tropical condimentado

fotos: daryan dornelles
Tendências, traços geracionais, influências, cenas, coletivos e parcerias... Ao longo dos últimos três anos, todas estas questões nortearam as entrevistas do Banda Desenhada. Mesmo havendo uma tendência natural do blog em recortar e classificar a produção musical brasileira, sempre houve espaço para críticas e opiniões discordantes. Afinal, é a partir desta diversidade de vozes e de seus embates que se torna possível o aprofundamento de questões nevrálgicas que, futuramente, não só ajudarão a criar um painel mais multifacetado deste período como também apontarão para novos paradigmas. Assim, é de relevância o que o músico mineiro César Lacerda aponta nesta entrevista, ao criticar não só a própria historiografia da neoMPB como também a fragilidade técnica e certos vícios e tendências desta produção musical.
Nascido em Diamantina, César Lacerda iniciou sua carreira ainda na adolescência, ao integrar em Belo Horizonte o grupo (cLAP!), com quem lançou o EP “13’31”” e o álbum “um3” (2006). Em 2007, mudou-se para o Rio, inicialmente trabalhando como instrumentista em grupos de samba, jazz e choro. Em 2009, gravou “Ouça de Fone”, disco realizado em parceira com a cantora e compositora mineira Luiza Brina. Lançado no ano seguinte pelo site Musicoteca com o título “Vem aí, Coletivo Abigail”, foi mais tarde relançado, após nova produção e mixagem, pelo Jardim da MPB. Em 2010, ao lado de Luiza e de Luiz Gabriel Lopes (Graveola e o Lixo Polifônico), César idealizou o projeto “Por Um Passado Musicável: Notícias Numa Fita”, onde, por meio do Skype, o trio criava novas composições para, em seguida, apresentá-las em shows. Em 2013, dois anos após disponibilizar para download seu EP homônimo, César lançou seu primeiro disco, o elogiado “Porquê da Voz”, contando com diversas participações especiais, entre elas: Lenine, Marcos Suzano, Carlos Posada e Juliana Perdigão.
Após assistir a sua apresentação na temporada Gancho, no Espaço Multifoco (Lapa), em novembro do ano passado, convidamos César Lacerda para esta entrevista, que se realizou em um bar tradicional do bairro de Santa Tereza (RJ). Lá, conversamos a respeito de sua carreira, influências, geração e a cena independente brasileira.

BD – “Porquê da Voz” destoa bastante do que vem sendo produzido na cena independente. Imagino que os jornalistas tenham sentido alguma dificuldade em linká-lo a algum núcleo de artistas ou a alguma tendência musical...

César Lacerda  Sim, eu queria isso. Mas esse estranhamento, ao mesmo tempo em que me causa uma felicidade, é motivo de certo sofrimento. Confesso que tive um pouco de medo... Porque não é absolutamente prazeroso você imaginar que o seu trabalho não será compreendido. Apesar de tudo isso, o disco foi bem recebido. Na época do lançamento do “Porquê da Voz”, a [assessora de imprensa e produtora] Julianna Sá fez uma observação: “A nossa geração é repleta de artistas que tratam da tristeza em seus trabalhos. E o disco do César fala de alegrias”. Pense bem: [Rodrigo] Amarante, Lucas Santtana, Cícero, Castello-Branco, Lucas Vasconcellos, Tono... o disco do Tono é surpreendente, lindo mesmo! Mas aborda uma tristeza. Uma tristeza, eu diria, geracional. Mas o meu disco, por uma opção estética, é alegre! Por mais que haja momentos tristes, o “Porquê da Voz” tem uma execução efusiva. A captação, o jeito de pensar os arranjos, os assuntos... O meu disco realmente não é parecido com o de ninguém. Em uma época de tristezas, a alegria é uma potência, sabe?

BD  Após ouvir seu disco e assistir a uma de suas apresentações, ficou difícil não associá-lo a Caetano Veloso. Ele é uma grande referência para você?

César Lacerda – Pois é, velho. Eu conheço o Caetano. Sempre que posso, escrevo para ele. Eu o considero um mestre. Ele é uma referência em todos os sentidos. Tenho a discografia inteira, já li todos os seus livros e vi o seu filme [“O Cinema Falado”, 1986]. Qualquer coisa que ele diga, eu vou atrás, eu quero saber. Caetano é uma referência mesmo. De vida. Agora, que engraçado, musicalmente, eu não percebo com esta facilidade o que você diz...

BD  Inclusive na performance? Você é bastante provocativo e sexualizado...

César Lacerda  Para falar a verdade, eu acho a minha performace muito pouco caetânica. Digo isso a respeito de como comporta o meu corpo no palco e também como uso a minha voz. Mas, agora, é verdade que tenho, por interesse artístico, uma necessidade de visitar o limite da sexualidade. Isso é uma coisa que eu adoro fazer no palco. Gosto mesmo. O que quero dizer com isso é que o meu corpo artístico não se presta a nenhum significado normativo. Ele não pode ser heteronormativo ou homonormativo, nada disso. Do ponto de vista da performance, ele tem que estar apto a visitar todos os lugares. E, sim, isso é uma coisa que o Caetano sempre fez. E, sim, as pessoas muitas vezes querem identificar esse devaneio, torná-lo como um traço de gênero: “Se faz assim com o corpo é porque é gay”, ou “se faz assim é hétero”. Para mim, isso nunca foi uma questão. Até entendo que alguns artistas queiram se preservar no palco, com receio de que a sua sexualidade acabe ganhando mais destaque do que o seu trabalho ou coisa que o valha. Mas, no meu caso, o que busco é encontrar novas possibilidades para o meu corpo, que ele possa se dirigir a vários lugares. Sei que é um pouco louco. A mãe do meu tecladista [Guilherme Marques], quando saiu de uma das minhas apresentações, falou com ele: “Ah, achei tudo lindo, mas não sabia da orientação sexual do César”. Ou seja, todo mundo que vai ao meu show acha que sou gay! [Risos]. Nunca tive problemas com isso. Se amanhã eu terminar com a Victoria [namorada do César] e me apaixonar por um cara, eu vou ficar com este cara. Porque, velho, qual o sentido disso? Desse lugar? Porra! 2013! E esta minha postura, por mais que não pareça, tem tudo a ver com música! Entrega, saca? Aliás, os momentos em que eu me torno profundamente feminino no palco, são os momentos em que mais provoco o público. Por exemplo, em “Namorin’”, eu faço questão de ser o mais feminino possível. Os caras que são muito heteronormativos se sentem péssimos, nem olham direito para o palco, enquanto os gays se jogam, mergulhando naquela história, e as mulheres ficam surpresas. São momentos muito potentes, de transposição do desejo. Quem está na plateia e se permite entrar no jogo, pensa: “Ok, durante esses três minutos eu também sou esse cara aí”.  [Risos].

BD – Além dessa questão da sexualidade, existem outras semelhanças entre o seu trabalho e o do Caetano, não? 

César Lacerda  Não sei...  não acredito que o meu canto seja parecido com o dele. Tenho, por opção, uma permissividade ao cantar e ao improvisar que o Caetano não tem. Mas talvez no caso da composição e da letra existam algumas confluências. Para mim, é muito importante que a canção fique “em pé”, sabe? Algo relativo à conexão entre música e letra. À sua correspondência. Que você possa ouvir e pensar: “Bom, eu entendi o assunto. Isso aqui está neste lugar por causa disso e disso”. Nada é por acaso nas músicas de Caetano. E eu penso da mesma forma. Quando vejo compositores da minha geração fazendo músicas assim: “A gaiola do passarinho rosa onde o ET tomava cerveja de mercúrio e...”. Bicho, eu tenho preguiça dessa falta de compromisso! Porque isso não se sustenta. O que é muito diferente de artistas que exacerbam essa ideia, como é o caso do Negro Leo. Ele força o limite da canção. É como se quisesse desmoroná-la após ter conseguido erguê-la e deixá-la sólida.

BD – Falando em Negro Leo, em sua entrevista ao Banda Desenhada ele questiona alguns jornalistas que o comparam a Jards Macalé e Itamar Assumpção, por ver ali algum traço de preconceito racial. No seu caso, além de Caetano, também é possível associá-lo a Gil, o que o colocaria nessa posição de desconforto. Isso o incomoda?

César Lacerda – Não, de forma nenhuma. É natural que você ouça o Negro Leo e imagine essa correspondência estética e política. Mesmo que o conceito de maldito tenha mudado completamente nos dias de hoje, o Leo, assim como o Jards, tem um pouco dessa aura que, muito provavelmente, nunca irá perder. Porque todos nós temos nossas referências afetivas. E o Gil é uma das minhas. Eu creio que a cor da pele, mais do que uma questão separatista, é um lugar de filiação. Então, quando Gil faz determinadas coisas que sei que a minha voz, meu corpo, minha vida também podem fazer, eu me filio àquilo automaticamente. Vamos juntos! [Risos]. Vamos dar as mãos! Quero aprender a fazer isso! Pra mim é assim que funciona.

BD – Além de Gil e Caetano, quem que mais lhe influencia?

César Lacerda  As minhas influências são um negócio muito vasto. Na época em que lancei o disco, o [jornalista] Pedro Só, que fez meu release, me perguntou: “O que é referência para você?". A resposta foi bastante longa... porque, velho, minha mãe é pianista erudita, então, lá em casa, eu a ouvia tocar Debussy, Chopin... Ao mesmo tempo, como éramos de uma cidade do interior de Minas, havia muitas serestas nas ruas. Já o meu pai ouvia muita moda de viola, samba, Clara Nunes... além de músicas românticas, dessas bem bregas. Essas foram as minhas primeiras referências. Houve depois um segundo momento, quando compramos o primeiro aparelho de CD lá de casa. Eu me lembro de quatro discos que eu adorava: O  “Mamonas Assassinas” [1995], O “Spice” [1996], das Spice Girls, que eu achava foda e continuo achando foda até hoje; “Samba Poconé” [1996], do Skank; e o primeiro disco do Grupo Gera [Gera Samba, 1990]. Já na adolescência, muito absurdamente distante desses dois primeiros universos, fui ouvir rock progressivo: Genesis, Yes, Gentle Giant, Jethro Tull, Rush... A MPB do final dos anos 60 chegou bem mais tarde na minha vida. Bem, falei tudo isso para que você perceba que eu não tenho apenas um único vínculo de referência. Posso dizer, firmemente, que Caetano é essencial na minha vida, assim como Milton Nascimento, mas não poderia dizer que Spice Girls, Radiohead e Toro Y Moi também não o são. Existem canções em meu disco, como “Herói”, por exemplo, que as pessoas ouvem e falam: “Isso é Milton Nascimento”. Acho engraçado. Porque quando vou compor, não olho para o meu violão e penso que farei algo parecido com fulano ou sicrano. Talvez, o meu canto, o uso do falsete, lembre Milton. Enfim, acho uma tremenda bobagem quando leio uma crítica do tipo: “o novo Caetano”. É tão pouco significativo dizer que tal artista é parecido com isso ou aquilo... Na verdade, acho importantíssimo que todo artista de hoje tenha um posicionamento político contrário a esse espelhamento, sabe? Porque, cara, é foda! Como se evolui dessa forma?! Por exemplo, o Tono lançou seu terceiro disco, e alguns críticos, principalmente da grande mídia, ainda continuam os comparando a artistas de gerações anteriores, como se quisessem protelar o amadurecimento da banda. Isso não é nada producente. É necessário que a gente construa o nosso próprio imaginário, que a gente aposte na nossa época como um troço único. Não proponho que se perca um vínculo histórico. Mas que a gente possa entrar para a história com um corpo significativo de obras que singularizam esse período. E deixar o papo de “novo Milton”, “novo Chico”, “nova Gal” pra esse jornalismo burocrático e torpe.

BD – Em “Favos de Solidão”, há citações a João Gilberto e Tom Jobim. É interessante você tocar nesses dois nomes tão ligados à bossa nova e pertencer a uma geração que, grosso modo, não utiliza esse gênero como referência...

César Lacerda – Que louco você falar disso hoje! Estou lendo o livro do Chico Amaral sobre a música de Milton Nascimento [A Música de Milton Nascimento, Editora Gomes]. Nele, há o depoimento de um violonista, o Chiquito Braga. Ele é um desses músicos da escola mineira, do Toninho Horta e de outros tantos que dialogam mais fortemente com o jazz. E, ao contrário de boa parte dos artistas, Chiquito Braga diz que quando ouviu “Chega de Saudade”, absolutamente nada na sua vida mudou, porque já conhecia aquelas harmonias. Então, é possível não ser influenciado pela bossa nova. É possível e necessário que o Brasil possa traçar outra cartografia. Mas João Gilberto, Tom Jobim e Vinicius de Moraes foram um acontecimento na minha vida. Eu tinha uns 11, 12 anos, quando me mudei pra BH, e, em vários domingos, na hora do almoço, meu irmão colocava o “Chega de Saudade” na vitrola.

BD  [Surpreso] Vocês tinham o vinil de “Chega de saudade”?!

Cesar Lacerda – Sim, tínhamos. E era lindo, cara. Adorava aquilo. João Gilberto sempre foi uma referência para mim. A questão do canto, de redefinição da canção... E Tom Jobim também. A forma como ele imaginou a sua música, o nosso país, o projeto Brasil... tudo isso é... Porque a gente sempre fala de referência como algo do tipo: “Ah, eu ouvi muito aquele disco”. Mas, no meu caso, isso é tão ou menos importante do que assistir a uma entrevista desses artistas, ouvir os seus comentários a respeito de seu ofício... Às vezes, gozo mais vendo uma entrevista do que ouvindo um disco. É doido isso, né? [Risos]. Mas, retornando à bossa nova, quando ouvi pela primeira vez o Caetano cantar “A Bossa Nova é Foda”, pensei: “Como pode esse cara, depois de ter feito mais de 40 discos, ainda guardar uma ‘A Bossa Nova é Foda’ na manga?!”. Ali, Caetano mostrou que, mais do que revolucionar a nossa música, a bossa foi responsável por um novo imaginário brasileiro. Ela retirou o país de uma posição de subjugado entristecido e o entregou à felicidade e à leveza. E é isso o que eu quero para o meu trabalho. Há um texto no encarte do “Porquê da Voz” que toca nessa questão, ao dizer que o objetivo do disco é que ele seja a expressão da minha história com a canção popular. Ele quer ser um elogio à canção popular. E, de certa maneira, quando vejo as pessoas cantando as minhas músicas, sinto um imenso prazer por ter conseguido chegar nesse lugar. Que a minha canção possa trazer essa satisfação às pessoas.

BD  Apesar de extremamente sofisticada, a bossa nova era, em certa medida, bastante pop. Esse também é o seu objetivo?

César Lacerda  Eu não escondo que há na minha produção um desejo artístico de expandir os limites do que é considerado pop. De certo modo, o meu disco se posiciona contrário a discos como os do [Marcelo] Jeneci. Não tenho vergonha nem medo de dizer isso. Não se trata de falar que o trabalho dele é bom ou ruim. Mas uma compreensão de que o Jeneci, por exemplo, faz canções com o desejo de que elas sejam simples e capazes de uma comunicação direta com o ouvinte. E o meu trabalho não quer ser apenas isso. Não pretendo compor uma música absolutamente óbvia. Quero que as minhas canções tenham um desejo de se comunicar, que haja uma fruição, mas quero sempre testar os seus limites. O Brasil é um país que não tem uma tradição na literatura como nos países da Europa, em que as pessoas leem e tem um quadro de referência de escritores de sua vida. No Brasil, o que temos são os compositores. E isso gerou um tipo de canção muito elevada. Outro dia, estava ouvindo um arranjo muito ruim de “Inútil Paisagem”, feito por uma francesa. Era um negócio péssimo! Mas aí fiquei pensando: “Tom Jobim era um cara muito doido, porque ele fazia uma música extremamente rebuscada, de poesia elevadíssima, mas que, ao mesmo tempo, era pop o suficiente para encantar uma francesa maluca que não entende nada de harmonia!” [Risos]. Talvez isso nunca mais aconteça na história: um artista que consiga produzir em vinte, trinta anos, um conjunto de canções que não só represente uma época, mas que seja de extrema qualidade e que possa ser tocada em todo o mundo. Além disso, todos os discos do Tom são extremamente bem gravados. É desse ideal praticamente inalcançável que estou falando, entende?

BD – O que remete a um contraponto: Itamar Assumpção, que, apesar da sua genialidade, sempre teve grandes problemas para gravar seus discos e popularizar a sua obra...

César Lacerda  Itamar é um Deus! Ponto. Mas ele foi extremamente prejudicado pela indústria fonográfica brasileira. Não há um disco dele que preste, se analisarmos pelo ponto de vista técnico. São todos muito mal gravados. Os próprios membros da banda Isca de Polícia falam isso. Mesmo assim, podemos compreender esta questão como um dado estético. Mas creio que não. Acredito sinceramente que uma engenharia de áudio de qualidade pode revelar muito das proposições estéticas. Mas vivemos uma época em que os aparelhos de reprodução de música, em geral, são muito ruins: caixinhas de computador, celulares, fones... De certo modo, quando se problematiza a fonografia, é necessário também que se problematize a indústria que produz esses aparelhos plásticos de péssima qualidade e que tornam a fruição um engodo.
 
BD – Essa questão técnica remete bastante à produção atual, não?

César Lacerda – Sim. Há um dado estético nisso. A produção lo-fi. Mas, cara, ouça o “Cavalo” do Amarante. Aquilo, numa escuta desatenta pode parecer lo-fi. Mas eu acredito que seja o inverso. Aquele disco é extremamente bem gravado. A concepção por trás daquele trabalho é de uma dimensão... Historicamente, o Brasil tem uma indústria que privilegiou muito pouco a qualidade dos discos gravados aqui. Discos que a gente ama, pela imensa qualidade literomusical, e até mesmo pela afetividade que destinamos a eles, foram muito mal gravados. A profissão engenheiro de áudio não teve muita vez por aqui. [Risos]. Quando fui gravar meu disco, chamei o Elisio Freitas para produzir e o Bruno Giorgi para fazer a assistência. Os dois são muito estudiosos e detalhistas em relação às questões técnicas. Para você ter uma ideia, quando fomos gravar o quarteto de cordas da canção “Porquê da Voz”, o Bruno espalhou  uns 10 microfones pelo teatro! Então, nesse sentido, eu me posiciono contrário a certas produções da minha geração que optam pela precariedade. Nunca serei um artista que privilegia essas arestas. Tenho outras intenções, entende? E aceito os riscos. Várias pessoas já vieram me falar que “Porquê da Voz” é um disco feito por um cabeçudo que estudou música...

BD – [Interrompendo] Sim... [Pausa seguida de gargalhadas de ambos].

César Lacerda – Sim, é! [Mais gargalhadas]. Eu estudei mesmo, e daí? [Risos]. Mas o principal é que do ponto de vista artístico, pelo menos agora, eu não queria lançar um disco extremamente mal gravado. Até porque eu já fiz isso com o “Ouça de Fone”. Ele é muito mal gravado! E foi uma decisão estética nossa. Havia uma obra ao lado da casa da Luiza. Era impossível aquela barulheira não entrar no disco. Aí decidimos gravá-la! Por diversas vezes captamos os ruídos na construção e a transformamos em instrumentos. Havia ali um desejo por essa estética. Mas, nesse sentido, prefiro que os meus trabalhos tenham qualidade, sabe? É o que eu almejo.

BD – Falando em parcerias, apesar de estar inserido na cena mineira, você vem dialogando bastante com artistas do Rio... 

César Lacerda – Para dizer a verdade, eu não tenho o menor interesse de filiação artística à cena alguma. Eu adoraria ser da cena brasileira e adoraria que o Brasil se tornasse um país menos bairrista. Tem coisas de São Paulo que eu acho do caralho, tem coisas de Minas que eu acho do caralho, tem coisas no Rio que eu acho do caralho e por aí vai... Todas essas coisas vão se misturando com aquilo que eu sou. Meu disco foi gravado no Rio e em Minas, tem participações do Lenine, que é pernambucano, e do Carlos Posada, que é pernambucano-sueco. Na minha banda, o Elisio e o Gui [Guilherme Marques] são do Rio, o Marcelo Conti é pernambucano e o Cláudio Lima é baiano. O quarteto de cortas é formado por músicos de vários países da Europa. Tem também a participação do meu irmão, Sérgio Rodrigo, da Juliana Perdigão e do Alexandre Andrés que são mineiros, e do Marcos Suzano, que é carioca. Ou seja, tem músicos do mundo inteiro ali. E eu ainda quero me conectar com mais pessoas! Gosto disso. Quero que o meu segundo disco tenha mais gente! 70 músicos participando! [Risos]. Porque isso dá vigor ao trabalho! Traz novas informações. É importante que haja esses diálogos, essas misturas. É bom, inclusive politicamente, que o artista se distancie ou mesmo negue suas filiações: “Sou mineiro, sou paulistano, sou...”. No meu caso, a duplicidade de estados gerou uma nova assinatura para o meu trabalho. Ele não é mineiro e nem carioca. Eu realmente acredito que o “Porquê da voz” não se encaixa, nem se assemelha com o que vem sendo produzido na cena paulista, nem na carioca, nem na mineira. Você não pode dizer que o meu disco é parecido com o do Romulo Fróes, do Jeneci ou da Tulipa [Ruiz]. Nem com o do Tono ou do Letuce. E muito menos com o do Graveola, Kristoff [Silva], Pablo [Castro] e Makely [Ka]. O meu interesse não está nessa filiação, de “pertenço à cena mineira”. Apesar de ter uma admiração gigantesca pelos artistas de lá. Assim como tenho uma admiração gigantesca pela cena carioca, assim como tenho uma admiração gigantesca pela cena paulistana, assim como tenho uma admiração gigantesca pela cena paraense, assim como tenho uma admiração gigantesca pela cena pernambucana... [Risos]. Bicho, vão ter que me engolir! [Risos]. Eu não sou da cena mineira! Não sou mesmo e, pra ser bem sincero e polemizar o debate, acho que não existe esse negócio de cena.

BD – A sensação que passa é que muitos artistas e até mesmo jornalistas têm dificuldades em chegar a um acordo do que se trata uma cena. Muitos acreditam que pertencer a uma cena implique em alguma semelhança estética com os artistas da sua cidade ou região. Talvez aí resida o grande problema. Se pensarmos em cena como um local onde artistas circulam e, em maior ou menor grau, interagem, talvez houvesse menos discordâncias ao se falar sobre isso...

César Lacerda – Uma cena é quase uma fotografia... Como aquela que saiu semana passada n’O Globo. Se você for reparar, quase não há cariocas! Iara [Rennó] é paulista, Negro Leo é de uma cidade do interior do Maranhão [Pinderé-Mirim], Rabujah e [Gustavo] Macacko são do Espírito Santo, eu e Michele Leal somos mineiros, o Emerson [Leal] é baiano, enfim... O Rio sempre teve esse trânsito. Além disso, nós não temos a obrigação de compartilhar dos mesmos preceitos estéticos. O meu trabalho, por exemplo, não tem nada a ver com o do Negro Leo, mas ele gosta do meu disco e eu gosto dos discos dele. Isso pode ocorrer em uma cena. Mas prefiro pensar em geração ou traço geracional. Por exemplo, nós [César e Márcio Bulk] temos uma diferença de pouco mais de dez anos, entretanto, nós dois usamos alargadores, temos barba e óculos. Ou seja, isso é um traço geracional. Quando eu faço música, é um traço geracional as escolhas que ali transitam. Os acordes, os arranjos, o jeito de gravar, o assunto da letra. Não podem me classificar como pertencendo à cena mineira só porque a minha música não é feita de acorde de pestana, como a do Negro Leo, que é da cena carioca. Quando faço um determinado acorde, não é porque eu o ouvi em alguma música Milton Nascimento, é porque eu o acho bonito, porque gostei dele. Porque naquele acorde, na escolha daquele tema e daquele jeito de tocar existe uma vida que compartilho com muita gente. A discussão é muito mais complexa do que ser de Minas, São Paulo ou Rio, entende? Trata-se de um jogo elaborado que implica em um sigiloso significado das coisas e em como o compartilhamos.

BD – Interessante você falar que a cena carioca é composta de artistas vindos de diversas partes do país, porque, segundo alguns jornalistas, a cena paulistana deve muito à mudança de alguns músicos pernambucanos e cearenses para São Paulo...

César Lacerda – Isso é uma configuração das capitais, entende? Essa história de cena paulistana é uma invenção do [jornalista e produtor] Marcus Preto. As capitais absorvem esse trânsito de pessoas de diversos lugares do país. É como que habitar o imaginário nacional. Dizer que há um traço de música nordestina na música feita em São Paulo é redutor. Tanto para a música nordestina quanto para a música paulistana. Os nordestinos que vivem hoje em São Paulo são mais que nordestinos. Eles são estrangeiros no seu próprio país, pois também acabam se tornando estrangeiros quando retornam às suas cidades. E a música de um viajante carrega em si o devir do movimento e do não pertencimento. Talvez, toda música hoje carregue um gosto desse devir, dessa busca. O [jornalista, Leonardo] Lichote, por exemplo, com aquela matéria “Novo Rio”, também inventou uma história. Assim como a cena paulista é uma invenção, a cena carioca que vem se configurando, também é uma invenção. E isso também vale para a cena mineira. As capitais não existem. Elas são habitadas por pessoas de origens diversas que possuem anseios igualmente diversos. Dizer que a cena paulistana é assim assado, que tem influência de nordestinos, não passa de um blábláblá, bicho. Agora... Naturalmente, esse blábláblá pode ser apaixonante. [Risos].

BD – Mesmo que discordemos quanto à questão das cenas regionais, é clara a existência de uma cena independente brasileira que, em seu primeiro momento, foi vista de uma forma bastante romântica. Algumas pessoas chegaram a acreditar que ela seria uma grande opositora ao establishment. No entanto, a partir da sua ascensão, alguns artistas independentes passaram a dialogar com grandes nomes do mainstream e com as grandes corporações. O que você acha dessa questão?

César Lacerda – Eu não tenho nenhum problema com isso, porque, artisticamente, eu não cedo em nada. Então, não vejo diferença em me apresentar em uma garagem, na Globo ou no Carnegie Hall. Vai ser a mesma coisa, saca? Então, quando alguns colegas de geração dizem que odeiam a Globo, eu tendo a achar essa posição um pouco pueril. Porque a questão de odiar a Globo é muito mais complexa do que simplesmente dizer que ela é uma merda. Se me convidarem para me apresentar no Faustão, irei sem problemas e, tenho certeza, que vou achar do caralho! [Risos]. Imagine tocar “Porquê da Voz” ou  “Simone de Santarém” naquele lugar! A dimensão política que há numa apresentação dessas é, para mim, muito sedutora!

BD – Falando assim, parece que mesmo com a atual proximidade e o clima de cordialidade que há entre músicos e jornalistas, ainda há diversos pontos de conflito...

César Lacerda  A gente precisa parar com esse medo de fazer críticas! Ser politicamente correto em tempo integral pode tornar-se uma castração! Há um crescimento muito grande no cenário artístico quando as pessoas se permitem entrar em conflito, seja com colegas de trabalho, jornalistas ou críticos. Não estou defendendo aquela crítica escrota que pretende afugentar o artista para um lugar burlesco. Digo da possibilidade revolucionária de um diálogo mais rico entre artistas e crítica. E também, entre artistas e artistas. Mas é importante pensar também que o papel da crítica musical mudou muito nos últimos tempos. Hoje em dia, a análise do crítico é muito mais sociocultural do que musical: a cena, os elos com o cenário político, a reverberação de uma música ou gênero na sociedade... Não há um aprofundamento. É como se para falar de música, fosse necessário falar sobre os enleios da sociedade. Como se música fosse um dado social, especificamente. Eu, confesso, sou daqueles que acreditam que arte não serve para nada. Afinal de contas, se a arte se torna um serviço, ela perde a sua aura, a sua anima. Essa noção de arte funcionalizada é coisa de política cultural. Eu ainda creio na arte como algo que só acontece fora desse âmbito escroto. Para mim, ela será sempre um devaneio inexplicável, limítrofe, pérfido e maravilhoso.

2 Responses to tropical condimentado

  1. César, lúcido e necessário. Interessante que até das discordâncias eu concordo.

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