o cara do outro lado

foto: daryan dornelles

Entender o atual cenário da música popular brasileira é uma tarefa complexa, ainda mais ao se tratar da cena independente. O aparecimento de uma geração tão criativa e heterogênea acaba por desnortear quem se aventura a estudá-la, pois, amiúde e com astúcia, ela vem incorporando em suas fileiras artistas de épocas e estilos diversos. Ainda sem um nome mais apropriado para designá-la, a “Neo-MPB” lança seu olhar sobre as mais distintas e insólitas referências, assim como outrora fizeram o Tropicalismo e o Manguebeat. Este último, fonte de inspiração para a cena atual, tornou-se "camaleonicamente" uma de suas múltiplas faces. Os trabalhos de Karina Buhr, Mombojó, Fernando Catatau, China e Ortinho são provas deste mimetismo e fundamentam a necessidade de um estudo sobre o Manguebeat para que se possa fazer uma análise sobre a música popular brasileira contemporânea.
Tendo conhecimento disto, o Banda Desenheda aproveitou a passagem de Ortinho pelo Rio de Janeiro e o contatou. O músico, ex-integrante da banda recifense Querosene Jacaré, lançou seu primeiro álbum solo em 2002. Já em seu terceiro trabalho, “Herói Trancado”, conseguiu unir diferentes gerações, formando parcerias com Arnaldo Antunes e Marcelo Jeneci, em um álbum com fortes influências de Jovem Guarda e BRock. Em sua entrevista, Ortinho falou abertamente sobre a sua experiência na música independente brasileira e o seu envolvimento com a “Neo-MPB”:

BD- De modo geral, a cena independente a e nova geração da MPB não possuem uma ligação estreita com o rock dos anos 80. Contudo, o seu novo trabalho tem nitidamente influências do pop/rock daquela época. Você gosta daquele tipo de som? Como é a sua relação com a geração 80?

Ortinho - Acho que é a questão de você ter coragem de mostrar as suas referências musicais. Se existe algum preconceito dentro da música brasileira “moderninha” é porque a galera tem “nóia” e fica ressabiada ao falar sobre os anos 80 ou em reconhecer as suas influências mais populares. Eu vejo que algumas das novas cantoras de São Paulo dizem ter referências musicais muito antigas ou muito contemporâneas, mas nenhuma se refere à Marisa Monte. Entretanto, eu vejo tanta gente com influência de Marisa e do que ela trouxe pra música brasileira... Existe um medo ou preocupação sobre o que dizer de suas referências musicais. As minhas são bastante claras. Toda a minha adolescência foi musical e os anos 80 ficaram impressos em mim. Eu não ouvia muita coisa de fora... Só conhecia os clássicos: Led Zeppellin, Pink Floyd, Yes, Violent Femmes, Beatles, Bob Dyllan, Jimmy Hendrix, Janis Joplin, The Doors, essas coisas todas que quem gosta de rock 'n' roll conhece. Nos anos 80, quando eu tinha 14/15 anos, eu trabalhava na Rádio Difusora de Caruaru como controlista de som. Ficava lá no aquário colocando as propagandas. Era uma mesa de som e os vinis. As gravadoras enviavam discos de vários artistas que até então ninguém conhecia: eram os Paralamas do Sucesso, os Titãs, todas as bandas daquela cena. Os discos promocionais chegavam, eu botava pra ouvir e era uma surpresa. Era tudo muito recente. Primeiro essas bandas estouravam no Sudeste e só depois é que vinham para o Nordeste. Como eu trabalhava nessa rádio, eu acabei crescendo ouvindo esse som. A adolescência é uma coisa que te marca muito, aquilo que você escuta tem grande importância. Eu também curtia muito o regionalismo, era do tipo de caruaruense do interior, que gostava de Zé Ramalho, Xangai, dos cantadores [poetas que cantam seus próprios versos ao som da viola ou da rabeca, muito populares nas feiras e quermesses no Nordeste]... Elba Ramalho, Amelinha... Além dos grandes clássicos do rock 'n' roll. Eu gostava de saber o que inspiravam eles... Terminei curtindo a música norte-americana das décadas de 1940 e 1950 e, depois, a cena inglesa dos anos 70, junto com a música brasileira, o Tropicalismo... Eu me lembro que pedi à minha mãe o disco do Gilberto Gil que vinha com “Não chore mais (no woman, no cry)”. Comecei a gostar de Bob Marley por causa dessa música... E as minhas referências são essas. Eu não tenho hábito de ouvir coisas modernas, não sou antenado com a cena eletrônica. A minha música deixa isso bem claro. Não tenho problema nenhum em mostrar que as minhas fontes são essas, que a minha história vem daí.

foto: daryan dornelles

BD - Como e quando começou as parcerias com Arnaldo Antunes? Você já gostava dos Titãs...

Ortinho - Eu adorava os Titãs. Todo mundo que conhece a música da década de 80 tem o Arnaldo Antunes como uma das referências mais fortes. Ele era uma figura muito emblemática. Você olhava pra ele... Não tinha quem não prestasse atenção. Mesmo dentro de uma banda tão singular como os Titãs, ele conseguia se destacar dos demais. Eu sempre acompanhei a sua carreira, sempre fui seu fã, e aí teve essa coincidência... De um querer conhecer o outro. Ele já tinha ouvido falar de mim, já havia escutado algumas coisas que eu fiz, e a partir do momento que a gente começou a compor junto, essa influência veio à tona. Eu o tenho como grande referência, um cara que eu escutei muito. As suas letras, a sua forma de escrever... Nós nos conhecemos em São Paulo...

BD - Você chegou a morar em São Paulo uma época...

Ortinho - Morei de 1998 até 2003. Eu estava fazendo meu primeiro disco [Ilha do Destino] e ele chegou...  Batemos um papo. O Guilherme Kastrup e alguns outros músicos que tocavam com a gente sempre davam esse toque: “Vocês têm que se juntar pra fazer alguma coisa! Vocês são muito parecidos”. Nos conhecemos nessa época e eu comecei a frequentar a casa dele, começamos a trocar ideias e elas foram amadurecendo. Quando o Arnaldo foi passar umas férias em Pernambuco, eu mostrei algumas coisas e ele falou: “Pô, eu estou compondo para um disco novo e o som tem a ver com esse papo que a gente está batendo”. Nós começamos a tocar violão e eu terminei mostrando umas coisas inacabadas, umas ideias. Nós trabalhamos nelas e eu fui pra São Paulo, onde nos encontramos e, junto com o [Marcelo] Jeneci, fizemos essas parcerias, tanto pro “Iêiêiê” [álbum de Arnaldo Antunes de 2009] quanto para o meu disco “Herói Trancado”.

BD - Você parece bem confortável fazendo parcerias e dividindo shows com a nova geração. Como foi essa aproximação e o que você vê de interessante neles?

Ortinho - Eu acho que, para você interagir, se integrar, eles são bem mais abertos do que a galera da minha geração. São figuras que se permitem. Além disso, eles são amigos de músicos que trabalham com a gente. O guitarrista que toca comigo toca com o Jeneci; o pai [e guitarrista da banda] de Tulipa Ruiz, o Luiz Chagas, é a mesma coisa; o baterista de Karina Buhr também já tocou comigo... Então, existe uma rede de músicos que acaba por servir de elo entre os cantores, os artistas. Então, não importando as gerações, o som que estamos fazendo está começando a sair do anonimato e se tornando um grande movimento. Fazemos parte da história da música independente brasileira que foi escondida durante muito tempo... Mas agora não tem mais quem a segure! As grandes gravadoras e o mercado fonográfico estão sofrendo um colapso e nós comemos pela beirada. Estamos aparecendo por conta disso. A Internet faz com que nós não necessitemos tanto da grande mídia para divulgarmos nosso trabalho. O Brasil passou muito tempo tratando a sua arte independente como se fosse de má qualidade, como se não existisse. Além disso, ainda há o preconceito por parte do grande público, que acredita que se você não for de uma grande gravadora, você não presta. E não é! A realidade é outra. Os artistas independentes, sem se ater às gerações, estão interagindo bastante porque há uma curiosidade, uma necessidade de entrar em contato com outros músicos, não importando de onde venham. Bruna Caram, uma menina que eu ainda não conhecia e que é uma grande cantora de São Paulo, teve contato agora com o meu trabalho e gostou das minhas composições. Por sua vez, o Jeneci participou do meu primeiro disco como instrumentista e, tempos depois, começou a me mostrar suas canções. Eu conheci a Tulipa Ruiz há uns quatro anos, quando ela foi morar em São Paulo. Já tinha uma voz maravilhosa e começou a fazer música, se tornando uma grande artista. Todos nós andamos meio juntos, nossas gerações se encontram e se cruzam. E essa nova turma está levantando a música brasileira atual.

BD - Você ainda viveu a época das grandes vendas de CDs, jabás e o auge da indústria fonográfica. Como você se sente no atual e complexo momento de divulgação e venda de música?

Ortinho - Até pouco tempo as gravadoras tinham muita força porque a tecnologia era exclusividade delas. Elas poderiam te colocar dentro de um estúdio para fazer um disco com qualidade, interessadas em seu trabalho graças ao produto final que lhes trariam lucro...  E, dentro da mídia de massa, você só tinha acesso à música de alguém se ela tocasse na rádio ou na televisão, o que era bem difícil. Quando as novas tecnologias surgiram e, junto com elas, a chance de você fazer um disco dentro de sua própria casa, o artista independente pode imprimir uma qualidade em seu trabalho que até então só os do mainstream poderiam. Hoje em dia há uma geração muito boa de músicos e a Internet é a grande responsável por agregá-la. Estamos nos adaptando a essas novas mídias para criar um mercado. As gravadoras que se cuidem! [Risos].

foto: daryan dornelles

BD - Você estudou artes cênicas e artes plásticas e participou dos filmes “Baile Perfumado” e “Árido Movie”... Como foi isso?

Ortinho - Eu fiz também “Schenberguianas” [2006], de Sérgio Oliveira, além de outros curtas. Participei, junto com o Otto, do documentário “O Mundo é uma Cabeça” [2004]. Fiz também a trilha para o longa “Orange de Itamaracá” [2005], de Franklin Jr. e Márcio Câmara. Lá em Recife tem uma galera que levantou o cinema nacional: Lírio Ferreira, Claudio Assis, Paulo Caldas, Marcelo Gomes... Toda uma turma de cineastas, de artistas, que se conheciam dos bares de lá, da Soparia, do Cantinho das Graças... De certa forma, eu já estava envolvido com aquele movimento cultural que explodiu no começo dos anos 90. Eu tinha a banda Querosene Jacaré e como todos os artistas andavam juntos, o que fazia cinema reunia os amigos e dizia: “Ó, vocês vão ser os cangaceiros do meu filme!”. Aí os músicos falavam com um amigo fotógrafo: “Pô, vamos tirar foto! Ajuda a gente a fazer uma divulgação bacana”. Outro vinha e dizia: “Vou fazer um clipe da sua banda e tu vai fazer uma trilhazinha pro meu filme”. Era uma troca muito grande. Eu também fiz teatro por muito tempo em Caruaru e a galera viu que na minha performance de palco havia um trabalho de ator, uma encenação... Então sempre me convidavam pra fazer as coisas e eu ia... Comecei com uns curtas, fiz uma pontinha bacana em “Baile Perfumado”. Aí fiz um papelzinho melhor no “Árido Movie”... O Otto, por exemplo, já está dirigindo uns clipes, daqui a pouco vai sair como diretor de cinema também. Essas coisas andam juntas. Eu morei muito tempo com uns artistas plásticos, o Flávio Manuel, o Mauricio Silva e a Marisa. Quando cheguei de Caruaru eu passei um tempão no ateliê deles. Eu transito muito, eu gosto de estar nesse convívio de artistas, independente da área. Em 1990, antes de começar a minha carreira musical eu morei com Jairo Arcoverde em Alto do Moura, fui estudar cerâmica com ele e a mulher dele, Betty Gatis. Passei um ano lá e, vendo que eu pendia mesmo pra música, fui morar no Recife. Aí descobri que o Otto estava lá. Ele é meu amigo de infância! Já estava tocando no Mundo Livre S/A... Foi ele quem me apresentou ao Chico Science e a toda turma. Foi coincidência atrás de coincidência e aí a gente correu em busca do sonho, né? Então é isso que eu faço até hoje.

comentários - o cara do outro lado

  1. Gostei da música de Ortinho. Não acho que o meercado esteja entrando em colapso. Nós de gosto musical é que estamos.
    Parabéns ao pessoal da BD. Estão costurando uma teia com gente de talento que estamos a conhecer e gostar.

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