rompe & rasga & come

baile primitivo  | primeira fileira, da esquerda para direita:  michele leal, diana daou, bella meirelles, ava rocha e gabriela campos | segunda fileira da esquerda para direita: bruno cosentino, marcos lacerda e negro leo | fotos: daryan dornelles



Manifesto Baile Primitivo

1. Com livros, com fuzil e sem Coca-Cola: por que não?

O carnaval é a explicitação de uma sociedade desigual, violenta, desesperada, rebelde e potencialmente revolucionária. O avesso do pacto nacional de conciliação de classes. Diabinhos armados com artefatos luminosos, zé pereiras de faca amolada, índios com metralhadoras, capoeiras e cucumbis comandando tanques de guerra ao som de saraivadas de balas, em meio às troças dos mascarados. Você me conhece?

Baile primitivo é entrudo, vilas místicas dos caboclos do contestado, canhões do almirante negro, movimentos anarquistas, conferência de Bandung, movimento dos países não-alinhados, luta armada guerrilheira revolucionária, os três impérios de Joaquim de Fiori, Agostinho da Silva, “propaganda pelo fato”, Darcy Ribeiro, Prata Preta, neopaganismos, levante zapatista, bate-bola, black bloc, marcha das vadias e pinkbloc. 

Sobrevivendo no inferno.

As grandes sociedades (Tenentes do Diabo, Democráticos, Os Fenianos, etc.) eram os pacificadores do carnaval carioca do século XIX. Eram os amenizadores, amortecedores, controladores da força popular do carnaval da cisão, da fratura social, da fissura, o carnaval do conflito social, do antagonismo, da luta de classes, sem conciliação. O carnaval primitivo. Vândalo é o Estado e o Mercado.

Filhas e filhos da ira no delírio antitotalitário da cola de sapateiro metendo o grelo na geopolítica da mulher maravilha. Jacarandá, que flor seria essa? 

Podem surgir dos bairros, das ruas, dos conjuntos residenciais, das favelas, mocambos, malocas e alagados e do Conhecimento e conversação do Santo Anjo da Guarda. 

Cavalos, vacas, ovelhas e insetos. Todos mudarão. A humanidade ainda está na sua infância. Sob o silêncio das máquinas, carne verdes e vacina e elementos belicosos da classe temerosa. O vanguardista está na ponta de qual corrida? Uma zona de furta-cor de onde emerge o supereu humorístico: pai, afasta de mim este riso de sangue

Demarcação de terras indígenas. Seringueiros, ribeirinhos, índios, operários e a lista de morte dos latifundiários do capitalismo 2.0. Poemas do cárcere de Ho Chi Min. Grupos de crime organizado (Coca-Cola, McDonald’s, FIFA) colonizando países emergentes. Não vai ter Copa! Meu cu é laico! Todo poder para o povo! Bancos públicos e privados quebram vidas. Anarquismos, comunismos e milenarismos. Pálidos economistas pedem calma...

2. Macaco é outro.

O ecletismo das ideias liberais escravocratas da conciliação. A transição classista da anistia para os orangotangos do conservadorismo militarizado. O obscurantismo do realismo capitalista na redemocratização.O poder moderador do imperador da canção popular (guardado por Deus, contando vil metal) entre os gaviões e os passarinhos de São Francisco de Assis.
Protegidas pela Guarda Nacional e pelo comitê policial da cultura letrada e do bom gosto, caras rosadas, nutridas, branquíssimas ou douradas pelo sol, se pintam de verde e amarelo e manifestam sua indignação contra a falta de cultura do público da nova vedete da música popular brasileira.

O pêndulo fica em cima do muro, entre a direita e a esquerda, e sempre retorna ao centro. Os liberais vibram, mas quando o pêndulo se mantém no centro, o relógio para. 

Nora Ney. Jorge Goulart. Conjunto Farroupilha. Maria Helena Raposo. Celia de La Serna. Carlos Marighella. Oscar Niemeyer. Lúcio Costa. Cortina de Ferro. Janelas Abertas. Antes do Ornitorrinco. 

Não se trata de realismo socialista, realismo capitalista, nacionalismo fantasioso, exotismo ilegível, “arte pela arte” burguesa. Os intelectuais e artistas juntam livros e rifles e, como últimos soldados da guerra-fria, começam a ouvir o diabinho cubano desafiador.

Rádio e TV Martí informa: indígenas, gays, mulheres, negros e brancos acabam de se filiar ao Alpha 66. Para o delírio totalitário dos estudos culturais. Enquanto isso, sujeitos monetários sem dinheiro transitam pela cidade e assustam turistas em transe e jovens adultos de classe média, que ainda não saíram do jardim da infância. 

Mas a Rede Vespa está de campana...

Arrastão na praia de Ipanema. Rolezinho nos shoppings de São Paulo. Coquetéis molotov no consulado dos EUA e no Clube Militar. Pedras quebrando vidraças de agências bancárias. Carros da PM queimados por militantes anarquistas. Ocupação de prédios para moradia popular. Ocupação de terras do latifúndio: baile primitivo.

Contra a despolitização com interesse político liberal mercadológico e classista hierárquico. Contra os novos conformistas, as variações contemporâneas da patrulha odara, as aves de rapina travestidas de cordeirinhos “amigos do povo”. Abaixo intelectuais tecnocratas dublês de banqueiros. Abaixo aristocracias de burocratas do Estado. Abaixo relativismos culturais pós-tudo e seus pares reacionários: os elitistas esnobes acríticos e suas reações de pavor diante do protagonismo popular. Basta de relativismo liberal mascarado de barroquismos tropicais, “modos de ser do Brasil” e figuras míticas sem história. A estátua de Glauco enfim mostra as suas feições aterradoras. O rei está nu e não é bonito. 

3. O que resta da ditadura? Os patetas adoram o discurso do poder.

Filósofos gays liberais, musas do topless, artistas rebeldes de classe média, estudantes barbudos de esquerda universitária, burguesia folclórica Rio-Paris, profissionais liberais e potenciais integrantes do Big Brother se divertem na praia de Ipanema, enquanto mulheres e homens negros pobres são vigiados ostensivamente pelas forças repressoras do mercado livre e do Estado democrático de direito.

Ao invés do equilíbrio de antagonismos (tão ao gosto dos nossos intelectuais malemolentes da “democracia racial” e da conciliação de classe ) a explicitação das contradições e o chamado ao confronto direto e à luta: baile primitivo.

O líder camponês. O líder sindical. A máscara negra da fome na melancolia dos trópicos. “Está vendo o que é o artista? Um imbecil, um analfabeto, um despolitizado, em festa permanente, rebolando no caos da miséria globalizada, enquanto o capitalismo ri de si mesmo e se faz paródia, alegria, alegoria”.

Bárbaros mandirobas com pés espalhados entoam a copla ao som do mestre de pancadaria e se juntam ao Rompe e Rasga e aos Destemidos da Chama, assustando os amenos carnavais do Resedá.

Quando o Brasil mítico, pré e pós-ocidente, encontra a história da luta de classes. Capoeiras, caboclos, milenaristas, indígenas e a plebe proletarizada e não proletarizada. O espírito de Deus se agita e no mar revolto a jangada volta cheia. É a Hora! É a Hora! 

Exército anarquista de libertação. Alguém me disse, e o peixe amarelo eu vi navegar. Eles eram muito cavalos. A garoa rasga a carne. Quando os barquinhos da Bossa Nova integrarem a esquadra revolucionária. Ele disse a ela e escancarou os dentes, esperando a morte chegar.

Entre as duas torres, um clarão. Imagens e fantasmagorias. Subflor e mais flor. Dinamitar a ilha Brasil, pairando, porque não podes. O futuro só pode vir na forma da monstruosidade. O tigre agachado e o dragão enroscado estão mais majestosos do que nas eras passadas, enquanto a lâmina aguda ceifa as raízes da propriedade privada. 

Justiçamentos. Tribunal do povo. Justiça popular. Nos meus retiros espirituais. Cortar a cabeça do capitalismo. Censurar ninguém se atreve. Balança rede, balança. 

Uma bandeira negra e vermelha tremula nas ruas do Brasil. Da ditadura democrática do povo. O terror revolucionário. A grande onda da liberdade de amar. Eu não nasci pra morrer.


Marcos Lacerda

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tropical condimentado

fotos: daryan dornelles
Tendências, traços geracionais, influências, cenas, coletivos e parcerias... Ao longo dos últimos três anos, todas estas questões nortearam as entrevistas do Banda Desenhada. Mesmo havendo uma tendência natural do blog em recortar e classificar a produção musical brasileira, sempre houve espaço para críticas e opiniões discordantes. Afinal, é a partir desta diversidade de vozes e de seus embates que se torna possível o aprofundamento de questões nevrálgicas que, futuramente, não só ajudarão a criar um painel mais multifacetado deste período como também apontarão para novos paradigmas. Assim, é de relevância o que o músico mineiro César Lacerda aponta nesta entrevista, ao criticar não só a própria historiografia da neoMPB como também a fragilidade técnica e certos vícios e tendências desta produção musical.
Nascido em Diamantina, César Lacerda iniciou sua carreira ainda na adolescência, ao integrar em Belo Horizonte o grupo (cLAP!), com quem lançou o EP “13’31”” e o álbum “um3” (2006). Em 2007, mudou-se para o Rio, inicialmente trabalhando como instrumentista em grupos de samba, jazz e choro. Em 2009, gravou “Ouça de Fone”, disco realizado em parceira com a cantora e compositora mineira Luiza Brina. Lançado no ano seguinte pelo site Musicoteca com o título “Vem aí, Coletivo Abigail”, foi mais tarde relançado, após nova produção e mixagem, pelo Jardim da MPB. Em 2010, ao lado de Luiza e de Luiz Gabriel Lopes (Graveola e o Lixo Polifônico), César idealizou o projeto “Por Um Passado Musicável: Notícias Numa Fita”, onde, por meio do Skype, o trio criava novas composições para, em seguida, apresentá-las em shows. Em 2013, dois anos após disponibilizar para download seu EP homônimo, César lançou seu primeiro disco, o elogiado “Porquê da Voz”, contando com diversas participações especiais, entre elas: Lenine, Marcos Suzano, Carlos Posada e Juliana Perdigão.
Após assistir a sua apresentação na temporada Gancho, no Espaço Multifoco (Lapa), em novembro do ano passado, convidamos César Lacerda para esta entrevista, que se realizou em um bar tradicional do bairro de Santa Tereza (RJ). Lá, conversamos a respeito de sua carreira, influências, geração e a cena independente brasileira.

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