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colagem: márcio bulk

Quando era pequeno, meu filho costumava pedir que eu cantasse sobre qualquer objeto, animal ou situação que passasse pela sua cabeça. Ele trazia uma certeza absoluta de que, para qualquer coisa no mundo, haveria de existir uma música. Então, cantávamos para formigas, chocolate, areia, cama, balde, camisa, elefante, garfo, panela, vento... E como ele estava certo!

Desde que eu era criança, as estações do ano me parecem ser representadas por ciclos festivos. No calor, as músicas e danças também ficam mais quentes e leves, precisam de ar e espaço, por isso tomam os terreiros e quintais até chegarem às ruas. No inverno, chove e a música ocupa as salas, as varandas, os arraiais, e dançamos mais juntos, em par ou de mãos dadas. E foi assim que escolhi minha profissão: quando entendi que a música é necessidade que vem do corpo, um instinto primeiro, quase como mamar e chorar. Percebi que ela, a música, também vem do chão, das plantas, do mar... Vem da parte mais profunda da nossa natureza e assim sempre se transforma e pode nos ajudar a transcender e a buscar o divino — com todas as diferentes faces que o divino possa ter.

Aos 18 anos, escolhi ser percussionista. Pouco depois, percebi que precisava falar e cantar sobre as coisas que ouvia, lia, via e sentia, e assim comecei a compor – essa é uma das partes mais instigantes e desafiadoras do trabalho criativo. Eu me assumi cantora quando percebi que queria encontrar a minha própria voz  e essa é uma busca para toda a vida. Escolhi ser musicista aos 18 anos e escolhi continuar sendo outras tantas vezes.


Dentre todas as atividades que exerço no meu trabalho (cantar, tocar, compor, ensaiar, gravar, produzir, ensinar, escrever, estudar), boa parte dos meus esforços são para que exista o momento do show. O palco (seja real ou imagético) é, para mim, o lugar do encontro, onde a música fica quase tátil, ganha espaço no ambiente, transpassa nossos corpos e nos aproxima, renova o sentido das coisas e os desejos, fortalece as vontades e faz valer a pena até os dias mais difíceis. 
Nem todo show é perfeito. Nem todo show é fácil. Não há "jogo ganho" assim como acontece em qualquer encontro, mas é justamente esse desafio que deixa tudo mais instigante. Esse é o momento em que coloco o meu “brinquedo na rua” e reafirmo meus compromissos comigo mesma, com o lugar e com a cultura que me formaram  e compromisso não significa estar preso ou amarrado, significa reconhecer de onde você veio e falar das pessoas com quem brincou e, principalmente, dos que brincaram muito antes de você existir; significa pensar pra onde se quer ir. Reconhecer isso pode ser libertador!


Alessandra Leão

Verão de 2015

Alessandra Leão é cantora, compositora e percussionista. Integrou, inicialmente, a banda Comadre Fulorzinha, com quem lançou o disco homônimo (1999, CPC Unes). Seu primeiro álbum solo, Brinquedo de Tambor (independente), foi lançado em 2006. Em 2008, idealizou e coordenou o projeto Folia de Santo (Garganta Records). Em 2009, promoveu seu segundo trabalho, Dois Cordões (Garganta Records). No ano seguinte, compôs a trilha sonora do espetáculo teatral Guerreiras, de  Luciana Lyra. No final de 2014 e ao longo de 2015, esteve envolvida na produção e na divulgação de Língua (Garganta Records), a trilogia de EPs constituída dos capítulos: Pedra de Sal, Aço e Língua.