer um Brasil que se almeja moderno e industrial. Tornando-se símbolo máximo de brasilidade e unificador da nação, o samba deixa para trás suas restrições étnicas e religiosas, sai dos terreiros e passa a ser consumido por uma classe média emergente. Noel Rosa, Ary Barroso, Lamartine Babo, Braguinha, Carmen Miranda, Francisco Alves, Mário Reis, Orlando Silva, Silvio Caldas, entre tantos outros, se tornam os grandes nomes da música popular brasileira de então. Curiosamente, todos elegantemente trajados e, em sua esmagadora maioria, brancos ou pardos. Num segundo momento, vê-se surgir na década de 50, em São Paulo, uma geração de compositores e intérpretes que, sem temer suas origens, fazem do samba sua matéria prima e com ele elaboram as mais incríveis e representativas crônicas da cidade. Contudo, Adoniran Barbosa, Paulo Vanzolini e Germano Mathias jamais chegaram a importunar a majestade de seus vizinhos cariocas. Nos anos 70, ainda se ouviria do poeta e compositor Vinícius de Mores a célebre sentença: “São Paulo é o túmulo do samba”. Mesmo que proferido em circunstância extremada – Vinícius defendia seu amigo Johnny Alf de uma descortês platéia paulistana – o comentário já deixava clara a importância que ganhou, ao longo do tempo, não só o samba, mas a cidade que inicialmente o fomentou e, acima de tudo, seu status dentro da cultura nacional.
Década de 2000. Em meio às fortes tensões do mercado fonográfico, surge em São Paulo uma geração de cantores e compositores que atualizam o gênero criado há décadas na cidade. Kiko Dinucci, Juçara Marçal, Douglas Germano, Rodrigo Campos e Romulo Fróes tornam-se as figuras de maior destaque desta cena e, dentre eles, Kiko mostra-se o mais prolifero. Flertando com sambas, batuques, macumbas, modas de viola, pós-punk e a onipresente vanguarda paulista, o músico já lançou cinco álbuns, quase todos em parceria: Padê (2007, com Juçara Marçal), Pastiche Nagô (2008, com o Bando Afromacarrônico), Retrato de Artista Quando Pede (2008, com Douglas Germano), Na Boca dos Outros (2010, com diversas participações especiais) e Metá Metá (2011, com Juçara Marçal e Thiago França). Em 2006, enveredou pelo audiovisual, produzindo o documentário Dança das Cabaças - Exu no Brasil. Atualmente, o músico se divide entre a turnê de seu último álbum, os preparativos para o lançamento de seu livro de quadrinhos chamado Cabeça de Homem e um novo projeto musical: Cortes Curtos.
Década de 2000. Em meio às fortes tensões do mercado fonográfico, surge em São Paulo uma geração de cantores e compositores que atualizam o gênero criado há décadas na cidade. Kiko Dinucci, Juçara Marçal, Douglas Germano, Rodrigo Campos e Romulo Fróes tornam-se as figuras de maior destaque desta cena e, dentre eles, Kiko mostra-se o mais prolifero. Flertando com sambas, batuques, macumbas, modas de viola, pós-punk e a onipresente vanguarda paulista, o músico já lançou cinco álbuns, quase todos em parceria: Padê (2007, com Juçara Marçal), Pastiche Nagô (2008, com o Bando Afromacarrônico), Retrato de Artista Quando Pede (2008, com Douglas Germano), Na Boca dos Outros (2010, com diversas participações especiais) e Metá Metá (2011, com Juçara Marçal e Thiago França). Em 2006, enveredou pelo audiovisual, produzindo o documentário Dança das Cabaças - Exu no Brasil. Atualmente, o músico se divide entre a turnê de seu último álbum, os preparativos para o lançamento de seu livro de quadrinhos chamado Cabeça de Homem e um novo projeto musical: Cortes Curtos.
De passagem pelo Rio de Janeiro, onde realizaram o show de lançamento do álbum Metá Metá, Kiko e Juçara foram responsáveis por uma das mais contundentes entrevistas do Banda Desenhada. Em meio a bolinhos de bacalhau e alguns chopes, a dupla falou sobre a sua carreira, o samba paulista, Itamar Assunpção e, claro, a derrocada da MPB:
BANDA DESENHADA – De um modo geral e até preconceituosamente, São Paulo sempre foi vista como uma cidade antenada com o novo e com poucas ligações com qualquer tipo de tradição dentro da música feita no Brasil. Entretanto, nos últimos anos, a cidade vem lançando nomes de peso não só dentro da MPB como também do samba. Qual seria o motivo disto?
KIKO DINUCCI – Bom, vou falar do meu caso: tenho um passado que está atrelado ao samba. Tocava samba tradicional e aprendi a fazer canções ouvindo Wilson Batista e Noel Rosa... Em um segundo momento, comecei a prestar atenção no samba paulista que, por não conseguir imitar o carioca, acabou ganhando cara própria. Assim, comecei a prestar mais atenção no Adoniran, no Vanzolini e, mais tarde, no Geraldo Filme e Eduardo Gudin. A partir daí, me deu um estalo e percebi que o samba paulista, juntamente com a música urbana dos anos 80, a vanguarda paulista do Itamar, do Arrigo [Barnabé], do grupo Rumo, havia criado uma tradição em São Paulo. Havia realmente um jeito de fazer canção característico da cidade. Um jeito de contar histórias semelhante às crônicas e de interpretar a palavra, mais falada do que cantada. É assim que percebo. Lógico que também vejo estas características em artistas mais jovens, por exemplo, no Rodrigo Campos, no Romulo Fróes e no Douglas Germano. Entretanto, também acho que a minha geração se preocupa muito pouco com a tradição. Na verdade, acredito até que persiga demasiadamente o cosmopolitismo. Tanto que há gente tocando folk como se fosse Bob Dylan! Não sei como é para um gringo olhar de repente um brasileiro tocando folk. Não sei se faz sentido. O que percebo, pelos comentários de muitos amigos estrangeiros é que, às vezes, soa caricato. O rock também. Estes estilos podem se tornar grotescos se forem apenas cópias do que é feito lá fora. Sinto realmente a falta de referências mais brasileiras em minha geração, mas acho que elas virão naturalmente.
JUÇARA MARÇAL – São Paulo comporta pessoas de todas as partes do Brasil, promovendo um encontro de diferentes culturas e estilos musicais. Assim, o interesse pela pesquisa é despertado, não somente pelo aspecto explorador, mas também pela presença das próprias comunidades que se deslocaram para lá. Esse caldeirão cultural e a música que provém dele é a cara da cidade.
BD – No caso do Rio, há a institucionalização do samba que acaba por deixá-lo aparentemente intocável, como se fosse uma tradição que não pudesse ser questionada ou reinventada...
JUÇARA – Sim. Mas em São Paulo também há a tradição do samba paulista. Mas ele não se tornou um marco, podendo caminhar ao lado de outros gêneros e possibilitando a busca de novas linguagens. Já aqui, o samba se tornou um dos aspectos mais importante da cidade.
KIKO – Acho que a forma como o Rio e São Paulo lidam com a música reflete muito as particularidades urbanísticas das duas capitais. Aqui é possível perceber uma preocupação natural em preservar o passado, mesmo com a especulação imobiliária e o crescimento vertiginoso da cidade. A arquitetura daqui é infinitamente mais preservada do que a de São Paulo. O carioca preza por isto, ele conhece a história da cidade e de seus bairros. É algo muito forte e aflorado. Em São Paulo é totalmente ao contrário, você tem um bem histórico e na semana seguinte há um shopping center ou um McDonald’s em cima. São Paulo é tão louca que já se reconstruiu umas três vezes pelo menos. Com as obras do metrô, encontraram vestígios de uma outra cidade a 20 metros abaixo da terra! Uma coisa absurda! Este desprendimento que São Paulo tem com a sua história, com as tradições, reflete-se na música. Acho que a maior qualidade da minha geração é que ninguém está muito interessado em buscar o aval do passado. Se eu fosse um sambista tradicional, iria querer a benção da Velha Guarda da Portela ou da Beth Carvalho, por exemplo. Ou então, se fosse da MPB, o aval do Caetano [Veloso]. Aqui no Rio, o que o Caetano fala é determinante. Lá em São Paulo ninguém está preocupado com isso. Porque todos nós somos independentes e já estamos acostumados a fazer de tudo: discos, cartazes para shows, cuidar do equipamento, carregar o amplificador nas costas... Então, se o Caetano gostar, legal, mas se não gostar também não vai mudar meu som, não vai mudar a minha realidade. Isto é uma característica da minha geração, este desapego histórico. E com isso vem também certa crise de identidade. Acho que nós ainda estamos nos formando, passando por um processo de amadurecimento. Talvez o mais importante desta geração seja realmente a quebra com os valores tradicionais da música popular. Nenhum de nós vai deixar de fazer alguma coisa porque não é de bom tom. É uma geração que se fez na internet, de forma alternativa, sem o auxílio da imprensa oficial ou das majors. Levamos muito mais a sério um blog do que os grandes jornais e revistas. O que a imprensa noticia, um blog já informou muito antes.
BD – Houve uma chamada para o show de ontem em que se lia: "Venha conferir o sambista Kiko Dinucci". Como você reage a isso, já que está inserido numa geração que não se sente confortável com rótulos?
KIKO – Sambista não é um rótulo que me desagrada. O único problema é que eu não faço só samba. Mas até entendo quando alguém me chama de sambista porque as minhas canções sempre partem deste gênero. É o jeito que eu aprendi a compor: a estrutura, o refrão, a estrofe...
JUÇARA – O problema é que o rótulo reduz. A questão não é negar que ele é sambista, mas negar todo o restante de seu trabalho. Suas canções não são restritas a um único gênero. Invariavelmente, o rótulo reduz as características de uma obra, destacando apenas uma de suas facetas.
KIKO – Acho que se um cara entrar numa loja e, encontrando meu disco na sessão de samba, comprá-lo, é bem capaz de querer devolver o CD! [risos]. “Porra, me enganaram, tá ligado?”. É bem capaz. Mas o pessoal do samba me respeita porque de algum jeito eles sentem que tenho familiaridade com a coisa. Não saio atropelando o samba! Tenho muita estima por ele.
JUÇARA – E também tem desenvoltura dentro do gênero.
KIKO – O que me incomoda de verdade é quando sou citado como “ex-roqueiro”. Já saiu “Ouça o samba do ex-roqueiro” e “O ex-roqueiro que virou sambista”... [Risos]. Isso é ridículo! Tim Maia teve banda de rock aos 14 anos, Jorge Ben Jor teve banda de rock aos 14 anos e eu também tive uma banda de rock aos 14 anos! Isso está na minha formação, nunca neguei. O rock se reflete no meu jeito de tocar violão, na minha postura.
BD – Alguns jornalistas já chegaram a afirmar que a geração de vocês seria a revanche da vanguarda paulista. Ao assistir o documentário do Itamar Assumpção, [Daquele Instante em Diante], essa ideia parece ter se acentuado. Vocês concordam com isso? Qual foi o legado que o Itamar deixou para vocês e quais são as maiores diferenças entre a vanguarda paulista e esta nova geração?
JUÇARA – Tanto o Itamar quanto o Arrigo viveram numa época em que, de certa forma, se almejava um status que só as grandes gravadoras poderiam conceder. A geração de hoje não está mais preocupada com isso. Nós finalmente não precisamos mais dar certo. Não precisamos ser celebridades. Isto determina muito a forma como lidamos com o nosso trabalho, sem toda a preocupação que era natural daquela época. Não temos aquela angústia em lidar com a impossibilidade de chegar a um patamar que o Itamar almejava e que, de direito, deveria ser dele.
KIKO – A vanguarda paulista foi a grande pioneira na música independente e nós somos fruto dela. O Itamar prensava seus discos e era responsável por tudo. Nós crescemos já conformados com isso. Já era uma realidade e não esperávamos outra coisa. Talvez o Itamar esperasse. Mas, em termos musicais, ainda não acho que a minha geração tenha influência dessa época. Eu enxergo muito pouco. Vejo na Tulipa [Ruiz] e em alguns outros artistas, mas de forma isolada e por questões familiares. De um modo geral, não consigo perceber uma influência tão grande assim do Itamar. Minha geração, musicalmente, está totalmente aquém. Aliás, ela está muito mais atenta à tropicália, que, a meu ver, foi um movimento comportamental e pouco musical. A estrutura de suas canções era ainda muito parecida com tudo o que havia na época, como a jovem guarda e a bossa nova. Ok, botaram uma guitarra aqui, uma orquestra ali, foram influenciados pela música erudita contemporânea, mas a estrutura era muito presa à música popular vigente. Se você pegar o Arrigo, o Luiz Tatit, o Rumo ou o Itamar, eles mexeram mesmo na estrutura e desenvolveram uma linguagem própria. Já a minha geração, não. Ela ainda está lá atrás, na jovem guarda! [risos]. No máximo, na tropicália, pela postura. Nós temos mais coisas a dizer pelo nosso comportamento do que pela música em si. Entretanto, há um diferencial em nossas canções: como ninguém almeja a celebridade, não há preocupação ou compromisso em se criar um hit ou uma música extremamente popular. Se você pegar os discos, eles são bem produzidos e coisa e tal, mas a canção brasileira, aquela que a massa pode cantar, você não encontra. Não há compromisso com o mercado. Embora haja esse discurso de todo mundo querer ser pop, ninguém cria um puta refrão! Você não vê por aí um “Ai, Que Saudades da Amélia” [Ataulfo Alves/Mário Lago], nem absolutamente nada que remeta à canção brasileira tradicional. Eu fico atento a essas questões, mas vejo que é uma preocupação isolada. A minha geração é muito “ah, vamos fazer um som”! Acho difícil você obter uma resposta mais consistente se perguntar para algum colega meu: “Que som é esse? É a mistura do quê com quê? Destrincha aí!". O cara não vai saber direito. E, por incrível que pareça, eu gosto dessa falta de articulação, acho sadio. Porque acaba por quebrar as normas, gerando uma desordem que reflete muito o mundo contemporâneo. Você acha que o [Fernando] Catatau está preocupado se gosta mais de rock do que de MPB? Ele está fazendo o som dele e pronto. Ele tem o seu público, criado a partir da internet, das redes sociais. Não ter a rádio e as outras mídias tradicionais nos rotulando, ajuda muito. Elas estão totalmente perdidas, sem saber como lidar com estas questões. A palavra MPB não está mais cabendo. MPB é som de festival! É sério demais! [risos]. Minha geração tem uma postura tão “cagando e andando” que soa falso falar em MPB. É o rótulo que mais me incomoda. Para mim, música popular brasileira é aquela feita no Recôncavo baiano por um mestre de samba de roda que compõe as suas cantigas e confecciona seu próprio instrumento. Quando você fala em MPB, a primeira coisa que me vem na cabeça é um cara entrando no festival da Record, lá nos anos 60. É meio Sérgio Ricardo quebrando o violão, sabe? É você se posicionar diante do público, fazer aquele olhar de Che Guevara e ter certeza que irá mudar o mundo com o violão. Tem esse peso e foi importantíssimo que tivesse naquela época. Mas essa MPB morreu. Pra mim, ela começou a dar sinais que andava mal das pernas quando, nos anos 80, passou a usar aqueles teclados, tudo com reverbe, e se tornou música da novela. A Joana no Globo de Ouro era o máximo da MPB. Estava tudo contaminado por essa estética. Era o uso da tecnologia de forma totalmente deslumbrada. Eu me lembro que comecei a ouvir rock porque tinha trauma de ouvir esse tipo de música. Era a música da minha mãe! Não posso ouvir a música que a minha mãe ouve na novela! [gargalhadas]. Nos anos 90 apareceu, principalmente em São Paulo, alguns compositores novos, curiosamente, nenhum paulistano: Chico César, Zeca Baleiro e Rita Ribeiro. E, no Rio, Marisa Monte represenou o último suspiro da MPB. Uma MPB que o jovem poderia curtir sem ter vergonha, só que ainda presa às grandes gravadoras e sob o aval de Caetano, [Gilberto] Gil e outros medalhões. Nessa mesma década, a mídia já enfrentava dificuldades em chamar o Chico Science & Nação Zumbi de MPB. Já não cabia. Era muito mais fácil classificá-los como rock nacional. E, inegavelmente, a minha geração tem muito a ver com o mangue beat. Todo mundo tem um pé no rock: Tulipa, [Marcelo] Jeneci, Romulo... Cada um do seu jeito, mas tem. Assim, a única coisa que posso lhe garantir é que nós, “cagando e andando” para a MPB, acabamos por enterrá-la de vez. Se temos algum mérito é o de tê-la assassinado! [gargalhadas]. E isto já me deixa muito satisfeito. [risos].
JUÇARA – Ela já estava agonizando, a coitadinha! [risos].
KIKO – Nem precisou dar tiro! [risos].
KIKO – Eu nunca estudei uma música do Baden na minha vida. Nunca tirei nada dele no violão. Acho que me encontro com Baden no momento em que exploro o violão de um jeito não convencional. Foi o que Baden fez. Seu violão absorvia tudo, desde a escola do choro, passando por Garoto até chegar à bossa nova. Ele saía misturando e não parecia preocupado com os rótulos. Se você pensar o violão de uma maneira não convencional, você vai, em algum momento, se deparar com Baden. É inevitável. Ele é o pai do violão moderno. Mas não posso dizer que fui influenciado enormemente por ele. O outro ponto de encontro é a assimilação da música de candomblé em nossos trabalhos. Nós bebemos da mesma fonte. Eu dou todo o crédito a ele, Baden fez isto antes de mim. Mas não acho que faço igual. Respeito o seu legado, mas não sou a continuação do Baden Powell. Nem tenho capacidade para isso. O Baden explorou o violão de ponta a ponta. Ele começou a sair das convenções por estas já não responderem a todas as suas questões. E eu comecei a sair porque não tinha explorado nada! Nunca fui capaz de tirar uma música do Dilermando Reis no violão. O que me aproxima do Baden são coincidências e não referências. E quanto a’Os Afro-sambas, se tem alguma influência, é porque estou dialogando com a África através do violão, do mesmo jeito que ele dialogou. Mas agora, quanto às letras, não me identifico em absolutamente nada com o Vinícius [de Moraes]. Se você achar alguma letra de minha autoria que pareça com alguma do Vinícius me mostra, porque eu desconheço! [risos].
BD – Como vocês dois se conheceram e de onde surgiu esse interesse pelas religiões afro-brasileiras?
KIKO – Nós tínhamos um amigo em comum, que é falecido, o Ney Mesquita. Ele foi um grande cantor de São Paulo e figura marcante na noite. Era muito ligado ao pessoal do grupo A Barca. O Ney me levou até eles e acabei virando colega da Juçara, do Lincoln e do Marcelo Preto. Ele me pegava e, onde quer que fosse, me apresentava, me fazendo cantar um samba.
JUÇARA – O Ney tinha essa característica catalisadora, ele chegava nos lugares e tratava de apresentar as pessoas. E ele fez isso com a gente. Eu e mais um grupo de amigos formávamos A Barca, onde trabalhávamos com repertório de música tradicional. Boa parte dele baseado nas músicas de candomblé, tambor de mina, umbanda... Quando conheci o Kiko, fiquei impressionada. Pela primeira vez vi alguém com trabalho de composição que dialogava genuinamente com o que havia na cerimônia. A estrutura de suas canções trazia a referência da batida no candomblé. Achei encantador e, a partir daí, nos animamos em trabalhar juntos.
KIKO – Sempre fui ligado em cultura popular. Foi este interesse que me fez cair em um terreiro: “Pô, tem alguma coisa que o samba urbano, o samba da rádio, não me mostra”. Se você pegar os sambas do Cartola, por exemplo, não têm nenhuma macumba e vários falam de Senhor, Jesus... É quase gospel! Nelson Cavaquinho é a mesma coisa. Ao mesmo tempo eu ouvia Clementina [de Jesus] que trazia nossa ancestralidade à tona... E é muito estranho, porque se você pensar no Cartola, ele era o que chamamos de cambono: o cara que ajudava na manutenção do terreiro. O Cartola quando jovem, foi do culto. Ele levava despacho e coisa e tal. Há uma entrevista em que ele comenta esses fatos. Aí eu comecei a ficar muito incomodado: “Por que estão escondendo isso? Por que o samba só é legal com esse verniz europeu, com uma regionalzinha ou orquestra?”. O samba foi perdendo o seu jeito mais cru, mais próximo de suas origens, da Pequena África [região do Rio de Janeiro, entre o século XIX e início do XX, habitada por escravos alforriados] da Tia Ciata, deixando de aglutinar a religião em sua música. Pixinguinha, embora tenha se dedicado ao choro e, com isso, sofrido uma forte influência da tradição européia, ainda manteve musicalmente alguns elos com a religião afro.
JUÇARA – Inicialmente, o samba não tinha uma estrutura de canção. Ouça “Yaô” [Pixinguinha/Gastão Viana] e “Patrão, Prenda Seu Gato” [João da Baiana/Pixinguinha/Donga], parecem vários pontos que foram costurados.
KIKO – E aí eu comecei a me interessar pelas religiões afro-brasileiras. Se você observar, na Bahia, no candomblé de Angola, tem uma batida que o pessoal chama de cabula que é o samba: tchá-tchá-tchá-tchá-tchá-tchu-tac, tchá-tchá-tchá-tchá-tchá-tchu-tac. Que é a batida do samba de roda do Recôncavo. Nesse momento, caiu a ficha e fui atrás, comecei a ir aos terreiros. Tive a ideia de fazer um documentário sobre Exu porque fiquei apaixonado pela sua figura. Entrei para o culto e passei a ter outro tipo de relação, de dentro para fora, diferente de um pesquisador. Tudo aconteceu naturalmente, não foi “hoje eu vou virar macumbeiro”! [risos]. Foi aos poucos, quando vi, já estava.
BD – Como surgiu a ideia de gravar o Padê?
KIKO – O Padê era para ser um show de samba da Juçara, que se chamava A Toda Hora Rola Uma História, que é uma música do Paulinho da Viola. E aí a Juçara falou: “Kiko, vamos montar um show: eu, você, violão, percussão... Já está tudo marcado”. E a gente começou a brincar... Lembro que a nossa primeira experiência foi pegar uma música do Batatinha e, durante o ensaio, começar a fugir do samba: “Vamos ficar só neste groove a música inteira?”.
JUÇARA – “Ah, e se a gente enchesse de silêncio?”. Cada um ia propondo um negócio e o outro embarcava.
KIKO – E aí quando a gente foi gravar o disco da Juçara, só com violão e composições minhas, eu falava: “Ó, Ju, fiz uma música aqui de zoeira. Duas frases só, não é canção”. Ela dizia: “Não! Eu vou gravar”! A letra de “Padê” é basicamente: “Abre o caminho, o sentinela está na porta/Abre o caminho, deixa o mensageiro passar”! E acabou!
JUÇARA – Exatamente isso! Ela tem uma força!
KIKO – Aí nos tornamos parceiros e, um belo dia, ela disse: “Kiko, vou botar seu nome no disco”. Eu: “Não! Que isso?!”.
JUÇARA – Para mim não fazia sentido ter só meu nome. Era um disco da parceria. O Kiko e as suas músicas me deram ânimo para gravá-lo.
KIKO – E é uma coisa que a gente leva até hoje. Até agora eu não consegui fazer um disco solo.
JUÇARA - Nem eu! [risos]. E é engraçado, porque as pessoas não entendem direito: “Mas o CD é do Kiko ou da Juçara?!”; “Hã? Parceria?!”.
KIKO – “Pode?!”. [gargalhadas]. “Mas não tem nem foto sua na capa!”.
JUÇARA – Agora o trio [o projeto Metá Metá] é outro negócio complicado: “Mas é um trio? É uma banda?”. “Não, não é uma banda, é o Thiago [França], a Juçara e o Kiko”.
KIKO – O mercado tem dificuldade de assimilar esses formatos. Eu lancei cinco discos com parceiros diferentes e ainda tem gente da imprensa que acha que o meu último é o Afromacarrônico, de 2008!
BD – E a quantas anda o projeto Cortes Curtos?
KIKO – Ah, eu estou elaborando, experimentando em shows, vendo o melhor formato para o CD. Mas acho que será eu e mais dois músicos. Possivelmente gravado ao vivo, que nem foi o Metá Metá. E a ideia é trabalhar com a canção de um jeito diferente, inspirando-se na troca de informações do mundo virtual, no Twitter, nas mensagens instantâneas e abreviadas e, ao mesmo tempo, na cultura popular. Porque a cultura popular vem de vinhetas, não é? Se você pegar o tambor de crioula, você encontra músicas que são dois versos. O samba de carnaval carioca também. Sempre cito “Chega de Demanda”, do Cartola: “Chega de demanda, chega/Com este time temos que ganhar/Somos da estação primeira/Salve o morro de mangueira”. A Mangueira desfilou só com esses quatro versos. O partido alto era só o refrão, os caras botavam a estrofe depois. Minha intenção é relacionar essa estrutura popular com a desordem do mundo atual. É basicamente isto. Tenho utilizado como referências o Tom Zé do Estudando o Samba e Todos os Olhos e o Itamar Assumpção de Às Próprias Custas S.A.
BD – Uma das características desta nova geração é a sua versatilidade ao trabalhar com outras mídias. Você dirigiu o documentário e também trabalha com xilogravura. Como é isso? Os suportes se misturam na hora de você criar algo?
KIKO – Para mim a música é a atividade principal, mas posso ficar um ano fazendo filme, de repente. É uma tendência do mundo contemporâneo mesmo, se você quiser sobreviver à crise terá que atuar em diversos meios. Eu sou músico, mas posso ser outra coisa também. No meu caso é bem simples, pois trabalho com criação, com ideias poéticas... Sempre penso em qual suporte elas se enquadrariam melhor. Fiz um documentário sobre Exu, pois não caberia fazer um disco ou uma canção que falasse de sua história. Teria que ser audiovisual. O meu processo é este. Mas tem também o lado da sobrevivência. A música me deixa na mão muitas vezes na hora de pagar o aluguel. Aí já vendo gravura! Tenho essa coisa de vendedor ambulante, meio “se vira nos trinta”, que vai vender bolacha no farol, tá ligado? [gargalhadas].