molho, ritmo e balangandãs


fotos: daryan dornelles


Technopop mexicano, jazz alemão, rock psicodélico brasileiro, country dinamarquês, indie filipino, heavy metal japonês... Em tempos de universalização da cultura, assistimos nas última década uma avalanche de artistas dos mais diferentes pontos do planeta ganhando destaque em diferentes nichos do mercado fonográfico ao articular em seu som, até então taxado de regional ou mesmo folclórico, uma identidade “universal”. Se por um lado há de se comemorar o consumo pelo mundo afora da obra destes artistas, é importante perceber que, para que tal aconteça, se faz necessário a rotulação de seu trabalho por olhos e ouvidos dominantes pouco aptos à diversidade cultural. Assim, para estes, a nacionalidade de um som ganha ar cosmopolita ao agregar-se a um gênero internacionalmente conhecido. Mesmo que, em pleno século XXI, seja um tanto questionável discutir “brasilidade” e que haja pouco consenso sobre de que forma devemos preservar e estimular as tradições e os ritmos ditos regionais, é importante perceber que certos processos estigmatizantes ainda são devidamente estimulados por uma cultura de massa globalizada. 
Ao mesmo tempo, vivemos em um período que se destaca pela efemeridade das tendências e pelo descarte quase automático de artistas que, na estação anterior, foram considerados a grande revelação do momento. Assim, tornou-se imperativo que os jovens músicos, inclusive brasileiros, adquirissem um aspecto amorfo ou, utilizando um termo mais pertinente, líquido, sem se prenderem a um gênero que, por ventura, mídia e público facilmente descartariam após seu consumo. Deste modo, ganhou um tom quase ofensivo a associação dos novos nomes da música brasileira com a agora antiquada MPB, termo que envelheceu rapidamente nos últimos anos e que de fato se viu incapaz de abarcar a pluralidade estética da nova geração. Esta, que em boa parte se autointitula pop, se diferencia de suas predecessoras não só pelas questões estilísticas ou por se ver inserida em um novo contexto do mercado, mas também pela enorme valorização das particularidades inerentes a cada artista, inviabilizando as muitas tentativas de classificá-los por gênero ou mesmo inseri-los em algum possível movimento. 
Representante inconteste de uma cultura universalizada, propulsionada pelo desenvolvimento tecnológico das últimas décadas, a música contemporânea brasileira e, de forma mais nítida a cena independente, ao mesmo tempo em que se tornou mais democrática, potencializando sua diversidade e dando voz a um sem número de artistas das mais variadas regiões do país, vive as idiossincrasias e os tormentos por que passa a cultura de qualquer nação periférica: A busca por uma mobilidade que, se por um lado, a desenraiza e a liberta de qualquer identidade monolítica, por outro, a torna vítima de um mercado cultural globalizado extremamente voraz e competitivo.
Nadando contra a correte e buscando um olhar mediador voltado tanto para a tradição quanto para a contemporaneidade, Fabiana Cozza é um dos casos raros de sua geração que levanta a bandeira da música popular, ou melhor, do samba. Considerada uma das maiores intérpretes da atual música brasileira e dona de uma voz prodigiosa, Fabiana cresceu em meio às rodas de samba paulistanas e ouvindo em casa os LPs de samba e jazz de seu pai, Oswaldo dos Santos, ex-puxador da escola Camisa Verde e Branco. Em 2004, lançou seu primeiro álbum, “O samba é meu dom”. Três anos depois, seria a vez de “Quando o céu clarear”, onde estreitou laços com a música cubana. Em 2008, gravou seu primeiro DVD, no Auditório Ibirapuera, com as participações da cantora Maria Rita e do rapper Rappin Hood. Em 2009, interpretou o repertório de Elizeth Cardoso no espetáculo “Fabianíssima” e, ainda no mesmo ano, realizou um tributo a Edith Piaf ao lado da Orquestra Jazz Sinfônica. Em 2010, ano em que foi celebrado o centenário de Adoniran Barbosa, a cantora realizou uma série de shows em homenagem ao compositor, com a participação do rapper Emicida. Seu terceiro álbum, “Fabiana Cozza”, lançado em 2011, reiterou suas convicções, mostrando uma cantora atenta não só aos grandes nomes da música brasileira, mas também aos novos compositores de sua geração, gravando duas canções de Kiko Dinucci, “São Jorge” e “Santa Bamba”.
Dias antes da estreia de seu novo show no Rio de Janeiro, em dezembro passado, Fabiana Cozza aceitou o convite do Banda Desenhada e nos encontrou no boêmio bairro de Vila Isabel para a entrevista. Generosa, fez uma análise profunda sobre a sua geração e ofício, comentando também a sua trajetória e influências:

BD - Você é da mesma geração da Mariana Aydar, CéU e Tulipa [Ruiz]. No entanto, se destaca não só por ser intérprete, mas por ter uma presença que remete muito às tradicionais cantoras da música popular brasileira. Como é isto? Poderia falar do porque desta escolha?

Fabiana Cozza – Eu vejo que há realmente uma grande diferença estética entre nós, mas fico muito feliz com a minha escolha porque ela tem a ver comigo. Sinto que este caminho da intérprete é uma opção que poucas fazem hoje em dia. Mas não me incomodo com as novas tendências que surgem. Não fico seduzida por elas e nem penso em alterar o meu trabalho para talvez ter mais relevância para a mídia. Isto não me preocupa. Na verdade meu compromisso primeiro é cantar aquilo que eu sinto, aquilo que eu gosto, sem muitas concessões aos modismos ou às tendências. Mas, agora, isto não significa que eu esteja à parte de toda a cena, que não escute, que não saiba quem é que está por aí. Conheço todas estas cantoras que você falou, inclusive pessoalmente: CéU, Mariana, Tulipa... E acredito que, da mesma forma, elas escolheram caminhos que dizem respeito a si próprias. As referências musicais que elas têm... Há uma questão de formação que é essencial. Acho ótimo todas estarem fazendo aquilo que acreditam, independente da estética que escolheram, e seguindo! É importante que haja esta pluralidade, até porque tenho certeza que cada uma escuta o trabalho da outra. A CéU, por exemplo, me conheceu e disse, certa vez, que iria me mandar uma música... Eu não tenho nenhum tipo de restrição ao diálogo. Agora, é claro que o que chega às minhas mãos vai passar para o público com o sotaque da Fabiana Cozza, pelo meu filtro. 

BD – Há também algo curioso, talvez por não querer se ver rotulada, boa parte desta geração prefere se afastar de termos como MPB e se autoclassificar como pop.

Fabiana Cozza - No fundo eu acho que pop também é um termo muito confuso. O que é pop?... Acredito que muitos tenham dificuldade em definir. Talvez os artistas façam esta escolha para não serem estigmatizados... Até porque é perigoso mesmo, a imprensa quando pega para tachar, acabou, morreu. Eu mesma sofri um pouco com isto ao fazer Edith Piaf [2009]... Houve toda uma preparação para o espetáculo: Estudei canto com o Felipe Abreu e francês com uma professora. Eu queria fazer o melhor, porque era uma responsabilidade muito grande. E, mesmo assim, fui chamada de “a sambista”... Não deixa de ser uma forma de engessar. Eu não nego o termo sambista, nunca neguei e digo isto para todo mundo com muita tranquilidade, mas o meu trabalho está um pouco além. Talvez, por conta disto, muitas cantoras hoje não queiram se assumir dentro de um estilo justamente para não ficarem estigmatizadas. 

BD – Por sinal, você levanta e defende a bandeira do samba de forma muito pertinente. O que ele representa para você?

Fabiana Cozza – Tenho muito orgulho do que sou, de onde venho, do que faço e de todas as pessoas que me ensinaram. E não vou para o mundo sem uma cor, não vou inodora e insípida. Vou tendo uma cara, um jeito de vestir, um jeito de dizer... Não deixa de ser uma escolha política o que se canta e o que não se canta. Talvez no passado esta questão não fosse tão problemática, mas hoje nós vivemos em um mundo muito confuso, em que as pessoas têm muito receio em falar as coisas e se posicionar. Não estou querendo com isto analisar ou julgar ninguém, só estou dizendo que assumo o samba porque fui lá fazer a lição de casa e porque é um lugar que me conforta. É um lugar que tenho muito orgulho de pertencer e é uma identidade muito forte. O que não significa, ao contrário do que muita gente possa pensar, que estou engessada, que vou cantar samba o resto da minha vida e que não posso me enveredar por outros caminhos. Canto sempre o que me arrebata e isto independe de gênero. Agora, que o samba me contagia, é óbvio. E é por isto que eu o canto.   

BD – E no seu caso, mesmo que prevaleça a imagem da sambista, você sempre manteve um diálogo com outros músicos da sua geração, como o Emicida, Kiko Dinucci e Rodrigo Campos...

Fabiana Cozza – Justamente. Talvez , por uma opção estética, não haja tantos pontos de contato entre os trabalhos de meus colegas de geração e o meu, mas tanto estou atenta que gravei em meu primeiro disco, em 2004, uma composição do Rodrigo Campos. Fui a primeira cantora a gravar uma música do Rodrigo, uma parceira dele com Marcos Paiva. Depois gravei o Leandro Medina que é um paraense maravilhoso, que mora em São Paulo. Agora gravei duas músicas do Kiko Dinucci e o próximo disco terá uma do Tiganá Santana... Provavelmente, também entrará uma canção que a Luisa Maita me deu e que gostei muito. E assim vou burilando... Agora, tudo vai sendo composto e sentido bem devagar. Não sou uma cantora que tem pressa. Sou ansiosa em questões do dia a dia, mas no processo criativo não. 

BD - E o que lhe atrai na obra destes novos compositores? Nas canções do Kiko e do Rodrigo, por exemplo...

Fabiana Cozza – O Rodrigo tem uma grande urbanidade nas suas composições, é um excelente cronista. E não deixa de falar do lugar de onde saiu; ele fala para o mundo, é um menino muito atento e escolheu uma estética muito atual para trabalhar suas composições, mas através de suas lembranças. “Lúcia”, uma das canções que eu ia gravar, é um exemplo: Foi feita para a mãe dele. E é todo um desenho de uma periferia paulistana, mas que caberia em qualquer lugar do mundo, tanto na Somália, quanto na periferia de Paris ou nos guetos norte-americanos. Suas canções são histórias universais. Tanto o Rodrigo quanto o Kiko possuem esta universalidade justamente porque conhecem muito bem os seus quintais. Eles saem dali para falar ao mundo. E quem não conhece o seu berço, sai para o mundo de muletas. Eu acredito nisto. E creio que o Kiko também. O Kiko pesquisa muito a questão dos ritmos afro-brasileiros. Seu violão é bastante diferente dos demais músicos que tocam samba ou ritmos ligados ao samba. Ele africaniza mais o seu violão porque conhece o que está fazendo. E se envolve mais com os elementos da mitologia africana, diferente do Rodrigo. E esta magia... Eu adoro mitologias, os deuses, como eles se organizam, o caráter bastante humanizado que possuem, de serem nossos espelhos... Gosto muito desta seara que o Kiko transita. Porque o mítico para transpor para o palco é genial, é de uma riqueza...


BD - As canções que você interpreta se destacam justamente pela ligação com a religiosidade afro-brasileira. Ela tem uma importância enorme em seu trabalho, não?

Fabiana Cozza – As pessoas sempre me abordam sobre esta questão perguntando primeiro se eu sou do candomblé. Gosto muito quando não me perguntam isto, porque não faço proselitismo com o candomblé. Não lhe indagam a respeito de sua religião para que possa cantar ou trabalhar em um banco, por exemplo. Não importa saber isto. A questão religiosa não é a minha guia. Eu canto músicas que citam orixás, que falam das histórias destes deuses africanos porque sou apaixonada por esta mitologia, muito antes de ser do candomblé. Ah, agora sim, eu sou do candomblé! [Risos]. Mas já fui budista, já fui católica, batizada e crismada. E se tiver que ir a uma missa hoje eu sei cantá-la toda. Então, ultrapassa a questão religiosa. É muito raso alguém pensar que você faz uma coisa porque é de uma determinada religião. E digo isto porque hoje em dia as pessoas fazem desta questão uma grande guerra. E aí sim, abordando este tema, acredito que, das religiões que conheci e professei, o candomblé é uma das que menos preconceito tem ou que menos preconceito alimenta. Porque recebe gente de tudo quanto é canto, de tudo quanto é jeito, de tudo quando é cor, de qualquer tipo de orientação sexual. É uma bagunça o negócio! [Risos]. Uma bagunça boa, um caldeirão. E todo mundo é muito bem recebido. É o grande aprendizado africano, onde você entra na casa de uma mãe negra e terá comida para o seu filho e para você também. Do mesmo modo que ela terá uma cama para o seu filho, ela irá arrumar um lugar para você dormir. Isto é um aprendizado que em outras culturas também existe. É uma questão de educação, de tradição, de ancestralidade. Eu mesma sou casada com um evangélico, meu marido é batista e tem um enorme respeito pela minha religião assim como eu tenho pela dele. Comecei a carreira cantando em uma igreja batista. Cantava hinos gospel e negro spirituals em um coral negro maravilhoso lá de São Paulo. Eu não era evangélica, mas cantava. Então, não posso fazer de maneira nenhuma uma música que seja segregadora. Eu não estou para esta turma. Penso em música e arte como possibilidade de cura, pessoal e de quem quiser se misturar. E a minha opção pelo samba e pela música negra brasileira, a música do tambor, foi um chamado. Porque aprendi a ouvi-lo e tenho um respeito tremendo por estas coisas. Faço questão de cantar os orixás e gosto muito das pessoas que fazem isto com dignidade, porque independente da etnia que nos reconhecemos, viemos do mesmo lugar, como todos. Tanto acredito nisto que estou indo agora para Israel cantar com cristãos, judeus e muçulmanos [Fabiana se apresentou mês passado ao lado do The Voices of Peace Choir]. É disto que eu preciso. 

BD – Você já realizou alguns shows ao lado do Emicida e do Rappin Hood...

Fabiana Cozza – Cantei ao lado do Rappin Hood para o DVD e dividi os palcos com o Emicida durante o ano passado quase inteiro [2010] e este ano [2011] também. 

BD – E como foi esse encontro com o Emicida?

Fabiana Cozza – Conheci o Emicida através de um saxofonista de São Paulo, o Thiago França, que toca com o Kiko. Eu estava fazendo um show com o seu Nelson Sargento... Ele veio fazer uma entrevista comigo, acho que para um site... Tempos depois, se tornou apresentador de um programa da TV Cultura e me entrevistou novamente. E aí, por uma questão de empatia e de admiração recíproca, o convidei para participar de um espetáculo meu em homenagem ao centenário de Adoniran Barbosa. Eu queria dar uma desconstruída, então chamei um cronista do meu tempo para falar de outro que ainda é muito atual.  E foi ótimo, porque não subvertemos a poesia do Adoniran, ela continuou ali, preservadíssima, só que na boca de um menino de 25 anos e de uma cantora também desta geração. E com a nossa força. Havia nisso um discurso negro muito forte. Não só negro, mas de quem veio de baixo, de quem veio da periferia. Os shows lotaram. As pessoas não acreditavam na hora em que eu cantava: “Quando o oficial de justiça chegou/ Lá na favela/ E contra seu desejo/ entregou pra seu Narciso/ um aviso pra uma ordem de despejo/ Assinada seu doutor/ Assim dizia a petição/ Dentro de dez dias quero a favela vazia e os barracos todos no chão”... Aí entrava o Emicida! Era genial! E tudo começou a partir daí. Depois ele me chamou para cantar em cima de umas rimas suas. Eu vinha com a parte melódica. E é o que a gente tem feito por aí até hoje. Toda vez que ele me chama eu estou lá e toda vez que eu o chamo ele vem. É uma parceria boa. O Emicida acabou de soltar um disco ["Doozicabraba e a revolução silenciosa"] em que eu participo de uma faixa ["Cacariacô"].  Ele ouviu o disco da Clementina [de Jesus] com Tia Doca e o Geraldo Filme ["O canto dos escravos", 1982], que é uma grande referência de canções de labor, e me ligou: “Fabi, isso aqui é genial”! Eu já conhecia e disse que ele poderia trabalhar muito em cima disso. Ele falou: “Pô, eu peguei uma estrofe aqui, criei um negócio, será que você não quer vir gravar neste disco? Vai sair agora”. Fui lá e a gente gravou. E eu tenho feito estes shows em sua companhia. [Em tom irônico] Então me sinto muito atual, muito contemporânea. [Risos]

BD – Por falar em São Paulo, acho fantástico que você, uma paulistana, seja considerada uma das maiores sambistas da atualidade. Ainda mais sabendo que o Rio de Janeiro detém um monopólio dificílimo de ser quebrado ou mesmo questionado.

Fabiana Cozza – É difícil mesmo. Eu, na verdade, sempre fui bem recebida no Rio de Janeiro, em especial pelo público carioca. Vim para cá em 2006 para fazer uma roda no Trapiche Gamboa. E lá pude conhecer alguns dos melhores músicos da cidade: Rogério Caetano, Paulão Sete Cordas, Alessandro Cardoso, Paulinho Dias, Humberto Araújo, e tantos outros que me acompanharam. Devo muito a uma capixaba, Angela Canal, que me deu casa e comida, e a uma dupla de artistas que sempre que podia me convidava para cantar, que é o Silvério Pontes e o Zé da Velha. Toquei e aprendi muito com os dois. Fazíamos gafieira a dar com pau em qualquer buraqueira aqui. Estava começando minha carreira e aprendi a cantar e a swingar muito com esses caras. Tenho muito a agradecer. Fui muito bem recebida, de verdade. Ninguém nunca achou que eu fosse paulistana. Isto também acontece quando eu vou à Bahia e à Minas Gerais. E acho isto muito bom. Onde eu piso, piso com a consciência de que vou para ajudar a festa a ficar um pouco melhor. Não nego a bandeira do meu estado, mas não a empunho para fazer afronta a ninguém. Não tenho e nunca tive este objetivo em lugar nenhum do mundo. Então eu vou para me misturar e quando consigo é sempre muito bom. Acredito que exista sim uma dificuldade de se chegar ao Rio e acho que talvez porque aqui as oportunidades são menores. Infelizmente, a cidade que já teve tantas casas para os artistas se apresentarem e serem revelados, atualmente já não oferece mais tanta oferta. E esta é uma reclamação que faço porque agora moro aqui e em São Paulo. Sou casada com um carioca e ele vai muito mais a São Paulo para trabalhar do que aqui. Acho uma pena. Mas creio também que o Rio não esteja sofrendo nada de diferente que outros estados já vêm sofrendo quanto ao abandono público em relação à música e às artes em geral. Os espaços públicos estão se reduzindo e São Paulo sofre da mesma questão. Os poucos que continuam ativos são disputados à unha e muitas vezes a demanda é muito maior, além de existir certos favorecimentos que a gente já sabe... Mas a cidade acaba se diferenciando das demais por conta de uma instituição chamada SESC. O SESC funciona muito bem, os artistas conseguem fazer intercâmbios, vão para lá, tocam e não precisam tirar do seu cachê para pagar a hospedagem e a alimentação... Está tudo custeado. É um modelo que funciona. Seria ótimo que se expandisse para outras cidades, porque a atual situação do artista brasileiro é muito crítica. Hoje em dia, o que tem de músico fazendo bico em outra área não é brincadeira! 

BD – Quase todo mundo.

Fabiana Cozza – Não é? E é uma pena. Porque precisamos nos alimentar de muitas coisas para subir no palco. Precisamos ir ao teatro, ao cinema, ler, conseguir ter um tempo de tranquilidade para poder criar... Agora, como é que se faz isso se chega 15 contas em sua casa e você não conseguiu pagar cinco? Aí cortam o seu gás, a luz... Não tem condição! Vai cantar como? Canta porque é lutador, é guerreiro. Porque do contrário não canta. É difícil demais.



BD – Voltando à questão do samba, achei curioso, após entrevistar alguns artistas de São Paulo que dialogam com o gênero, descobrir que a maior influência deles era o samba carioca e não o do Adoniran Barbosa ou do Paulo Vanzolini. Ao que tudo indica, você também...

Fabiana Cozza – Não tem como ser diferente. Porque o samba saiu de lá do Recôncavo baiano, trazido pelas Ciatas para o Rio de Janeiro. Muito da nossa formação, da força do samba que nós paulistanos cantamos, vem do samba carioca. Historicamente, lá trás, Dionísio Barbosa, fundador do Grupo Carnavalesco Barra Funda [1914], antes de criá-lo, veio para o Rio para ver como era feito o Carnaval. E ao chegar aqui, se deparou com os ranchos, com uma formação musical que era diferente do que a gente tinha por lá. Dionísio levou então este exemplo para São Paulo e começou a fazer samba assim: Com violão, pondo instrumentos de couro no meio, juntamente com os clarinetes e tudo mais. E aí, é claro, fomos incorporando esta cultura do samba carioca. Porque o samba de São Paulo era diferente, era rural, do interior. A gente é do interior. E muito das cantoras que eu ouvi se não são do Rio de Janeiro, fizeram história no Rio, como é o caso da Alcione. A Alcione é, sem dúvida nenhuma, uma das maiores responsáveis por eu ter aprendido a cantar samba. Os seus discos da década de 70 são memoráveis. Por influência do meu pai, também ouvi muito Clara Nunes, Elza Soares, Beth Carvalho, Elizeth Cardoso e Leny Andrade, que já vem de outra seara, do samba ligado ao jazz. Elas são a nata da música popular brasileira, são todas muito expressivas e têm uma identidade muito forte. A Marrom, em especial, possui um swing, uma possibilidade musical imensa, um talento para improvisar, uma potência vocal... É fabulosa. Lembro que, quando criança, vivia imitando a Alcione. Quando comecei a carreira, as pessoas falavam assim: “Porque você tem um quê da Clara Nunes, um quê de Elizeth... Você se ofende se disser isto”? Eu: “Não! Pelo amor de deus! Você está maluca?! E alguém lá pode se ofender com uma comparação destas”?! [Gargalhadas]. Vou é ficar feliz da vida. [Risos]

BD - Seu último álbum foi elogiadíssimo e, na sua grande maioria, as críticas apontavam sua atual contenção como uma de suas qualidades. Você concorda com isto?

Fabiana Cozza – Como neste disco eu escolhi muitas canções românticas e o Paulão [Sete Cordas], no momento de arranjar, quis que a intérprete saltasse, não houve espaço para grandiloquência... Na verdade, fiquei feliz com o que li, porque tem a ver com a densidade da intérprete... “A Fabiana está menos para ser mais”, é isto mesmo, esta era a ideia. Agora, menos também onde tem que ser menos. Na música do Kiko ["São Jorge"] eu não poderia ser menos: [Canta baixo e ralentando] “Guerreio é no lombo do meu cavalo”... Para! Parou, parou, parou! Não é assim. Quando eu fiz menos nesta aí, todo mundo: “Ô, mulher! Olha aí o que você está fazendo! Você está dizendo que está no lombo do cavalo, ali, segurando na crina pra poder seguir! É a sua história, é você aí fazendo este disco”! [Risos]. Acho que consegui entender quando era para ser menos e quando era para ser mais. É uma maturidade natural de qualquer pessoa que está buscando se aprimorar. É claro que, para isto, vim para o Rio de Janeiro trabalhar com o Felipe Abreu, para aprimorar certos recursos que não utilizava com freqüência no meu canto. Porque a prática da roda de samba, de cair logo na festa, exige um canto para fora, o tempo todo. Poucas coisas que eu cantava eram contidas. Não havia pé de ouvido. Roda de samba com 200 pessoas na sua cara, sete músicos, três de percussão, não tem condição. O aprimoramento veio com esta minha escolha de trabalhar com o Felipe e também com os convites que recebi nos últimos anos para cantar com a Banda Mantiqueira, com a Orquestra Jazz Sinfônica de São Paulo, com Sadao Watanabe, no Japão...  Isto tudo foi me mostrando novas possibilidades. 

BD – Você falou que a canção do Kiko era a sua história... Como assim? Ser independente ainda é tão complicado? Li que quase perdeu seu patrimônio este ano, mesmo tendo o projeto de seu novo álbum aprovado pela Lei Rouanet. 

Fabiana Cozza – A situação ainda é muito difícil. Muito mesmo. Mas talvez sempre tenha sido. Porque a gente ouve que há uns 30, 40 anos tinha músico vendendo sua kombi para poder pagar seu disco. Acho que essa ideia: “Mas hoje em dia a internet superajuda a música independente”... Ajuda até certo ponto. Porque a rede por si só não resolve nada para ninguém. A luta é a mesma. Você é que tem que correr atrás dos seus contatos, articular, fazer as parcerias e tudo mais. E isso nunca me cansou. Sempre fui uma pessoa que conduziu a carreira da maneira que quis, com as minhas escolhas, com erros e acertos. E nunca me arrependi. Agora, este ano, tive o álbum aprovado pela Lei Rouanet. Por já ser um pouco conhecida e estar completando 15 anos de carreira, achei que alguém iria topar entrar nessa. [Risos]. Quando percebi que ninguém iria, pensei: “Bom, Fabiana, arregace as mangas, cante de dia, de tarde, de noite e de madrugada e vá fazer seu disco”. Eu não podia esperar. Porque hoje eu tenho um compromisso muito grande com o meu público. E é o público que fideliza o artista, não é mais ninguém. Não é gravadora, empresário, produtor... E eu tenho um público muito grande em São Paulo e Belo Horizonte e que está crescendo no Rio e em Salvador... Graças a Deus. E graças a uma equipe de profissionais com quem posso sempre contar: Os músicos, a minha produtora Nenê, e mais duas ou três pessoas. Sim, alguém poderia dizer: “Ah, você devia ter procurado um selo”. Mas o que um selo ia fazer por mim? Nada! Eu sempre tive uma premissa: Se for para dar um passo muito maior do que já consegui dar como cantora nestes meus 15 anos, a gente senta pra conversar, do contrário, deixa que eu faço sozinha, porque faço melhor. Eu acredito nisto. Porque o que vejo de artista amigo por aí na mesa do botequim: “Pô, eu fechei contrato e aqueles filhos da mãe me sacanearam”... Eu mesma acabei de tirar meu segundo disco da gravadora que estava pseudodistribuindo. É péssimo o artista fazer todo o processo, pagar do próprio bolso e seu disco, depois de um ano, ir para a geladeira porque a gravadora diz que ele não é vendável ou que não há mais interesse comercial. Assim o artista fica preso e sem a sua master. Não quero mais isto para mim, chega. Agora sou eu que produzo as minhas coisas, eu que faço, a master está comigo e se não tiver o meu disco no mercado é porque a Fabiana Cozza é uma filha da mãe. Eu realmente não quero entrar neste embate, nesta guerra externa. Já tenho os meus conflitos internos relacionados ao meu ofício. Esta outra guerra não me pertence e eu não quero saber dela. Então eu mesma produzi este álbum. Graças a Deus, tive condições para isto. E ter o Paulão Sete Cordas assinando a produção artística é um luxo e, ao mesmo tempo, um reconhecimento pela minha trajetória. Eu sinto muito orgulho disto tudo. Paulão já me conhecia e foi categórico no dia em que eu fiz o convite para ele. Eu havia explicado toda a história: “Vou me inscrever na lei, mas não garanto conseguir os recursos, e se eu não captar nada, asseguro que vou honrar meu compromisso com cada músico e com você, mas com o meu dinheiro. Então não posso garantir que o cachê que irei pagar será o que realmente merecem”. Ele foi categórico: “Olha, eu vou fazer este disco, independente de dinheiro, por dois motivos: O primeiro é porque acho você uma grande cantora, o segundo é porque você nunca se promiscuiu musicalmente”. E assim foi. 






comentários - molho, ritmo e balangandãs

  1. Ton Rodrigues :

    DEUS!!!

    Essa mulher é fantástica!!!!!!

    Cada dia mais fã!

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