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E mais uma vez o Banda Desenha se aventurou por Santa Teresa (RJ), adentrando o reino do Miradouro. Em seus poucos meses de existência, a casa/estúdio/laboratório/QG de Thalma de Freitas tornou-se um ponto de referência na cidade ao se falar de cultura e, principalmente, música. A atriz e cantora, integrante da Orquestra Imperial, optou por trilhar um caminho próprio: sem o menor interesse em se envolver com a burocracia do mainstream e com determinação e coragem para criar projetos mil, Thalma empenhou seus esforços na criação de seu próprio “reino”, onde músicos e artistas de variadas áreas, provenientes de diversas regiões do país e do exterior, se encontram e dialogam, promovendo uma confluência que, acima de tudo, instiga o pensamento criativo e a produção cultural. Através de registros audiovisuais, grande parte das ideias ali fermentadas será, posteriormente, divulgada no site do Miradouro, ainda em fase de construção.
Por conta desta empreitada e por sua participação ativa na cena musical paulistana e carioca, convidamos a “dama do castelo” para uma entrevista. Thalma iniciou nossa conversa de forma, no mínimo, inusitada: em sua cozinha, fazendo um bolo de chocolate. Por fim, acabamos sendo convidados para o jantar. Convite irrecusável. Confiram, então, esta deliciosa patuscada:
BD - A Orquestra Imperial foi concebida como um projeto despretensioso e de entretenimento. Contudo, acabou por se tornar símbolo da cena musical no Rio de Janeiro. Por sua vez, a mídia, ao mesmo tempo em que coloca você como uma das novas caras da MPB, também a insere no hall dos artistas já estabelecidos. Poderia comentar a respeito disto?
Thalma de Freitas - Acho que para se estabelecer é necessário um tempo. É óbvio que pode acontecer de você dar sorte e ter uma grande visibilidade logo no começo da sua carreira, mas geralmente você a constrói aos poucos. Várias bandas das quais você só ouve falar hoje já estavam a anos na estrada... Acho que tem um pouco a ver com isso. Eu já trabalho a vinte anos na área das artes e na indústria do entretenimento. Então, hoje, com 37 anos, acho meio natural que eu seja reconhecida como alguém que faz parte desta história. Eu realmente estou estabelecida. A minha carreira tem uma trajetória bem bacana. Aos 26 anos, ganhei um personagem de destaque na televisão... Isso me deu certa notoriedade e, com essa estrutura, com essa condição de “artista global”, bem sucedida no emprego, passei a me dedicar às outras coisas que eu curto e que sei fazer. Consegui a liberdade para ter duas vias de trabalho, uma delas totalmente dedicada às experimentações, curiosidades, viagens... Viagens pelo universo de outros artistas... Por conta da Orquestra Imperial, em 2004, me chamaram para gravar um EP. Fiz com meu pai [o maestro Laércio de Freitas] e optei por mostrar o universo de onde eu vim, o universo do meu pai, do Bebeto e do Wilson das Neves. Depois me dediquei às criações “serendiptas”, como a gente costuma brincar. Um amigo me descreveu como sendo uma pessoa totalmente “serendipta” [referente ao Serendiptismo - uma forma especial de criatividade, onde descobertas afortunadas são feitas ao acaso]. Eu perguntei: “O que significa isso?!”. Ele me disse: “Você vai descobrir”... Vou vivendo ao acaso: sigo a minha intuição, fico na batalha, na busca de coisas interessantes e bacanas para serem feitas, shows leais, shows com repertórios diferenciados, muitas vezes fora do padrão, totalmente dedicados ao amor à música... Como no caso do “Casio Knights”, que é um projeto experimental, de música improvisada, focada na composição. E o "Circus Serendiptus" que também é de música improvisada, mas focado em experimentos puxados para o teatral, para o show... Esses projetos fizeram com que eu circulasse e entrasse em contato com diversas pessoas. Era intencional. Estava em busca de uma sonoridade, da minha sonoridade. E ela tem a ver com o que está acontecendo à minha volta, neste tempo do mundo, do Brasil. Acho natural que eu acabe sendo vista como uma pessoa que circula, que trabalha basicamente em parcerias. Quando você tem o foco na carreira solo, você tem a sua história... Como não faço isso, acaba que a minha história é a de todo mundo, de todo mundo que cruzei... A minha história antes de tudo é uma viagem pelos vários círculos daqui do Rio, que é a cidade onde moro, onde eu tenho meu emprego, meus amigos e a Orquestra Imperial. E tem São Paulo, que é onde cresci. Meu pai é de São Paulo, tenho vários amigos lá, tem o Coletivo Instituto, que, apesar de não ser a minha banda, eu me sinto parte. Também já gravei com o 3 na Massa, fiz bastante coisas com o [Daniel] Ganjaman e o Tejo [Damasceno], então... Hummm, isso vai ficar bom! [Passando o dedo na raspa do bolo]. [Risos].
BD - Você tem uma carreira fonográfica bastante irregular, mas, em contrapartida, é vista participando e até mesmo encabeçando diversos projetos. Certamente deve haver uma forte cobrança para que você lance um álbum, não?
Thalma de Freitas - Durante muito tempo fiquei com um discurso reativo a esse respeito porque eu achava um pouco estranho... Chegaram a dizer que a Rede Globo atrapalhava a minha carreira ou que eu estava trabalhando na TV enquanto a minha carreira não estourava. Eu me senti ofendida. Porque o que eu faço na TV, de estar lá representando a mulher negra brasileira, tem um valor. Estou ali marcando um território, com meu cabelo crespo, com trança, com a minha identidade negra. É ali que sou a famosa de verdade. E é por conta deste emprego que eu posso afirmar que estou estabelecida e que tenho liberdade para criar. Além da segurança e de um bom salário, muito digno para quem é artista no Brasil, a Globo me dá muito tempo para que possa me dedicar a outros projetos... O pessoal de música desmerece um pouco, sabe? Acha que televisão é um negócio menor, sendo que ela tem um alcance muito grande. Eu me sinto mais relevante para a cultura brasileira estando onde estou e mantendo a minha relação com a música em um lugar confortável, sem estar exatamente comprometida com o mercado. É também um pouco de falta de vocação para produtora. Não tenho vontade de lançar um álbum que não seja bem gravado, bem produzido, bem mixado... Demora a levantar uma estrutura de produção e queria fazer outras coisas. Eu preferia ter mais estrada... Ainda não estava encontrando meu som, minha banda, nem um repertório que achasse que valeria a pena. Acabei me tornando reativa. Mas hoje nem é mais assim. Principalmente porque criei este projeto, esta proposta artística, de ter um local de criação, onde você possa trabalhar de diversas formas... Realmente não me sentia a vontade pra fazer um álbum e não queria lançá-lo. Eu dou um valor muito grande para um disco. Tem que ter um começo, meio e fim. Com história, com um grupo de pessoas trabalhando para ele. É como um filme, como uma peça... Já estou a muitos anos na estrada e vivi por muito tempo naquela zona de conforto da música brasileira que herdei de meu pai, da história que já sei, do tipo de música que sempre soube cantar... Eu precisava inovar... Inovar a mim mesma. Preferi fazer experiências, viajar, encontrar outras pessoas, criar... Durante todo esse tempo, fui aprendendo e acabei descobrindo que ao invés de cumprir o que esperavam de mim eu deveria buscar a minha própria identidade artística e estabelecê-la. E estava convencida de que não seria a de cantora tradicional e profissional. Já tenho uma vida burocrática bem resolvida na televisão e não vou inventar outra igual... Só para substituir. Tenho muita preocupação com as minhas coisas, quero que elas sejam sólidas. Não adianta só querer ter a fama, preciso da carteira assinada. Senão eu não vou acreditar que realmente estou bem. No Miradouro consigo realizar um monte de coisas bacanas, sem a menor intenção de ser um produto de massa. Ele é o meu trabalho solo. O meu trabalho solo onde boto a minha grana, onde boto meu investimento, onde gasto meu tempo, onde junto meus amigos, onde faço as minhas conexões. Ele fica dentro do universo de criação. Criação de conteúdo. Em meu HD eu tenho a pasta “Thalma Tudo”, com uns 70 gigas, basicamente com músicas e shows que eu fiz. Tenho um grande acervo musical que criei nos últimos tempos enquanto estava nessas pesquisas, nesses laboratórios. Sinceramente, essa forma de produzir combina mais comigo. É uma criação mais espontânea, menos comprometida e que se situa dentro de um universo possível. Ele é do meu tamanho, sabe? Acho um lugar humilde e digno para se ficar. Aqui eu sinto que há muitas possibilidades. Posso dar vazão às minhas coisas. A minha mídia é o web site, através dele vou soltando coisas, músicas e vídeos que eu vou fazendo. O meu cotidiano é rico o suficiente para alimentá-lo. Além disso, se o Paraphernalia [banda carioca] fizer um ensaio aqui em casa, ele será registrado. Daqui a pouco eles lançam um disco e você já assistiu uns teasers do ensaio pelo nosso site. Eu convidei a Casa Fora do Eixo para fazer a gestão do Miradouro porque o espaço é muito grande e a logística, a administração, dá trabalho. A Fora do Eixo é uma parceira excelente para os projetos e eventos que acontecem aqui. Tudo será registrado, mas não pretendemos ser um canal de televisão ou competir com gente muito grande. Faremos dessa forma, mas sempre com o foco na criação, registrando o que estamos vivenciando. E assim imagino que vou poder dar vazão aos meus trabalhos de uma forma muito mais autêntica.
BD - Tá cheirando, né?
Thalma de Freitas - Acho que já tinha alguma coisa no forno...
BD – A cena musical carioca sempre privilegiou o espetáculo, a diversão, em detrimento dos projetos mais ousados e autorais. Entretanto, há uns dois anos, a Orquestra Imperial vem mantendo um diálogo bem estreito com a nova geração de músicos de São Paulo que, de certa forma, tem uma grande preocupação com o conceito de seu trabalho.
Thalma de Freitas - É! Iara Rennó, né? [Risos]. Quer alguém mais cerebral do que ela? Eu não conheço. Ela é “o” cérebro! [Risos]. Olha, eu transito por várias tribos. Não tenho uma turma, mas sou bem aceita em várias. A Orquestra Imperial realmente não é focada em ser uma banda de carreira. Nós tocamos, nos divertimos e curtimos aquelas músicas... Nossa, faz tão bem encontrar com eles e tocar. Mas eu sou de São Paulo também. Quando comecei a desenvolver o meu trabalho, a buscar a minha própria sonoridade, a primeira coisa que fiz foi ir para São Paulo. Porque no Rio eu já tinha a Orquestra, já havia tocado com o Zé Ricardo e alguns amigos cariocas. E como vou sempre para lá, achei que seria rico trazer à tona esse meu lado paulistano, para que pudesse experimentar coisas novas e ter um celeiro de criação. Que no meu caso foi o Studio SP, que é uma das casas mais legais para tocar esse tipo de som. Ali eu conheci o Fernando Catatau... Os meninos do Vanguart... O Helinho Flanders tornou-se grande amigo meu. Foi lá que acabei encontrando e convivendo com essa galera. Montei uns shows com o Ganja [Daniel Ganjaman], que tinha na banda o Maurício Takara, o Catatau, o Junior Boca, o Helinho Flanders e o Bruninho [Bruno Morais], que toca com a CéU. Nessas temporadas fui ver o Cordão da Insônia e conheci a CéU e a Anelis [Assumpção]. Já fui subindo no palco e cantando com elas. Foi muito legal. E essas parcerias ficam. A galera do 3 na Massa me chamou para cantar no “3 na Massa: Na Confraria das Sedutoras”. Quando teve o lançamento do disco, quiseram que participasse do show. Por conta disso, acabei convivendo com o Geanine Marques. Tenho trabalhado mais em conjunto com essa geração, é verdade, mas o diálogo não se dá apenas no eixo Rio - São Paulo, se dá no Brasil inteiro. Muita gente que quer trabalhar e ganhar dinheiro vai morar em São Paulo. Porque a cidade tem trabalho e dinheiro mesmo! Uma coisa linda de meu Deus! Quando a pessoa quer enriquecer e estrear, causar, aí sim, vem pro Rio. Porque aqui é o lugar onde você estréia. Se você manda bem no Rio, você manda bem em qualquer lugar. Esse fluxo de artistas, esse diálogo, está cada vez maior e eu não tenho o menor pudor em admitir que faço parte relevante dessa ponte. Porque já estou a muitos anos morando, vivendo na ponte aérea. E aqui em casa recebo bastante gente de fora. Meus amigos cariocas me visitam e os amigos paulistas vêm e ficam por aqui. Essa troca dá tesão. Outro dia Andreia Dias estava no quintal tocando sua cuíca e seu pandeiro com Márcio Local e Seu Jorge. Esses encontros não têm preço! E isso que faz a cena toda crescer. Está cada vez mais fugaz essa divisão entre Rio e São Paulo. É só pra demarcar território, mas na prática mesmo a gente está cada vez mais Brasil, com cara de Brasil. Principalmente por causa da internet. Não tem mais fronteiras.
BD - Uma das principais características dessa geração é essa fluência, a capacidade de se misturar com outras gerações. Outros movimentos não foram assim.
Thalma de Freitas - Não eram assim? Mas e “Rua Nascimento Silva, 107, você ensinando pra Elizete”? Todo mundo se encontrando, fazendo música!
BD - Bem, a Bossa Nova era totalmente contrária ao Samba Canção e aos boleros... E a geração 80 do BRock...
Thalma de Freitas - Olha, sou muito crítica em relação à forma burocrática de se trabalhar. Percebo que teve toda uma geração, toda uma cena musical que é essa dos anos 80 e do começo dos 90, engessada pelos negócios da indústria fonográfica. Esse universo das gravadoras, de contratos de exclusividade, de rádios e de todos os seus acordos, é uma enorme burocracia. Não que os artistas fossem burocráticos, mas eles eram o recheio dessa estrutura. Seu álbum já saía com todo um plano de marketing. Mas tenho certeza que eles, no dia a dia, se conheciam, namoravam, ficavam, faziam música e trocavam ideias. Os Paralamas do Sucesso, os Titãs, o Kid Abelha, o Barão Vermelho, eles eram amigos. Talvez eles não trabalhassem tanto juntos, não fizessem tantos projetos no coletivo, mas se encontravam. Saíam do trabalho e se esbarravam no Baixo Gávea... Um fazia música para o outro... Então havia essa troca, só que as pessoas estavam presas às normas de uma gravadora. Mas agora a gravadora não está mais aqui para fazer essa divisão entre os músicos. A gente está mais dono do nosso próprio empreendimento e, por conta disso, tornou-se muito mais prático fazer uma turnê com dois ou três artistas, dividindo o mesmo técnico de som, a mesma equipe. Além de sair mais barato para a produção, a gente consegue tocar, se mostrar e, de quebra, viajar junto, curtir junto e criar uma história.
BD - É quase como se vocês estivessem na contramão do que se estipulou como valor universal nestes últimos tempos, que é a supervalorização do novo. Vocês não têm o menor problema em abraçar o passado...
Thalma de Freitas - Não acredito em nenhum tipo de evolução que não tenha uma base muito sólida. E você não tem base sólida quando é jovem. Pode ter um fogo primordial, a empolgação, o frescor, mas não tem uma base. Para se ter uma fundação você precisa de tempo e de desenvolvimento. Sempre existiu essa valorização do jovem, como também a supervalorização da beleza. Mas a beleza, o jovem, o incrível, o topo do mundo, é fugaz. O que fica mesmo é o que se mantém ao longo do tempo. Você tem os seus ídolos que te inspiraram e te ajudaram a crescer... Tem coisa melhor do que trabalhar com essas pessoas? E a partir da troca com um cara que já te influenciou você seguir teu caminho? É o melhor do mundo! É o que a gente faz na Orquestra, é o que eu faço na minha vida... É o que todos os artistas inteligentes que eu conheço fazem. Todo mundo cola nos carinhas mais velhos, no “tiozinho tal” pra saber “qualé da parada”, aí depois vai dar continuidade ao seu trabalho. Porque, poxa, antiguidade é posto. Eu tô aqui a um tempão já. Vi muita coisa acontecendo... a gente tem conhecimento pra passar pros outros. Quero mais é trabalhar tanto com o Seu Wilson das Neves quanto com a Mallu Magalhães... Os dois já participaram do “Casio Knights”. E essa é a coisa mais rica da vida. O jornalismo tende a definir, consolidar: é assim, é assado... Mas a verdade que a gente percebe hoje em dia é que as coisas estão no gerúndio, elas estão sendo. Você pode até afirmar agora, mas daqui a pouco vai mudar. Sempre muda e é bacana que mude. Essa é uma das coisas que me fez evitar o caminho antigo e convencional...
Rafael Rolim [Casa Fora do Eixo] - Querem um macarrão? Pensei em fazer um macarrão com brócolis...
Thalma de Freitas - Quer? Coma um macarrão...
BD - Pode ser. [Risos].
Thalma de Feitas [para Rafael] - Faz então que você cozinha bem.
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Muito bacana! Esse site Miradouro já está no ar?
Parabéns, bacana sua vibe! Tenho a sua idade o seu feeling e neste reveillon um amigo cunhou: "ères uma serendipta", pesquisando o significado encontrei vc!
As ondas que voce criou estão virando "Waimea!