AEROMOÇAS E TERNURA NO CARTAZ

foto: vitor jorge

Internet, câmeras digitais, editores de imagens, DAWs, MP3 players, blogs e redes sociais... É longa a lista de ferramentas tecnológicas que, surgidas nas últimas décadas, revolucionaram a produção e a difusão de música no país. Somando-se à facilidade na aquisição de hardwares e softwares e o intenso compartilhamento de arquivos, tornou-se possível, nos últimos anos, o desenvolvimento de uma nova geração de artistas independentes.

Caracterizadas acima de tudo por sua imaterialidade, as novas tecnologias também foram responsáveis por solapar a indústria fonográfica, levando ao ostracismo os seus suportes mais usuais: o CD e o DVD. Entretanto, nos últimos anos, também assistimos ao surgimento de um novo e improvável fenômeno: a redescoberta das mídias analógicas. Envolvido por uma aura de saudosismo, contracultura e modismo vintage, o vinil converteu-se em fetiche para boa parte do público e dos artistas da chamada neoMPB. Basta uma busca rápida em algumas lojas virtuais especializadas para se encontrar os LPs de Tulipa Ruiz, Karina Buhr, Anelis Assumpção, Bexiga 70, Tono, entre outros. Muitos desses artistas também têm optado, ao produzir seus discos, por gravá-los ao vivo em estúdio, em busca de uma atmosfera mais quente e emulando o formato de gravação da primeira metade do século passado. O olhar saudosista também é sentido na fotografia, na ilustração e no design contemporâneos, onde intensificam-se a releitura ou mesmo o retorno dos processos fotoquímicos e das técnicas de produção analógicas, como a pintura, a xilogravura e a colagem. Essa tendência é encontrada, por exemplo, nos álbuns Etiópia, do projeto Sambanzo; A coruja e o coração, de Tiê; Edifício Bambi, da banda Hidrocor; e Feito pra acabar, de Marcelo Jeneci.

Destacando-se pelos seus trabalhos de forte influência modernista, o designer paulistano Rodrigo Sommer é o entrevistado da semana no Banda Desenhada. Além dos diversos cartazes de shows produzidos para a Agência Alavanca e a festa Folk This Town (SP), Rodrigo é responsável, em parceria com o ilustrador Marcelo Cippis, pela arte do segundo álbum de Bruno Morais, A vontade superstar (2009, YB Music). Seus primeiros trabalhos foram realizados enquanto frequentava os cursos de arquitetura e de artes plásticas na USP, onde produziu pôsteres para festas e eventos, além de projetos gráficos para publicações acadêmicas. Com foco na área cultural, Rodrigo criou diversos cartazes para mostras de cinema e peças de teatro, além de elaborar a identidade visual de eventos como a MIT (Mostra Internacional de Teatro, realizada nos CCBBs SP e DF) e o festival Cena Contemporânea, de Brasília. O designer também participou das exposições A cultura do cartaz  meio século de cartazes brasileiros de propaganda cultural (2008), no Instituto Tomie Otake, e Um cartaz para São Paulo (2009), no Senac/Centro Universitário Maria Antônia.

Nesta entrevista, realizada através de longos bate papos em rede sociais e e-mails, Rodrigo comenta a respeito de sua carreira, influências e a nova cena musical de São Paulo. 

BD — Você já fez diversos cartazes e projetos gráficos para artistas desta nova geração. Como começou esse seu envolvimento? 

RODRIGO SOMMER — Acho que tudo começou mesmo com os cartazes da Folk This Town. Quer dizer, antes eu já tinha feito alguns cartazes para a Moving Stairs, que era a banda em que eu tocava, entre 2005 e 2006, e também para as festas da Peligro Discos, no Milo Garage. Mas foi com a Folk que o meu trabalho começou a ter uma continuidade, virou uma produção, e ficou mais visível dentro da cena musical. Na própria festa eu conheci e reencontrei pessoas que depois começaram a me encomendar cartazes, como a Katia [Abreu] e a Pamela [Leme], da Agência Alavanca... Esse envolvimento também tem a ver com o fato de eu ser um consumidor de música, de sempre ter frequentado shows e, anteriormente, as lojas de discos do centro de São Paulo, onde conheci muita gente. O Romulo Fróes, por exemplo, conheci numa dessas lojas, a Bizarre, antes mesmo de lançar o seu primeiro EP solo. Foi ele quem me indicou ao Bruno Morais, para que fizesse o design do seu disco A vontade superstar. E com esse disco iniciamos uma parceria que dura até hoje.


BD — O seu trabalho tem influência do design dos anos 50 e da estética analógica. Como estas referências surgiram para você? 

Rodrigo — Eu entendo você identificar esta minha ligação com o design dos anos 50. Admiro muitos os mestres do design moderno, como Paul Rand, Saul Bass e [Henryk] Tomaszewski. Mas não sei se o meu trabalho tem uma influência tão direta. Comecei a me interessar mais por design e pensar nisso como uma opção de trabalho no terceiro ano da faculdade de arquitetura, em 1995. Nessa época, meio que na esteira do grunge e do indie britânico, surgiu uma estética correspondente, mais rústica, desalinhada, cheia de ruídos e mensagens cifradas, bem distante da linguagem pop chique que dominava o design e que vinha dos yuppies e do visual dos anos 80. E como na música eu já me identificava com um som mais low-fi, de repente trabalhar com design passou a ser bem interessante: poder pegar uns recortes de imagens, umas letras recortadas e xerocadas e o que mais estivesse à mão, juntar tudo numa mesa e dali sair com um cartaz pronto. O meu interesse veio muito por conta desse lado analógico. Não só pela estética, mas também pelo processo de fazer as coisas, pela diversão... Era o mesmo que pegar uns instrumentos toscos e montar uma banda de rock. E ainda havia o computador pra facilitar na hora da finalização dos trabalhos. Os caras que eu mais admirava e me influenciaram nessa época foram o David Carson, da revista Ray Gun; os ingleses do Tomato [coletivo de designer, artistas, músicos e escritores]; o Vaughan Oliver, da 4AD [Records]; e os designers japoneses que eu via em revistas da biblioteca da faculdade. Eles misturavam uma estética quase punk vinda da música com um repertório visual mais elaborado, ligado a esses designers dos anos 50 e também a outros artistas, principalmente os dadaístas, que já faziam um trabalho radical com colagem e tipografia lá nos anos 20.


BD — Parece haver, hoje em dia, certo saudosismo não só no design, mas também no próprio consumo de música, com a volta dos LPs. O que você acha disto?

RODRIGO — Sei lá... não sou muito fã de saudosismos. Acho que tudo tem que ter uma relevância atual. Não é simplesmente imitar ou voltar a fazer algo do passado apenas porque hoje aquilo parece legal. Eu mesmo já cheguei a fazer cartazes propositalmente retrôs e me arrependo um pouco, acho que eles são o que são: velhos. (risos) Ao mesmo tempo, devo parecer bastante saudosista, pois continuo pregando pela continuidade do analógico, tanto no processo como no suporte do trabalho, e tento manter uma visão crítica em relação à entrada esmagadora do digital e do virtual em nossas vidas. Costumo dizer que sou um designer de impressos. E toda semana aparece um desses gurus da tecnologia falando do fim do papel, do fim dos livros... só que acabo de fazer as minhas primeiras capas de vinil! O que vejo de interessante nisso tudo é que agora que os CDs e LPs perderam a sua função, começou-se a enxergar melhor os outros valores envolvidos, a estética e mesmo o valor sentimental da nossa relação com esses objetos. É meio assim: “Tá, eu não preciso mais de um suporte, mas e se eu quiser um suporte?”. E as pessoas estão indo atrás do melhor suporte, do vinil de melhor qualidade, com capas especiais, tiragens limitadas, dos cartazes em serigrafia, de livros bonitos e diferentes, das edições especiais...  Acho isso tudo bem legal e mostra que talvez as novas tecnologias, fáceis e eficientes, não sejam o único caminho. Já faz algum tempo que eu quero montar um estúdio com um esquema decente de impressão em serigrafia e isso, para mim, longe de ser um fetiche, é algo que me desperta muitas possibilidades. É um caminho de pesquisa necessário para que o meu processo de criação evolua. Mesmo que não encontre uma finalidade concreta ou comercial para o que será produzido ali. Acho que é possível ter sempre um olhar para o futuro, de continuar tentando fazer coisas sempre atuais e, se possível, inovadoras, mesmo usando técnicas ou materiais do passado.

BD — Além do retorno dos LPs também está ocorrendo uma fetichização dos cartazes de shows. O que há de interessante nesse revival

RODRIGO — Para mim, como designer, o principal do cartaz é o formato. A escala é um desafio: a relação das formas com a área total, os vazios... cada elemento que você acrescenta ou tira pode alterar tudo. Há sempre uma relação de cada coisa com a outra e com o todo. Em minha opinião, o cartaz é como um poema, exige uma síntese estética. E, em um momento em que o cartaz perdeu seu papel comercial como suporte de propaganda, é incrível que haja designers e estúdios por aí que consigam, nos dias de hoje, viver quase que somente de cartazes. Aqui no Brasil, a produção sofre com alguns problemas estruturais, como o limitado circuito da música alternativa, que lá fora sustenta esse revival dos gig posters. Aqui a produção é bem menor. É difícil conseguir cobrar um valor justo pelo trabalho e sai caro fazer uma impressão decente em um formato legal e com um bom papel. E a cultura da coleção, até pela falta de oferta, ainda está engatinhando. Mas só o fato de, por causa do revival, ter um monte de gente se aventurando nesse formato, já é muito bom. Eu mesmo passei dez anos da minha carreira quase sem fazer cartazes e hoje faço vários por ano. Tem muita gente boa se concentrando nessa área, pesquisando a impressão, trocando idéias, formando parcerias... É só ver o trabalho de gente como o Damien Tran, Casey Deming, o duo Sonnenzimmer e os estúdios Landland e Aesthetic Apparatus. Você percebe a importância desse revival, principalmente pra quem, como eu, gosta tanto do formato.


BD — Os cartazes para a Folk This Town parecem ter uma grande importância em sua carreira. Como foi esse trabalho?

RODRIGO — A Folk This Town foi uma ideia do [jornalista] Amauri Gonzo que eu e outro amigo, o Adriano Vannucchi, ajudamos a produzir. Hoje organizo sozinho. É uma festa sossegada, com dois shows para se ver sentado, sem DJs competindo com os artistas. Desde o início ficou decidido que eu faria os cartazes e iria imprimi-los em serigrafia para vender nas festas. Fazia parte do projeto. Para viabilizar a produção, defini uma série de restrições: formato, papel, a tinta à base d’água (para poder imprimir em casa) e o máximo de duas cores. Isso já resolvia um dos principais problemas que vejo em ser o próprio cliente, que é a liberdade de poder fazer qualquer coisa e, justo por isso, não conseguir fazer nada. Essas limitações também ajudaram a definir a linguagem que acabei adotando, bem gráfica, de cores chapadas e imagens com alto contraste, mais preocupada com a construção do espaço e das proporções do que em criar uma interpretação visual direta do som das bandas. O fato é que com a Folk This Town tive a chance de desenvolver um trabalho que ainda não havia feito, pois até então não havia encontrado pessoas interessadas nessa linguagem. Foi com o projeto que acabei me aproximando de alguns clientes com esse perfil. Só é uma pena que eu não tenha conseguido dar continuidade à impressão dos cartazes... Era muito complicado imprimir em um apartamento sem infraestrutura. Eu parei pouco tempo depois. Mas continuo fazendo o design pensando na impressão e pretendo voltar assim que montar a estrutura para isto. Quero também imprimir todos os antigos e quem sabe expor em algum lugar.

BD — Você também é fotógrafo... Existe algum diálogo com o seu trabalho de design?

RODRIGO — Na verdade, eu fotografo, mas não posso dizer que sou um fotógrafo. É uma diversão, um hobby, e até prefiro não misturá-lo com o design. Raramente produzo uma imagem para ser utilizada em um trabalho e, quando faço, é só porque a câmera é o modo mais fácil de registrar. Mas essas imagens são muito diferentes das fotos que faço quando fotografo sem a intenção do design. Mas de qualquer forma, o diálogo existe, como existe um diálogo com a música que ouço e toco, com o que leio e escrevo...  Acho que a fotografia funciona mais como uma motivação ou uma desculpa para sair andando pela cidade. Carrego sempre a câmera na mochila e, se saio do dentista e não tenho o que fazer em seguida, posso andar por três horas em qualquer direção e parar em um lugar totalmente desconhecido sem me questionar porque estou fazendo isto. (risos) Vale também como um exercício visual, pois me ajuda a ser curioso, a enxergar as coisas mais profundamente.


BD — E como é o seu processo de criação?

RODRIGO — Boa pergunta... Varia bastante. Mas sempre começo olhando e pensando: “E agora? Como é que eu vou fazer isto?”. Daí, faço qualquer outra coisa para não encarar a questão! (risos) Depois que esgoto as possibilidades de fuga, às vezes pego um caderno e começo a anotar e desenhar coisas que vêm à cabeça. Podem ser uma série de palavras relacionadas ao tema ou esboços no formato do cartaz... Varia muito. Ou eu apenas fico pensando, ouvindo a música para ver se forma alguma imagem na mente. Também dou uma olhada na internet para entender como a banda ou o artista costuma se mostrar, ter uma ideia do universo visual da música que vou trabalhar. Depois desta fase mais contemplativa, como não sou um bom ilustrador, no sentido do desenho, começo a procurar o que posso usar como fonte de imagem: recortes de livros antigos, alguns pedaços da minha coleção de fotolitos... ou penso em como fazer a imagem de outra maneira. Pode ser com tinta, fitas adesivas, escaneando algum objeto... É um processo bem de tentativa e erro, até chegar a algo onde eu observe um caminho. Aí, quando surgem alguns elementos montados, escaneio e começo a editar no computador. Posso criar alguma coisa com o que já tenho ou voltar à parte manual e criar outras imagens. Normalmente é na primeira montagem no computador que começo a pensar no texto e daí vou produzir a parte tipográfica, que pode ser com colagem, Letraset, desenhando ou mesmo digital. Fico neste vai e volta, criando pedaços, montando e editando no Photoshop. Na maioria das vezes, depois de tudo isso, eu olho e percebo que tenho que jogar tudo ou quase tudo fora e começar de novo. Mas nem sempre é assim, já fiz cartazes totalmente digitais e outros, como o último do Bruno Morais, que a colagem já é o cartaz quase pronto.

BD — Além do Bruno Morais, você já fez trabalhos para a Lulina. Costuma ouvi-los? O que acha dessa nova cena paulistana?

RODRIGO — A Lulina é uma amiga de vários anos. Eu a conheci antes de ouvir as suas músicas e acabei virando fã. Tenho todos os discos, o oficial e os caseiros, e, volta e meia, pego um para ouvir, além de sempre vê-la nos shows. Já a convidei para tocar em minha festa de aniversário e até fizemos uma música juntos, que ela gravou em um dos seus discos caseiros. O Bruno eu conheci no início do processo do design da capa do A vontade superstar. Tinha visto um show do disco anterior e não havia gostado muito, mas quando ele me mostrou o novo, achei muito bom e ouço sempre. Gosto muito do caminho que os seus dois EPs recentes estão apontando. Agora, a cena paulistana, não sei. Se você pensar que a Lulina veio do Recife e o Bruno de Londrina, já fica difícil falar de uma cena paulistana. Eu na verdade não me preocupo muito com as cenas, a paulistana, a carioca, a nova MPB... Para mim é o artista e a música que ele faz. Por exemplo, gosto muito do Romulo Fróes, que conheço e acompanho desde o início da sua carreira solo, mas não tenho a mesma predileção por muitos dos artistas que normalmente são associados à ele. Sempre estive mais perto do indie e do folk do que da MPB, então costumo ouvir mais os artistas que misturam elementos desses estilos, como a própria Lulina, a Stela Campos, o Bonifrate... Mas falando em São Paulo, de uns tempos pra cá tenho me interessado bastante por um som instrumental e mais experimental que vem sendo produzido aqui, boa parte em torno do pessoal do Hurtmold e suas parcerias com outros músicos. Acho que daí ainda vai sair muita coisa nova e boa.


BD — E o que mais você costuma ouvir?

RODRIGO — Ouço muita coisa diferente. Antes do MP3, eu concentrava mais meus interesses e ouvia principalmente os caras do novo folk, como Will Oldham, Wilco e Bill Callahan. E gente como Nick Cave, Cat Power e Dirty Three, junto com o rock alternativo do início dos anos 90, tipo Pixies, Pavement, Sebadoh... Depois comecei a ouvir post-rock, o que me levou ao experimental, à improvisação livre, ao freak folk e outros subgêneros com nomes estranhos. (risos). Também ouço bastante jazz e cada vez mais música brasileira, nova e velha...

BD — Você também é um dos sócios da Panelinha Books [atualmente, a editora   se chama Soul Kitchen Books]. Como surgiu essa ideia? O seu trabalho de design se interliga de algum modo a esse projeto?

RODRIGO — A editora surgiu em uma conversa de mesa de bar com uma amiga, Luana Vignon, hoje minha sócia. Basicamente é aquela ideia muito legal que a gente fica horas discutindo no bar e no dia seguinte todo mundo já esquece. Só que dessa vez ela disse que ia me cobrar no dia seguinte e cobrou mesmo. Poucos dias depois, a editora já estava oficialmente aberta. Na parte de design, funciona um pouco como a Folk This Town, ou seja, eu gosto de fazer livros e como não consegui clientes no mercado editorial, virei eu mesmo o cliente. E se uma hora o trabalho na editora me levar a outros trabalhos na área, ótimo. Mas também é um projeto fora do design, de poder publicar pessoas que nós conhecemos e achamos talentosas ou projetos bacanas que, por algum motivo, não se encaixam no perfil de outras editoras. E de fazer isto direito, com cuidado editorial e qualidade gráfica, o que se tornou possível quando encontramos uma tecnologia de impressão sob demanda que permite produzir pequenas tiragens com a mesma qualidade e quase o mesmo custo por exemplar de um livro produzido em larga escala. Ainda pretendo, no futuro, aproximar mais a editora do design e das artes visuais e começar a produzir e publicar material dessas áreas.








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