efêmeros, perenes e antropofágicos


fred coelho | fotos: daryan dornelles




“O samba, a prontidão e outras bossas são nossas coisas, são coisas nossas”. A canção de Noel Rosa, lançada em 1932, retrata muito bem o espírito de sua época, em que o Estado buscava com certa urgência uma identidade para o país. O Brasil, então agrário e com a esmagadora maioria de sua população analfabeta, assistiu à busca desenfreada de seus intelectuais por elementos simbólicos capazes de efetivar um discurso nacionalista que traria em si o status de uma almejada modernidade. Com forte caráter populista, o Estado utilizou o rádio - o meio de comunicação em massa mais acessível da época – para criar uma identidade nacional, catapultando o samba carioca – até então restrito a um gueto étnico – como gênero máximo de nossa tradição popular. Assim, criou-se artificialmente um nacionalismo que, remetendo a mitos fundadores da nação, impôs uma representação identitária homogeneizante, voltada muito mais para a construção das bases de uma sociedade industrial do que para a representação dos múltiplos aspectos de um país fragmentado.
Desta forma, ao longo do século passado, a ideia de uma pátria de raízes fortes e imemoriais foi ganhando força e gerando atritos sempre que um novo “modismo” guiado por mãos “estrangeiras” invadia a nação e se fundia aos gêneros considerados nacionais. Assim foi com a bossa nova, a jovem guarda, o tropicalismo, o BRock e outros tantos. Se, por um lado, estes eram ovacionados pelo frescor que traziam à música brasileira, por outro, recebiam severas críticas de alas conservadoras – tanto de direita quanto de esquerda  – que acreditavam piamente na autenticidade de uma “estética brasileira”. Basta que nos lembremos da Passeata Contra a Guitarra Elétrica, realizada em 17 de julho de 1967, que contou com a presença de Elis Regina, Jair Rodrigues, Zé Keti, Geraldo Vandré, Edu Lobo, MPB-4 e até mesmo Gilberto Gil. Ou do conflito entre a intitulada MPB – vista como vanguardista, mas, paradoxalmente, defensora de certas tradições – e os tropicalistas. Aqui, cabe um parêntese: o termo MPB, surgido nos anos 1960 e utilizado para designar um gênero com forte influência da bossa nova e da música folclórica, ganhou tantos nuances ao longo das últimas décadas que, hoje, já extremamente distendido, chega a ser utilizado – talvez de forma um tanto inadequada - para designar qualquer música produzida no país. Esta elasticidade parece  ter atingido seu limite máximo com a aparição da neoMPB. Nascidos em um mundo digital, multicultural e globalizado, os artistas desta geração mostraram-se extremamente hábeis em transitar, com recursos próprios e de forma individualizada, por diversas identidades musicais sem se prender a nenhuma delas, sempre se defendendo de qualquer possível rótulo que viesse a restringi-los. Esta volatilidade gerou algum desconforto e abriu espaço para questionamentos: Como é possível, em tal contexto, construir uma identidade artística consistente? Ou melhor, qual o mérito em ter uma identidade artística tão coesa e rígida? Indo além, vale notar que a contestação de uma “genuína identidade musical brasileira” traz em si um cosmopolitismo que, em termos artísticos, é extremamente enriquecedor, mas que também é capaz de tornar cada vez mais malvistos os artistas que se fixam esteticamente a algum gênero “tradicional”. Assim, volta-se a se discutir a ideia da identidade ou “brasilidade” em nossa música. Música esta que, por sua própria condição histórica, traz uma infinidade de facetas e uma enorme capacidade apropriativa ou, como diriam alguns, antropofágica.
Prestes a completar dois anos ao  lado do Banda Desenhada, decidi me aprofundar nestas questões com o pesquisador e ensaísta carioca Fred Coelho. Professor de Literatura Brasileira e Artes Cênicas da PUC-Rio, Fred trabalhou como pesquisador do NUM (Núcleo de Estudos Musicais) e, desde 2009, vem atuando no NELIM (Núcleo de Estudos sobre Literatura e Música). Também publicou artigos em coletâneas e organizou, ao lado de Santuza Naves e Tatiana Bacal, o livro MPB - Entrevistas (Editora UFMG, 2005). Trabalhou em 2006 com pesquisador e publicou artigo no catálogo da exposição “Tropicalia - A Revolution in Brazilian Culture” (Cosac Naify, 2006). No ano seguinte, participou da pesquisa e  elaboração de conteúdo do site Tropicália. Fez também o conteúdo completo do site Nara Leão, lançado em 2012. Organizou três livros da série “Encontros”, da Azougue Editorial: “Tropicália” com Sérgio Cohn (2008), “Tom Jobim” com Daniel Caetano (2011) e “Silviano Santiago” (2011). Em 2012, foi curador ao lado de André Valias da exposição “GIL70”, dedicada à carreira de Gilberto Gil, realizada no Centro Cultural Correios (RJ) e no Itaú Cultural (SP).
Convocado para esta empreitada, Fred respondeu às minhas questões ao longo de alguns meses, em uma constante troca de e-mails. Durante o processo, discutimos e tentamos compreender melhor do que se trata essa tal neoMPB, quais são suas origens e suas particularidades.
Enfim, boa leitura!
Márcio Bulk.

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