pé na estrada


fotos: daryan dornelles



Fruto de um mundo globalizado e digital que desmantelou os tradicionais meios de produção e distribuição de música, a atual cena independente brasileira conseguiu, com certo esforço, encontrar seu lugar ao sol, desenvolvendo novos modelos de negociação e descobrindo um modesto, mas crescente, mercado onde pôde se expandir sem as pressões e limitações encontradas nas grandes gravadoras. Incensados por grande parte da imprensa brasileira, estes novos músicos, em sua maioria paulistanos, vêm se tornando uma resposta à tradicional e debilitada MPB. Seu notório cosmopolitismo os permitiu não só assimilarem elementos da cultura pop, mas também se destacarem pela abundância de referências, incluindo aí gêneros da música regional brasileira. Assim, em meio às turbulências do mercado fonográfico, esta nova geração pôde, aos poucos, conquistar espaço tanto no circuito nacional quanto internacional, apresentando-se em festivais e pequenas casas de espetáculos no Brasil, Europa e Estados Unidos.
Representante da cena alternativa paulistana, Guilherme Mendonça, o Guizado, reúne em seu trabalho boa parte das características acima mencionadas: trompetista influenciado por Miles Davis e pelo technopop dos anos 80, sua música é repleta de bases eletrônicas, samples e sintetizadores, tendo ainda espaço para flertar com o rock, o tecnobrega, o hip hop e a música clássica. Guizado atuou ao lado de diversos artistas - Elza Soares, Lulu Santos, Nação Zumbi, Cidadão Instigado, Karina Buhr, CéU, Curumin, Mauricio Takara, Instituto – e integrou a cultuada banda DonaZica, iniciando forte diálogo com seus colegas de geração. O músico ainda mostrou empreendedorismo ao lidar com o mercado: o primeiro álbum de seu projeto (também intitulado Guizado), “Punx”(2008), foi lançado no formato SMD (disco semi-metálico), o que barateou  seu custo a ponto de ser vendido por R$ 5,00 a unidade. Em 2001, novamente ao lado de Rian Batista (baixo), Regis Damasceno (guitarra) e Curumin (bateira), lançou o elogiado “Calavera” (Trama/Punx Records), assumindo os vocais em algumas faixas e contando com as participações especiais de Karina Buhr e CéU.
De passagem pelo Rio, onde realizou uma apresentação no Solar de Botafogo, Guizado recebeu o Banda Desenhada para uma rápida entrevista em seu camarim, onde nos contou a respeito de sua relação com o jazz, a música eletrônica e as dificuldades por que ainda passa a cena independente brasileira:

BD - Você já disse ser influenciado pelo jazz e pela música eletrônica. Como travou contato com estes dois estilos e como se deu a mistura?

Guizado – Na verdade eles só foram se encontrar há bem pouco tempo, na fase embrionária do Guizado. Durante a minha adolescência eu não era assim tão próximo ao jazz e também nunca tive um envolvimento muito forte com a música eletrônica. O que me atraía, como a maioria do pessoal da nossa idade, era The Cure, New Order, Joy Division, Depeche Mode... Essas bandas que, de certa forma, todo mundo da minha geração já ouviu ou curtiu. Acho que o que mais me levou a mexer com o eletrônico foi o hip hop. Meu irmão [Marcelo Mendonça, o Mr. Bomba] é produtor e trabalhou com algumas bandas de rap dos anos 90 que chegaram a fazer um barulho, como o SP Funk. Ele ficava no seu quarto com o PC, fazendo programações, produzindo, e eu no meu, estudando trompete. O pessoal do rap vivia lá em casa. Acho que esta influência veio à tona quando comecei a desenvolver o meu trabalho. Já o jazz, descobri nos anos 90. Eu me isolei um pouco de tudo que era pop. Imergi neste gênero e acreditei que ali estava a verdadeira música. O jazz é muito difícil, exige muita dedicação. Fiquei nessa durante alguns anos. Aí passei a tocar com outros músicos, conheci bandas interessantes das quais participei e comecei a perceber o seu processo criativo, fui absorvendo um pouco daquilo, arejando a cabeça... Passei então a criar o meu próprio som e percebi que havia coerência em tudo o que assimilei ao longo dos anos: punk, jazz, technopop... Tudo estava começando a fazer sentido na minha cabeça... Deu-me uma paz. Compreendi que todas estas histórias eram importantes e que sempre estive no caminho certo... Nunca me desvirtuei, sabe? Todos os sons que curti, de algum modo, se integraram. 

BD - Você chegou a participar da DonaZica, uma das bandas precursoras do que hoje se vê na cena musical de São Paulo. Poderia comentar a respeito?

Guizado – Com certeza as ideias e a música da DonaZica influenciaram e fomentaram boa parte desta cena. Foi um momento singular, onde todo mundo começou a fazer música, buscando uma sonoridade própria, autoral. Através da DonaZica eu conheci toda esta turma: Tulipa [Ruiz], Gustavo [Ruiz], Iara [Rennó]... Foi uma das bandas que me auxiliou na hora de desenvolver uma identidade artística. Até então eu era um músico contratado, ia lá e tocava... Ainda mais sopro! É tudo muito fechado. Você chega e te dão a partitura. Eu vivia disso. E na DonaZica nós realmente trabalhávamos o processo de criação. 


BD - Você parece ter um enorme interesse na pesquisa: Jazz etíope, música sérvia, música erudita mexicana, música experimental... Esta curiosidade, esta preocupação em ter mais informações, seria uma das características da sua geração? 

Guizado – Sim, não há dúvidas. Esta geração tem todo um cuidado em buscar suas referências. Existe hoje uma liberdade que outras gerações não puderam experimentar. Você até poderia ser bem informado, mas havia a pressão da gravadora e de um produtor que formatava o seu som. Mas, no cenário atual, não. Todos são muito autônomos, podendo pensar muito bem como será esteticamente o seu trabalho. Por exemplo, ao ouvir suas músicas, você percebe que o Curumin, a Tulipa e o Criolo realizam uma pesquisa e que há um esmero não só na criação, mas também na parte técnica. O engenheiro de som deste pessoal não é só um cara que vai mexer nos equipamentos e botar o seu som. Ele tem uma preocupação, inclusive artística. Todos nós buscamos uma personalidade musical. Para mim isto é muito claro. Tenho esta intenção. Dentro da música brasileira, sou um dos primeiros e um dos poucos caras que pegou o trompete e o trouxe para frente. Teve o Márcio Montarroyos nos anos 80, mas era outro contexto. Fico muito feliz de estar ao lado da Tulipa, do Criolo ou do [Marcelo] Jeneci, mas para mim é muito mais complicado. Eles têm uma proposta mais fácil de emplacar, são assumidamente cantores. Já o meu projeto é mais ambicioso, pois eu decidi fazer algo que ninguém faz, cara! Não creio que existam muitos músicos que, dialogando com um formato pop, toquem, solem, improvisem e cantem, mesmo sem a intenção de ser um cantor. Nas minhas apresentações eu fico ali, tocando e cantando, depois vou pras máquinas. Esta é a forma de me expressar musicalmente. Mas acho interessantíssimo como tenho conseguido certa projeção. É bem legal, realmente não estava esperando. Quando lançamos o “Punx”, houve uma boa aceitação. Não havíamos nos preocupado com isso, desenvolvemos o som que realmente queríamos fazer, sem nos importarmos em buscar locais para tocarmos ou coisas assim. À medida que veio o reconhecimento e começou a rolar trabalho, resolvemos nos tornar mais profissionais. Hoje temos uma equipe que nos auxilia e assessora. Nem imaginávamos que precisaríamos de todas estas coisas. [Risos]

BD - A sua geração parece não ter problemas em se aprofundar nas questões estéticas e se tornar, vamos dizer assim, pouco comercial.  Isto não chegou a ser um problema para você? Fazer música sem saber se haveria um retorno?

Guizado – Esta pergunta nós começamos a fazer no meio do caminho, quando o bonde já estava andando: “E aí? A coisa está dando certo! O que a gente vai fazer”? A nossa música está encontrando o seu lugar. E creio que de uma forma muito espontânea. Ela não chega às pessoas através das rádios ou da TV, mas existe um pessoal que está querendo ouvir um som mais autêntico, mais autoral, e que está tendo acesso ao nosso trabalho. Os consumidores de música mudaram bastante, eles já não são mais tão passivos. Vejo isto cada vez mais, principalmente nas gerações mais novas. É absurda a maneira como elas interagem com as informações.

BD – Então hoje em dia é possível viver de música?

Guizado – Sim, mas é difícil. Não dá pra viver só do Guizado. Não rola. Tenho que ir atrás de editais, tocar com outros músicos... Faço shows com a Karina Buhr e ainda tenho meu projeto solo, que é bem mais prático: é só uma passagem de ônibus ou avião e um hotel. Mas acho que as perspectivas estão melhorando. Nós ainda não chegamos a ter um mercado forte de música independente como nos EUA, por exemplo, com turnês, agenda cheia, viajando por todo o país de costa a costa e vivendo disto, sabe? Eu viajei com o Curumin para lá e vi que é possível. As bandas se apresentam em lugares de pequeno ou médio porte. Não tem roadie. Para você ter uma idéia, o cachê do roadie é de US$ 500, é só para bandas grandes mesmo. Então os caras simplificam as coisas e vivem na estrada. Mas vivem bem, cara. E isso ainda não existe no Brasil. Mas acho que é um caminho, a economia brasileira está melhorando, e, provavelmente, teremos maior incentivo à cultura. A gente está apostando nisto, para que possamos ter uma estrutura de shows bacana, poder pegar um ônibus e sair por aí. Acho que a minha geração está contribuindo para isto. Não sei se vamos pegar pra valer essa época, mas espero que sim.  

BD - Miles Davis, Louis Armstrong, Roy Eldridge, Ornette Coleman… Lendo sobre as suas influências, percebi que pouco ou nada havia de pop. Entretanto, você chegou a tocar com o Lulu Santos. Como se relaciona com esse tipo de som mais radiofônico?

Guizado – Eu vejo com bons olhos. Faz parte da história... Acho que há certa nostalgia sentimental, emotiva, desta época, porque o som ainda não era tão popularesco. A música radiofônica conseguia atingir uma galera mais intelectualiza, com certa cultura. Legião Urbana tinha uma multidão de fãs! Você ligava o rádio e ouvia Camisa de Vênus, Titãs, Paralamas do Sucesso... Acho massa. Nós tivemos o privilégio de ouvir essas bandas no rádio. Posso ter colegas que não concordem comigo e achem que foi tudo uma grande babozeira, mas, particularmente, acho muito importante. 



BD - “Calavera” me remeteu ao rock progressivo e à cena eletrônica dos anos 90, como o trip hop e o duo francês Air. Existiu esta influência? 

Guizado – Pode crer. Tem a ver. A banda toda tem essas referências. O Régis (Damasceno, guitarrista), gosta muito de Air e Porstishead. Eu também gosto. Durante a produção do álbum, estava ouvindo muito “The Piper at the Gates of Dawn” (1967), o primeiro disco do Pink Floyd, que acho demais. Tentamos emular este clima, as texturas e as harmonias, de um jeito próprio.

BD - Mesmo tendo algumas referências brasileiras, a sonoridade de seu álbum é bastante cosmopolita e poderia passar, sem problemas, por uma produção de um artista de outro país. Houve essa preocupação?

Guizado – Sinto que o nosso som tem esta abertura para o mundo, até pela maneira como nós o produzimos e por todas as nossas influências. Mas quando estava nos EUA, eu mostrei o “Punx” para uns amigos gringos e o comentário geral foi: “Wow! Crazy brazilian beats”! Acharam a batida brasileira. Invariavelmente o som acaba saindo com esta pegada.

BD – Ser instrumental e ter uma sonoridade globalizada deve facilitar na hora de vender o projeto para os festivais internacionais...  

Guizado – Com certeza. Estamos nos esforçando para isto. Quase fui para WOMEX [a mais importante feira internacional de música] este ano, para apresentar o meu projeto solo. Só que houve uma inundação em Copenhagen e a tenda que abrigaria a música brasileira simplesmente ficou submersa! Mas só pelo fato de ter conseguido esta abertura, já foi um ganho. As coisas estão começando a acontecer. Acho que é uma saída, trilhar o circuito internacional. Pode ser muito interessante. A nossa banda tem um forte caráter instrumental e, sem dúvida, devemos conquistar um espaço por lá.

comente