MUITO!



Bruno Cosentino + Marcos Campello

1. Muito
Caetano Veloso
Voz: Bruno Cosentino
Guitarra, tacos e ventilador: Marcos Campello

Produzido por Marcos Campello e Márcio Bulk
Mixado por Marcos Campello
Masterizado por Martin Scian
Projeto gráfico: Márcio Bulk


Mesmo que parecesse ser modesto – Muito! por Bruno Cosentino, Marcos Campello e Márcio Bulk
Raul Lorenzeti

Mudanças implicam revisões. Esculhambar lembranças e aproveitar para reflexões que fatalmente levam a algum tipo de cura. Muito!, de Marcos Campello, Bruno Cosentino e Márcio Bulk vem desse processo.

Tanto Cosentino com Babies, 2016, como Campello com Bansa, 2015, já mostravam interesse na crueza do registro, no sumo da performance plasmado no suporte (ainda que cada um num lugar específico e distinto da música). Foi Bulk quem propiciou o encontro, retomando uma ideia bem-sucedida em Soluços, 2013, e Banquete, 2014: fazer da canção o encontro entre o experimento e a tradição quebrando a hierarquia entre o som marginal e o consagrado.

Gravada numa casa em reformas, vazia, com os restos do que foi ali jazendo e exprimindo sons, lembranças encarnadas no corpo de quem ouve, Muito vira outra coisa. É como se a música e seu arranjo original, presentes no disco homônimo de Caetano Veloso de 1978, tivessem sido limados, talhados, lixados até o núcleo e o que sobrou é de certa forma tão essencial que avança noutra direção: aponta as possibilidades de uma canção menos interessada em ser estímulo, mais afeita a convidar o ouvinte a se aventurar na floresta dos signos e dos sentidos.

A guitarra de tons cansados de Campello e suas cordas afinadas em tons semialeatórios, amaciadas de todo o esporro sonoro que é a sua vida fora da canção, anuncia: as coisas não estão em ponto de bala como em Muito, de Veloso. Aqui, as coisas estão em obras e o fonograma nos indica o processo, o fazer, quase como a bola cantada por Lucier em I Am Sitting in a Room, 1969.

A interpretação do duo é tão enérgica e tão próxima como somente um encontro entre poesia e música poderia ser: sem salas acusticamente tratadas, sem playback e cantor na técnica. As coisas foram feitas cara a cara, ao vivo, um influindo no gesto do outro, um bebendo das dobras que o outro infligia ao tempo que vai se erguendo em forma variada, sem pistas do que vem a seguir. 

Quando canta, Cosentino e sua voz lânguida, de acento carioca, tomam parte da poesia que só existe no recriar, recitar, tomar conta do texto, regurgitar e ativar outra escuta, ainda que se aproxime do original enunciado. Os sons ambientes, pr’além da curiosidade, trazem a urgência do registro que trabalha noutra chave que não é só tensão e repouso. Abrem-se as sinapses no toque das pás do ventilador no captador da guitarra de Campello – ou seria um motor?

Todos os desatinos que levaram Bulk, Campello e Cosentino a se jogarem numa releitura sem escrúpulos ou reverências passam, definitivamente, pelo entendimento de que uma interpretação não esgota o signo, não define caminho, mas pode furar a superfície lisa e estéril do discurso consagrado/oficial feito mato no asfalto. 

Esse processo revela um cuidado interessante: o trio não se serve dos instrumentos, dos sons e do ambiente como artesãos modificando a matéria, mas a eles servem para que recuperem sua natureza original, viva. Citando Octavio Paz, “servo da linguagem, seja ela qual for, o artista a transcende”.

É outra forma para a mesma substância de Caetano, e pode ser questão de tempo até que esse modo de fazer fossilize no armário prático das referências. Todavia, enquanto o foco for no processo, o que se ergue é mutante e vivo, é incerto e indeciso, prenhe de sentido.

Onde é necessário uma nova obra por mês, focar nesta enquanto processo parece ser, sempre, digno de escuta.


TEMPOS ABSURDOS EM BANQUETE DE MÁRCIO BULK E CADU TENÓRIO

foto: daryan dornelles


Agora percebo, então, que a esperança não pode ser eludida para sempre e que
pode assaltar os mesmos que se achavam livres dela. 
(CAMUS, Albert. A criação sem amanhã. O Mito de Sísifo)

Em 2013, o Brasil conseguiu se tornar um lugar mais esquisito do que sempre foi: os protestos em São Paulo e no Rio de Janeiro transmutavam-se em algo que a teoria não dava conta. Diferentemente de Hardt e Negri, pensava-se em pauta, em discurso, em enunciado e, quando menos se percebeu, o choque com o Estado e a revolta com a “mídia golpista” caminhava para um apaziguamento com muito orgulho, com muito amor. O ano de 2013 também é o ano do lançamento de E Volto Pra Curtir, disco tributo a Jards Macalé.

Capitaneado pelo artista plástico de formação, jornalista e letrista nascido em Nova Iguaçu, Márcio Bulk, o disco era uma homenagem ao maldito e a sua atuação pelas bordas da MPB. Macalé havia se tornado um tema recorrente à contemporaneidade viva e dialeticamente desperta: recuperou-se sua obra e sua figura, deslocando-o do armazém de mercadorias culturais, onde se costuma buscar receitas abstratas. A análise crítica do presente e a possibilidade de uma apropriação produtiva da herança do passado tomavam forma no documentário Jards (2012), de Eryk Rocha, e na reprensagem, em 2013, do disco compacto Só Morto (1969-1970), o primeiro da carreira do compositor. Sim, Walter Benjamin descarado justificando o Macalé que balbuciou sobre o presente lá do passado.


Bulk ouviu o compacto e, como costuma acontecer com todo mundo que tem contato com este disco, apaixonou-se por “Soluços”. O contato, por conta de E Volto Pra Curtir, com músicos da cena experimental do Rio de Janeiro, como Marcos Campello e Bruno Cosentino (este mais “poroso” à canção que o primeiro) acabou providenciando o encontro com Cadu Tenório, músico crescido na zona norte do Rio, beirando a linha do trem, onde vive até hoje. Juntos, realizaram o EP Soluços com a participação de Alice Caymmi.


“Eu chapei! Achei aquilo demais. Não que seja uma fórmula, mas saca quando você vê algo que é a sua cara? Foi isso que eu achei. É isso! Isso é meu!” — comenta Bulk sobre o trabalho de Tenório, reconstruindo a sonoridade da canção a partir de uma gravação voz (Alice Caymmi) e guitarra (Lucas Vasconcellos), esta completamente extirpada do resultado final. Desenhava-se, nesta obra, neste processo, o modus operandi de Banquete (2014).


Composto a partir de letras que Bulk recuperou e remixou de um blog que mantinha nos anos 90, Banquete é um disco composto de 4 faixas: “Café Expresso”, “Estela”, “Electric Fish” e “Em Transe”. As letras foram enviadas a Bruno Cosentino, Rafael Rocha e César Lacerda, que providenciaram a primeira encarnação das canções, arranjadas ao violão para as vozes de Michele Leal, Alice Caymmi, Livia Nestróvski e Letícia Novaes, que não participou do disco, sendo substituída pela voz de César Lacerda em “Electric Fish” (curiosamente, nenhuma mulher se dispôs a cantar uma canção que versa sobre sexo oral).


Voz e violão, formato clássico de canção, aquela mesma que disseram ter acabado, dez anos antes da produção deste álbum.


Antes de falar da implosão deste formato no processamento de cada fonograma, é interessante olhar para o disco. A capa é uma natureza morta, do séc. XVII, de Jacques Linard. Ao enviar as letras que virariam canções, Bulk enviou também a capa do disco para os músicos. A tela é feita de corais e conchas dispostas sobre um fundo preto — o fundo do oceano — e é impossível não associar esta imagem ao trabalho de Tenório no arranjo das canções.


O mar está presente em "Estela”; o peixe, em “Electric Fish”; a comida, em “Café Expresso”; e “Em Transe”, um banquete oceânico. Quando da construção das letras, Bulk lia O Banquete, de Platão, e Fragmentos de um Discurso Amoroso, de Roland Barthes. Para remixar as letras de 20 anos antes, a leitura de ambos foi retomada. Quase o nome do disco virou Fragmentos..., mas seria óbvio demais. Banquete ganhou a parada.


E, como Aristófanes pontua no diálogo platônico, o disco trata do complexo caminho — e dos desdobramentos disso — até a outra metade, aquela que faz homens e mulheres correrem esbaforidos, em pânico, no desejo de voltarem a ser inteiros, uma vez divididos pela sabedoria de Zeus. O discurso é amoroso, quase perverso; a forma, primeira, é do samba-canção.


A ordem das canções era outra e contavam uma história contemporânea: um encontro casual, o enlace, a despedida e a avaliação. Uma vez alterada por conta de dinâmicas e da necessidade de conceber um álbum mais coeso na sonoridade que no sentido, produzem outro enunciado, mais focado nas realizações a partir de um passado cristalizado/consagrado — a forma samba-canção, apontando para outras possibilidades de escuta e produção da canção: a corporificação da letra na performance não está inteira no primeiro plano, é tensionada pela mancha sonora que ocupa o lugar consolidado do violão/harmonia na forma canção.


“A canção existe e sabemos que ela é de suma importância junto à sua letra. No Banquete também o é, muito. Porém, rolou o cuidado de que a voz pudesse descer do palanque e, entre aspas, disputasse por vezes com o peso musical, com a emoção e o peso do arranjo, como numa relação de simbiose. Uma tentativa de diálogo com menos formalidade” — explica Tenório sobre a concepção dos arranjos e da sonoridade que perpassa o disco.


“Café Expresso” abre o disco na interpretação de Michele Leal. De início, um ruído e um violão processado até se parecer com um piano, dão pistas do que está por vir. Uma música sem refrão, com algo que se aproxima de parte A e B, porém, com um trecho de spoken word ao final, submerso entre ruídos de fita e cordas tocadas ao contrário. Anuncia-se aí a diferença de escuta: dificilmente irá se entender toda a letra na primeira escuta pois, de fato, existe uma disputa com o arranjo pelo lugar de atenção do ouvinte.


A tecnologia utilizada para tensionar os limites da linguagem: esta é a tese que interessa em Banquete. Este disco não seria possível sem um olhar para o passado que tensiona ao invés de explicar o presente; tampouco seria realizado sem a invenção do transistor, da fita, do processamento digital do som, da contínua evolução da tecnologia.


Bulk e Tenório foram muito felizes em propor outro lugar para a canção. Um lugar que parte do samba-canção, mas que o implode no som e na letra (É pela voz que eu desisto/Não preciso levantar/Enamoro a derrota/vou ao fundo/abraçando o desafino em um samba-canção manco — em "Em Transe"); um lugar coletivo e desmaterializado, parecido com a forma como nos relacionamos hoje, e é sintomático que o disco não tenha ganhado espaço na mídia impressa, chegando até nós via post no Facebook.


A música de Macalé já tinha cantado a bola, partindo da borda, desafinando o coro dos contentes, apontando que as mudanças estão ocorrendo e, talvez, o desejo de ver o mundo através de um filtro, de sobrepor um sistema racional a sua aparente aleatoriedade, seja o limitador da canção. Vivemos tempos absurdos — sempre vive(re)mos — e, retomando o Camus da citação que abre o texto, “ [...] todo pensamento que renuncia à unidade exalta a diversidade. E a diversidade é o lugar da arte. O único pensamento que liberta o espírito é o que o deixa sozinho, certo de seus limites e do seu fim próximo[...] Por isso, peço à criação absurda o mesmo que exigia do pensamento: revolta, liberdade e diversidade. Depois ela manifestará sua profunda inutilidade [...]”.


Banquete trata-se de uma obra sem esperança de organizar as coisas, calcada mais na disputa do que no enlace de letra e música. Este, nos parece, é um caminho interessante para a canção, uma apropriação produtiva da herança do passado. Ser diversa, revolta e livre para, ao final, não importar, pois está ali enquanto tensão, sem moral, sem princípio organizador uma vez que não há o que organize a vida e a linguagem é espelho desse universo caótico, correndo atrás de algo impossível de alcançar.



Raul Lorenzeti é editor web do Selo Sesc. A resenha foi escrita originalmente para a conclusão da disciplina Canção Popular e Cultura, ministrada por Cacá Machado, no curso de pós-graduação sobre canção popular brasileira, da Faculdade Santa Marcelina.

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colagem: márcio bulk

Quando era pequeno, meu filho costumava pedir que eu cantasse sobre qualquer objeto, animal ou situação que passasse pela sua cabeça. Ele trazia uma certeza absoluta de que, para qualquer coisa no mundo, haveria de existir uma música. Então, cantávamos para formigas, chocolate, areia, cama, balde, camisa, elefante, garfo, panela, vento... E como ele estava certo!

Desde que eu era criança, as estações do ano me parecem ser representadas por ciclos festivos. No calor, as músicas e danças também ficam mais quentes e leves, precisam de ar e espaço, por isso tomam os terreiros e quintais até chegarem às ruas. No inverno, chove e a música ocupa as salas, as varandas, os arraiais, e dançamos mais juntos, em par ou de mãos dadas. E foi assim que escolhi minha profissão: quando entendi que a música é necessidade que vem do corpo, um instinto primeiro, quase como mamar e chorar. Percebi que ela, a música, também vem do chão, das plantas, do mar... Vem da parte mais profunda da nossa natureza e assim sempre se transforma e pode nos ajudar a transcender e a buscar o divino — com todas as diferentes faces que o divino possa ter.

Aos 18 anos, escolhi ser percussionista. Pouco depois, percebi que precisava falar e cantar sobre as coisas que ouvia, lia, via e sentia, e assim comecei a compor – essa é uma das partes mais instigantes e desafiadoras do trabalho criativo. Eu me assumi cantora quando percebi que queria encontrar a minha própria voz  e essa é uma busca para toda a vida. Escolhi ser musicista aos 18 anos e escolhi continuar sendo outras tantas vezes.


Dentre todas as atividades que exerço no meu trabalho (cantar, tocar, compor, ensaiar, gravar, produzir, ensinar, escrever, estudar), boa parte dos meus esforços são para que exista o momento do show. O palco (seja real ou imagético) é, para mim, o lugar do encontro, onde a música fica quase tátil, ganha espaço no ambiente, transpassa nossos corpos e nos aproxima, renova o sentido das coisas e os desejos, fortalece as vontades e faz valer a pena até os dias mais difíceis. 
Nem todo show é perfeito. Nem todo show é fácil. Não há "jogo ganho" assim como acontece em qualquer encontro, mas é justamente esse desafio que deixa tudo mais instigante. Esse é o momento em que coloco o meu “brinquedo na rua” e reafirmo meus compromissos comigo mesma, com o lugar e com a cultura que me formaram  e compromisso não significa estar preso ou amarrado, significa reconhecer de onde você veio e falar das pessoas com quem brincou e, principalmente, dos que brincaram muito antes de você existir; significa pensar pra onde se quer ir. Reconhecer isso pode ser libertador!


Alessandra Leão

Verão de 2015

Alessandra Leão é cantora, compositora e percussionista. Integrou, inicialmente, a banda Comadre Fulorzinha, com quem lançou o disco homônimo (1999, CPC Unes). Seu primeiro álbum solo, Brinquedo de Tambor (independente), foi lançado em 2006. Em 2008, idealizou e coordenou o projeto Folia de Santo (Garganta Records). Em 2009, promoveu seu segundo trabalho, Dois Cordões (Garganta Records). No ano seguinte, compôs a trilha sonora do espetáculo teatral Guerreiras, de  Luciana Lyra. No final de 2014 e ao longo de 2015, esteve envolvida na produção e na divulgação de Língua (Garganta Records), a trilogia de EPs constituída dos capítulos: Pedra de Sal, Aço e Língua.

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colagem: márcio bulk

A música nasceu para mim, no meu delírio genealógico, do enleio entre o útero da minha mãe, sua musicalidade e o seu canto. Penso nos meses da sua gravidez, penso nela ao tocar piano e, por fim, lembro-me de que os pequenos acalantos improvisados para me ninar foram o nosso primeiro código tácito de afeto. Inicio assim, com uma digressão, como forma de explicar (e também compreender) o papel da música para mim como gesto afetivo, completamente ligado aos sentidos, e determinantemente empírico; subjetivo.

Sou nascido numa pequena cidade do interior de Minas Gerais: Diamantina. Uma cidadela tradicional mineira, que tem hoje algo em torno de cinquenta mil habitantes, com uma história muito interessante e de especial protagonismo por um período da história do Brasil. Com profunda vocação para a música e para a musicalidade, é uma cidade festiva e de arquitetura barroca leve e clara. Minha mãe, uma pianista mulata, nasceu e foi criada lá, tendo sido por alguns anos a diretora do Conservatório de Música. Casou-se com meu pai, um comerciante de olhos claros nascido na região central de Minas Gerais, Moema. A influência mais direta da música na vida da minha família, através de um ensino mais formal, está relacionado efetivamente à minha mãe. Cresci junto dela, fazendo aulas e oficinas na sua escola de música. Somos três irmãos, dois homens e uma mulher, e todos temos a música apontando para o norte de nossas bússolas. Meu pai, por sua vez, sempre foi um profundo admirador da música e na sua adolescência chegou a ser percussionista numa banda de baile. Toda a informação de música regional e verdadeiramente popular, com traço romântico ou mesmo brega, veio dele. E portanto, na nossa família a música deve ser compreendida sempre através dessa narrativa ambivalente. A porosidade do nosso tecido é atuante desde o encontro dos nossos pais.

Algo marcante nessa trajetória em busca do fazer música, tornar-se um músico, surgiu ainda na infância quando os heróis dos desenhos animados da TV começaram a dividir o seu protagonismo com os músicos pop stars que surgiam através da chegada da adolescência dos meus irmãos mais velhos. E que eu, naturalmente, ouvia. Isso coincidiu com a chegada de um aparelho que tocava CD lá em casa. Lembro-me com clareza das tardes que passei ouvindo discos, imitando os músicos, e formulando em mim um incipiente desejo de ser aquilo, e não mais jogador de futebol ou, sei lá, astronauta.

A história se desdobra nos diversos momentos que vieram a seguir. A descoberta, pouco a pouco, dos universos mais distintos, dos territórios mais maravilhosos que a música viria a ocupar no centro da minha fruição; tantos e tantos e tantos e tantos discos, shows, concertos, elevadores, propagandas... Não obstante, foi entre e infância e adolescência que tive a chance de me aproximar de diversos instrumentos e me sentir seduzido pela oportunidade de querer todos como forma de expressão. Estudei violão, piano, flauta, violino, percussão, bateria, canto... enfim, uma infinidade de possibilidades. E isso, para mim, só explica o fato de que a música foi se tornando exclusivamente um meio de expressão. Uma língua inventada por mim, pela minha compreensão das coisas, onde seria possível me conectar com o mundo através das formas mais subjetivas. É como se a música fosse, em suma, o meu meio de me ligar a esse centro sagrado, esse magma espiritual que, de uma forma ou de outra, a existência de todos aqui na Terra tenta, ao menos, triscar. Fazer música, tê-la comigo como algo além de uma profissão, mas um status que me define para além até da sociedade, é dividir com o mundo uma instabilidade que toca a todos. Essa busca do eu, de afunilar a percepção do mundo para uma compilação de sensações (uma canção!), tentar reproduzir isso, fazer com essa expressão chegue à sensibilidade do outro e o atravesse... em suma, a música foi se tornando isso para mim.

Agora, ocorre-me o exemplo da luz, do feixe de luz que atravessa uma pessoa, preenche seu corpo, sua saúde, sua matéria desse finíssimo pó de existência. Penso na música através desse exemplo e encontro abrigo. Percebo nela uma fragilidade, uma ambígua coadunação com o silêncio. E ao mesmo tempo, e por isso mesmo, uma força violenta que pode abrir canais da existência de formas avassaladoras, e se manifestar através de lágrimas, sorrisos, decisões, apontamentos, coragem, amor.

E tendo dito isso, coloco-me em vida à prova disso tudo. Sabendo que a deusa Música abre seus canais de diálogo com uma sensibilidade única, ligar-se a ela é exercício meditativo diário. Penso sempre que esses canais que foram abertos com grandeza épica nesta época que vivemos, trouxe também uma desordem grande, um cansaço, um distúrbio, um sintoma. E música, para mim, tem também se tornado uma busca pelo silêncio. Fazê-la tem sido oportunidade de não persegui-la.

Em suma, esse castelo de areia que se constrói para se explicar o artesanato da feitura da música se choca diretamente com a existência dela nas nossas vidas. Afinal, música e silêncio serão sempre maiores que o nosso falatório (‘inda que o falatório deseje ser poesia, e portanto música). E por fim, respondo-te: Porque você faz música? Não sei.

César Lacerda é cantor, compositor e multi-instrumentista. Lançou seu primeiro álbum, Porquê da voz (independente) em 2013. Seu disco seguinte, Paralelos & infinitos, foi lançado em 2015 pela gravadora Joia Moderna. Paralelamente, participou de diversos projetos, como Instantâneos (DOBRA/Bolacha Discos), Banquete (Banda Desenhada Records) e Mar Azul (Slap).

A MÚSICA DA FALA

foto: daryan dornelles
No ano de 1985, em meio a punks e skatistas, já era possível assistir aos primeiros b-boys se reunindo na estação de metrô São Bento, no centro da capital paulistana. A cultura hip-hop, vista não só como uma forma de entretenimento, mas também de protesto e de superação, encontrou nos jovens das periferias de São Paulo um terreno fértil para se desenvolver. Musicalmente, o rap era a linguagem mais legítima, criativa e poética para aqueles que vinham, há gerações, sofrendo de extrema vulnerabilidade social.

Mesmo utilizando uma linguagem bastante hostil e invasiva, o rap conseguiu ganhar espaço na mídia na década seguinte. Não era mais possível ignorar a agitação promovida por nomes como Racionais MC’s (SP), Pavilhão 9 (SP), MV Bill (RJ), Planet Hemp (RJ), Faces do Subúrbio (PE), GOG (DF), Câmbio Negro (DF) e seus milhares de seguidores. Entretanto, com a virada do século, ficaram nítidas as mudanças pelas quais o rap nacional estava passando: mais permeável, aderiu-se a outros gêneros e discursos, atenuando assim o seu caráter político. Mesmo com a crítica das alas mais ortodoxas do movimento, diversos artistas aproximaram-se de uma estética pop, caso de Projota, Karol Conka, Rael e Flávio Renegado. Com uma visão mais pragmática e conciliatória, uma nova geração de rappers conseguiu penetrar em espaços pouco propensos ao gênero e, consequentemente, ser absorvida pelo mercado e criar novos padrões estéticos e comportamentais.

Vinda da periferia de Curitiba (PR), Karol começou sua carreira em 2002. No ano seguinte, integrou o grupo Agamenon, ao lado dos MC’s Bigue, Cadelis e Cilho. Mais a frente, participou com Cadelis, Nairóbi, Mike Fort, São Nunca, Guerra Santa e Nel Sentimentum do grupo Upground Beats. Em 2008, já em carreira solo, teve o seu single “Me garanto” indicado ao prêmio Hutuz na categoria “Melhor demo feminino”. Em 2011, disponibilizou para download um EP promocional com sete músicas, dentre elas “Melhor que se faz” e “Marias”. Com a boa repercussão do trabalho, Karol investiu em seu primeiro clipe, “Boa noite”, o que a levou a concorrer na categoria “Aposta” no VMB 2011. Em 2013, lançou seu álbum de estreia, o elogiado Batuk Freak (Deckdisc), produzido por Nave Beatz. Influenciado pela música tradicional e com referências às religiões afro-brasileiras, o disco abordava temas relacionados ao universo feminino e ao preconceito racial. A convite de Boss in Drama, participou do single e do clipe de “Toda doida”, eleita uma das dez melhores músicas de 2013 pela revista Rolling Stone. No mesmo ano, ganhou o Prêmio Multishow na categoria “Artista revelação”. Sua música, “Boa noite”, foi escolhida para fazer parte da trilha sonora do game Fifa 14. Em abril deste ano, ganhou destaque ao aparecer em uma lista de “Dez novos artistas que você precisa conhecer” da revista Rolling Stone norte-americana.

Encontramos a rapper no Teatro Oi Futuro Ipanema. Recém-chegada de sua terceira turnê pela Europa, Karol veio ao Rio para se apresentar no festival Sonoridades ao lado de BaianaSystem e Márcio Victor. No café do teatro, conversamos a respeito de sua carreira, cena curitibana, racismo e seu próximo álbum.

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BANQUETE




| BANQUETE | CADU TENÓRIO + MÁRCIO BULK |
Alice Caymmi | Bruno Cosentino | César Lacerda | Lívia Nestrovski | Michele Leal | Rafael Rocha


1. “Café expresso”
César Lacerda/Márcio Bulk
Voz: Michele Leal
Violão: César Lacerda
Sintetizadores, violino, objetos amplificados, manipulação com fitas cassete, ruídos e processamento: Cadu Tenório

2. “Estela”
Bruno Cosentino/Márcio Bulk
Voz: Alice Caymmi e Bruno Cosentino
Sintetizadores, violino, objetos amplificados, manipulação com fitas cassete, ruídos e processamento: Cadu Tenório

3. “Electric fish”
Bruno Cosentino/Márcio Bulk
Versão para o inglês: Sylvio Fraga Neto
Voz: Cesar Lacerda
Violão: Bruno Cosentino
Sintetizadores, violino, objetos amplificados, manipulação com fitas cassete, ruídos e processamento: Cadu Tenório

4. “Em transe”
Rafael Rocha/Márcio Bulk
Voz: Lívia Nestrovski
Violão: Bruno Cosentino
Sintetizadores, violino, objetos amplificados, manipulação com fitas cassete, ruídos e processamento: Cadu Tenório

Produzido por Cadu Tenório e Márcio Bulk
Arranjos: Cadu Tenório
Gravado nos estúdios 503, Audio Rebel, Marini e Clemente II
Mixado por Cadu Tenório e Emygdio Costa
Masterizado por Emygdio Costa
Projeto gráfico: Márcio Bulk e Rodrigo Sommer
Capa: “Nature morte aux coquillages et au corail”, Jacques Linard


Banquete, o samba-canção manco de Cadu Tenório e Márcio Bulk
Marcos Lacerda

A canção é uma linguagem artística generosa, múltipla e com uma densidade presente tanto em suas formas harmônico-melódicas mais complexas, quanto nos mais simples samba-canções e boleros. Quem realmente a conhece sabe da sua capacidade de gerar encontros e atritos entre as mais diversas linguagens, inclusive em experimentos sonoros radicais, como vem fazendo um segmento expressivo da canção brasileira contemporânea. Esta desenvolveu, ao longo dos últimos anos, um diálogo forte com a música “experimental” ou “de invenção”, algo que podemos constatar de forma clara em Banquete, o mais novo projeto de Cadu Tenório e Márcio Bulk.

Integrante da chamada cena experimental carioca, o músico e produtor Cadu Tenório é conhecido por encabeçar diversos projetos musicais, dentre eles, Sobre a Máquina, VICTIM! e Ceticências. Em quatro anos de carreira, esteve envolvido na produção e lançou mais de 20 discos. Nesse mesmo período, através do blog Banda Desenhada, o pesquisador musical Márcio Bulk dirigiu e lançou o álbum E volto para curtir (2013), no qual nomes da nova geração regravaram o primeiro disco de Jards Macalé (homônimo, 1972). No final de 2013, lançou o single Soluços (Jards Macalé), sua primeira parceria com Cadu Tenório. Agora, com o EP Banquete, Bulk exibe pela primeira vez sua veia poética. Com influência do samba-canção e das obras de Ana Cristina Cesar e Caio Fernando Abreu, suas letras foram musicadas e interpretadas por alguns dos artistas mais relevantes da atual cena carioca: Alice Caymmi, Bruno Cosentino, César Lacerda, Lívia Nestrovski, Michele Leal e Rafael Rocha. As canções, inicialmente gravadas com acompanhamento de violão, foram desconstruídas e recriadas por Tenório através de processos eletroacústicos que dialogam de forma direta com as letras e com a interpretação dos cantores, remetendo, por vezes, aos trabalhos inventivos de artistas como Scott Walker, Serge Gainsbourg, Nico, Yoko Ono e Björk.

Dessa forma, podemos dizer que Banquete é um disco bastante árduo, com poética e sonoridade forte e dolorosa, expressando as nervuras de um mundo cuja materialidade é feita de opacidades, sombras e lacunas, além de uma miríade de ruídos que soam como ensaios de despersonalização radical. Entretanto, esses “ensaios” não se resumem a apenas acompanhar a temática das canções. Indo além, Tenório utiliza de suas ferramentas para reiterar o seu posto de coautor do álbum, tornando-se figura decisiva para a sua significação estética. Isso se dá por conta da relação intencionalmente conflituosa entre a dimensão sonora de seus arranjos e as estruturas harmônica e melódica das canções, o que gera uma tensão entre a materialidade sonora — feita de atritos, justaposições, cortes abruptos e acelerações repentinas — e as formas relativamente coesas e inteligíveis da palavra cantada.

A primeira faixa, “Café expresso” (César Lacerda/Márcio Bulk), é interpretada por Michele Leal. A canção se inicia ao som de um violão, como se saído de uma fita antiga, interrompido bruscamente pelo ruído de uma máquina ou veículo acelerando. Esta instabilidade entre a forma sonora inteligível e a aceleração abrupta permeia todo o disco e é o “recanto escuro” no qual as formas poético-musicais das canções vão se fissurando e se esgarçando. Nesse primeiro caso, temos a experiência da frustração diante da perda, na voz do outro cuja presença ainda se sente (“a sua voz ainda/ecoa pelo meu dorso”) e no corpo, que se perde e se anula, em meio a tantos suportes materiais (cama, remédios, escadas, aço, vidros). Michele consegue, de forma bastante criativa, enriquecer essa trama, deixando de lado, ao final da canção, o seu tom dramático e, tomada de ironia, se aventurar em um spoken word. A canção seguinte, “Estela” (Márcio Bulk/Bruno Cosentino), trata-se de uma bela e sensível homenagem à cantora Stella Maris (1922–2008), esposa de Dorival Caymmi (1914–2008). Interpretada por Bruno Cosentino e Alice Caymmi, neta de Stella, a canção é um apelo desolador diante do medo da separação e da morte. A paisagem oceânica (recifes, pedras, embarcações, horizontes) torna-se símbolo de incomunicabilidade, personificada como testemunha ocular de todo o drama. A forma sonora do álbum, emaranhada de melancolia, só é levemente superada na transgressão do sexo e do gozo — de raras figurações ou mediações simbólicas — como se vê na canção “Eletric fish” (Bruno Cosentino/Márcio Bulk), interpretada por César Lacerda. O cantor dá vida a um personagem cambaleante e bêbado, o que é a deixa para que Tenório possa brincar com a métrica da canção, repleta de mudanças drásticas e vai e vens. Por fim, temos “Em transe” (Rafael Rocha/Márcio Bulk), interpretada de forma impressionante por Lívia Nestrovski. A música amalgama e dá cabo dos principais temas de Banquete: a solidão, a perversidade do discurso amoroso, o ruído e o seu incômodo, impresso por Tenório nas camadas e mais camadas sonoras que ele utiliza ao trabalhar a voz de Lívia. Esta, na busca por sua inteireza, produz uma melodia que derrete e explode na espessura rugosa e inquieta da canção (“um samba-canção manco”).

Com Banquete, Márcio Bulk se revela um letrista sofisticado, fino e de poética densa que, ao se unir à sonoridade sombria e engenhosa de Cadu Tenório, produziu um pequeno grande disco capaz de dialogar seriamente com a estética musical mais inventiva do nosso tempo, sem abandonar a linguagem da canção e suas singularidades.


Marcos Lacerda é sociólogo, crítico, pesquisador da história da canção e editor da revista Polivox.

CADA TEMPO EM SEU LUGAR

fotos: daryan dornelles
São Paulo, 2008. Enquanto Romulo Fróes se encaminhava para seu terceiro álbum e Juçara Marçal iniciava sua parceira com Kiko Dinucci, Pipo Pegoraro lançava de forma independente seu primeiro disco solo, Intro. Na mesma época, Thiago Pethit estreava com seu EP Em outro lugar (independente) e Curumin lançava seu segundo álbum, Japan pop show (Urban Jungle). Faltava bem pouco para que críticos e jornalistas de todo o país voltassem a sua atenção para a produção musical da cidade, fato que ocorreu em 2010, com a excelente acolhida dos álbuns de estreia de Karina Buhr (Eu menti para você, independente), Marcelo Jeneci (Feito para acabar, Slap/Som Livre) e Tulipa Ruiz (Efêmera, YB Music). Bastante receptiva aos novos artistas e seus trabalhos autorais, São Paulo passou a fomentar, no decorrer dos últimos anos, uma das cenas musicais mais prolíferas e criativas do Brasil.

É a respeito dessa movimentação que conversamos com Pipo Pegoraro. Figura bastante ativa no cenário paulistano, o músico lançou seu segundo álbum, Taxi Imã (YB Music), em 2011, produzido pelo cantor e compositor Bruno Morais. No ano seguinte, trabalhou na produção da música “Eva e eu", interpretada por Anelis e Serena Assumpção para o disco tributo a Péricles Cavalcanti, Mulheres de Péricles (Joia Moderna). Ainda em 2012, passou a integrar o coletivo Aláfia, lançando álbum homônimo no ano seguinte pela YB Music. Em 2013, produziu duas faixas para o cantor Filipe Catto: “Meu amor me agarra & geme & treme & chora & mata”, de Capinan e Jards Macalé, para o disco E volto pra curtir (Banda Desenhada Records); e “Flor da idade”, de Chico Buarque, para a trilha sonora da novela Jóia Rara, da TV Globo. Além de participar como músico e arranjador do programa Cantoras do Brasil, do Canal Brasil, Pipo também é responsável por diversas trilhas sonoras de documentários e espetáculos de dança.

Conversamos com o músico algumas semanas antes do lançamento de seu terceiro disco, Mergulhar mergulhei (YB Music). Com direção artística de Romulo Fróes e contando com a participação de Xênia França, Luz Marina e Filipe Catto, o álbum foi recentemente disponibilizado para download gratuito e teve, há poucos dias, seu show de lançamento na Choperia do Sesc Pompeia (SP).

Nosso encontro se deu em uma das vindas de Pipo ao Rio, em um restaurante no bairro do Leme, onde falamos a respeito de sua carreira, o novo trabalho, influências e a cena paulistana.

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