uma festa imodesta


fotos: daryan dornelles

Tudo o que é inovador sempre se opõe às normas dominantes da cultura”. A frase, retirada da obra “L'esprit du temps” (1962), do filósofo e sociólogo francês Edgar Morin, parece se encaixar perfeitamente à crise por que vem passando a indústria do entretenimento e, mais especificamente, o mercado fonográfico brasileiro. Burocratizadas e pouco capazes de lidar com a revolução tecnológica que mudou por completo produção, divulgação e consumo de música, gravadoras e mídias tradicionais viram surgir na década passada uma inédita leva de músicos independentes originária das mais diversas regiões do país. Em parcerias com designers, videomakers, blogueiros e podcasters, estes jovens artistas apropriaram-se das novas tecnologias e, aos poucos, ergueram um novo e distinto mercado para a fruição musical. Entretanto, mesmo sendo inegável a sua importância na consolidação de um cenário cultural democrático e diversificado, a interatividade massiva na web 2.0 também expôs seu lado caótico ao provocar em seus usuários uma sensação de insegurança e imprevisibilidade, principalmente ao lidar com a geração de receita: seja para quem cria música ou quem se ocupa de difundi-la.
Criado em 2004 para ser um programa de rádio, o Caipirinha Apretiation Society tornou-se, graças aos esforços do casal MdC Suingue e Kika Serra, um dos mais populares podcasts do planeta, detacando-se por sua curadoria diversificada e por promover boa parte dos novos nomes da música independente brasileira. O programa é atualmente produzido para a inglesa SOA Radio, da University of London, sendo em seguida difundido para o restante do mundo como podcast. Conhecidos por sua iniciativa e por não se furtarem a emitir opiniões - por vezes bastante enfáticas -, Kika e MdC Suingue são os convidados desta semana no Banda Desenhada. Em sua entrevista, que começou com um bate-papo em uma mesa de bar e se prorrogou por mais algum tempo com troca de e-mails, a dupla falou a respeito de seus projetos, mercado fonográfico, neoMPB e outros tantos assuntos.

BD – Vamos pelo começo? Como surgiu o Caipirinha Appreciation Society? A ideia inicial foi do MdC Suingue, certo?

MdC Suingue – O CAS  tem uma longa história, um longo caminho desde a concepção até chegar ao programa de rádio que é hoje. O embrião surgiu de um certo banzo, aquele processo de revisão da importância que tem as suas raízes, que acontece com qualquer imigrante. Fui casado muitos anos com uma inglesa e, enfim, nos instalamos em Londres em 1997. Vivemos intensamente a cena musical londrina da época, especialmente as raves, os festivais e as festas "crusty", daquela turma meio anarquista, os loirinhos de dreadlock que a gente vê muito em Londres, que fundem a cultura hippie com a cultura punk e a cultura eletrônica, muito atuantes nos protestos anti-globalização dos anos 90. Mas continuávamos a adorar música brasileira. Recebia muitos CDs, que os amigos nos mandavam pelo correio para nos manter alimentados do melhor que estava rolando no Brasil. Só não tínhamos absolutamente nenhum contato com brasileiros em Londres, com exceção justamente de... Kika Serra!

Kika Serra – Eu morava na Inglaterra havia mais tempo, desde 1993. Também fugia da comunidade brasileira como o diabo da cruz! Também fui casada com um inglês, baterista de uma banda com três discos lançados, o mundialmente desconhecido New Fast Automatic Daffodils... Fiz faculdade, me formei em jornalismo lá. Foi justamente quando meu irmão veio do Rio para comparecer à minha formatura, que me apresentou a um casal de amigos dele: MdC Suingue e sua ex-mulher, a Emily. Fomos com a cara um do outro imediatamente! Tínhamos mil amigos em comum no Rio, éramos os dois superligados em música, ficamos superparceiros. Internet era uma coisa muito tosca na época, e o MdC Suingue já se arvorava a mexer com aqueles Geocities inóspitos, já era uma máquina de inventar moda... Mas deixa ele terminar aí a arqueologia do CAS!

MdC Suingue – Bom, nesse mesmo período, o meu ex-sogro Peter Fryer, jornalista e acadêmico conceituado por seus livros sobre o negro na sociedade britânica, estava escrevendo um livro sobre as origens da música brasileira, “Rhythms of Resistance”. Eu o ajudei a traduzir textos em português antigo, que ele tinha desencavado na Biblioteca Nacional, do Rio. Conversamos muito sobre como me frustrava a total falta de conhecimento dos ingleses acerca da riqueza e da diversidade da cultura brasileira. Ele era fascinado pela história de nossa música e tinha um bom acervo de música sacra, gravações raras e coisas dos primórdios da indústria fonográfica brasileira. 

Kika Serra – O preâmbulo é longo, mas tudo vai fazer sentido daqui a pouco, a gente promete! [Risos].

MdC Suingue – Em 2001, vim para o Brasil trabalhar em um filme. Minha outra identidade secreta é a de diretor de platô, o cara que cuida da produção nos sets de filmagem de cinema. Acabei me separando de minha esposa no processo. Encontrei com a Kika no Rio, fiquei meio perdido pela cidade, sem saber o que fazer de minha vida... Queria voltar para Londres, mas não sabia exatamente o que faria por lá. Tinha que me reinventar e acabei pensando em abrir um negócio de exportação de CDs de música brasileira. 

Kika Serra – Você chegou a pensar em importar cachaças de alambique pra Inglaterra, lembra?

MdC Suingue – Putz, era complicadíssimo, as taxas de importação superaltas, afinal são calculadas em cima do valor alcoólico da bebida! Então fiquei com a ideia dos CDs. Coloquei embaixo do braço umas amostras do que estava sendo lançado aqui e lá fui eu de volta para Londres. Lá chegando, rapidamente me dei conta de que, para se vender algo, tem que haver demanda. Se não há demanda, pensei, cria-se uma! E daí veio a ideia de promover a música brasileira escrevendo sobre ela. Descobri que estava sendo lançada uma revista brasileira bilíngue, chamada Jungle Drums, tocada por uma galera muito especial na época, gente antenada, afim de mostrar que o Brasil era muito mais do que futebol, bundas, bossa nova e Caê [Caetano Veloso]. Fiz contato com o núcleo editor da revista na época e comecei a colaborar sob a alcunha de MdC Suingue. 

Kika Serra – Tinha também um blog, uma revista online, como se chamava? Mulatas de Jesus Cristo! Eu comecei a receber e-mail desse tal MdC Suingue com textos em inglês sobre coisas brasileiras.  Eu não conhecia ainda esse novo codinome dele, já que como civil ele responde por outro! Só fui adivinhar quem era pelas histórias, por aquele humor que lhe é peculiar...  Aliás, outro parênteses aqui: nesse ínterim, eu é que acabei voltando de vez para o Rio. Comecei a fazer tanto “frila” para a TV aqui, que achei que a vida profissional me chamava de volta. Por isso não participei dessa fase pré-histórica do CAS, acompanhei de longe e só fui embarcar um ano depois. Mas estou botando o carro na frente dos bois, continua aí, que o povo clama pela verdade!

MdC Suingue – Bom, de volta a Londres, o meu ex-sogro finalmente tinha terminado o livro e me chamou para inventar algo para promover o lançamento. Criamos uma espécie de palestra musical participativa, onde o Peter lia partes do livro, eu tocava as músicas, e um percussionista tanzaniano chamado Freddy Macha, que tinha morado no Brasil, convidava os presentes a tocar os instrumentos mencionados por Peter. Um happening que agradou bastante e virou o embrião das festas que vieram a seguir. Assim surgiu a festa “The Real School of Samba”, uma produção do “Caipirinha Appreciation Society”! As caipirinhas faziam parte da proposta, a ideia era mostrar...

Kika Serra – MdC Suingue é um exímio fazedor de caipirinhas, não é da boca pra fora!

MdC Suingue – A ideia era mostrar autenticidade, tanto da música quanto da caipirinha. Ah, sim, porque naquela época tinha muito bar em Londres vendendo caipirinha feita de Tang! Na primeira, eu tentei dar som e fazer caipirinhas ao mesmo tempo. Não recomendo. Nas outras, eu chamei um amigo, o Marcelo Wig, hoje baterista do Pedro Luís, para dar um reforço na discotecagem, e Freddy Macha, o tanzaniano, para ajudar os gringos a relaxar, com sua oficina de percussão no início dos eventos. Com essa formação, fizemos uma série de festas que tiveram residência em três casas. 

BD – Revista, festas... Quando surge finalmente o programa de rádio? [Risos].

MdC Suingue – Estamos chegando lá! [Risos]. Em meados de 2004, um grupo estava montando uma rádio nova, a LifeFM, no nordeste de Londres, uma região que já contava com uma respeitável população de brasileiros. Estavam em busca de alguém que gerasse conteúdo refletindo isso. Procuraram o meu parceiro nas festas, o Wig, mas ele estava muito ocupado. Então quem fez o curso de capacitação, e assumiu a produção do programa, fui eu. Peguei o nome da festa emprestado, et voilà! O Caipirinha Appreciation Society estava no ar.

Kika Serra – No final de 2004 eles fizeram a primeira edição experimental, tipo um piloto. O programa só passou a ser periódico mesmo no meio de 2005. Mais uma vez, os e-mails estranhos começaram a chegar! Demorou até eu entender que, apesar de rolar na rádio em Londres, dava pra ouvir na internet, participar de chat ao vivo... Tudo isso era relativamente novo, ainda mais no Brasil! Conta aí.

MdC Suingue – O Wig apresentou comigo alguns programas, mas decidiu que não dava para se comprometer com o projeto. E as festas continuavam rolando. Esse primeiro formato do Caipirinha Appreciation Society como programa tinha características bem diferentes, pois era ao vivo, na lata! Falou besteira? Já era, foi ao ar e pronto! E como eu falava besteira... 

Kika Serra – Eu morria de rir com ele esquecendo o nome das músicas, voltando depois pra dizer: “Lembra daquela faixa que toquei meia hora atrás? Ela se chama Tal e Tal...” [Risos].

MdC Suingue – Era muito divertido! E comecei a me adaptar não apenas ao assoviar e chupar cana que é selecionar o som, operar a mesa e apresentar o programa ao mesmo tempo, como comecei a arrumar sarna para me coçar fazendo chat com ouvintes pela internet. Não no Skype, não no MSN, não no Google Talk, que nem existia, mas numa plataforma chamada Multiply, você acredita? 

BD – Era lá que você hospedava o podcast?

MdC Suingue – Não, era lá que eu botava textos aleatórios, fotos das festas, e fazia o chat ao vivo durante a apresentação do programa na rádio. A tecnologia do podcast estava sendo inventada justamente naquele ano! Aliás, foi no Multiply que um ouvinte, menor de idade até, perguntou para mim: “Por que você não publica isso em podcast?”. “Podcast? Que porra é essa?”. No dia seguinte, o cara me escreve dando a senha de uma conta no Podomatic com o recado: “Se vira”! A partir dali, passei a colocar no podcast a gravação dos programas que tinham sido transmitidos ao vivo. Foi um aprendizado muito legal, especialmente depois que saí da LifeFM e me mudei para uma rádio de Hackney, minha vizinhança. A Life FM era um projeto educacional, cheio de regras rígidas. A Sound Radio era outra coisa, liberdade total! O gerente da rádio era um polonês muito relax e ali fiz os programas mais loucos. Apresentava aos domingos de 10h até a meia-noite, e só conseguia ir dormir lá pelas 5 da manhã, de tanta adrenalina de fazer a coisa ao vivo... Quando a Kika se entendeu com o Multiply, começou a acompanhar o programa e dar contribuições, mandando músicas, dando opiniões e se engajando na ideia. 

Kika Serra – Pense você: se a internet banda larga hoje é uma merda, como era em 2005! Pense você que eu mandava discos inteiros pro amigo, assim que eram lançados aqui: música por música, e-mail por e-mail... Haja amor à causa.

BD – E quando é que essa parceria se tornou oficial?

MdC Suingue – Alguns meses depois, em 2006, quando eu resolvi assistir à Copa do Mundo no Brasil. Para não perder meu lugar na grade da Sound Radio, combinei com o polonês que eu inverteria o processo: ao invés de apresentar o programa ao vivo a partir do estúdio em Londres, e depois botar no podcast, eu gravaria o programa no Rio, colocaria no podcast, ele baixaria de lá e transmitiria no meu horário habitual na rádio. A ideia inicial era gravar o programa em estúdio, mas a Kika, que já tinha manhas de edição de vídeo, me convenceu que dava para fazer na casa dela... Daí começou a nascer o CAS tal qual o conhecemos hoje. 

Kika Serra – É engraçado que esse relato todo faz parecer que o programa existia há décadas antes de eu entrar, né? Na verdade foi coisa de 12 meses! Dos sete anos de existência do Caipirinha Appreciation Society, estou metida nessa brincadeira, de corpo e alma, há seis! Mas tem todo o contexto anterior, que é mesmo importante contar. Quando o MdC Suingue criou a festa, e eventualmente o programa, não tinha esse interesse generalizado sobre o Brasil, essa hype de país produtor de petróleo, Copa e Olimpíadas. O interesse renovado na música brasileira pós-bossa nova, pós-tropicália, nesse momento século 21, é uma coisa que Seu Suingue e,  “ahã” [pigarreia de forma cômica], sua fiel escudeira, ajudamos a construir com nosso trabalho de formiguinha...


BD – O CAS é um dos podcast mais ouvidos do mundo. Como vocês explicam este sucesso? Afinal, por mais que o programa seja em inglês, a música é brasileira...

MdC Suingue – Deve ser nossa total dedicação, nosso esmero em fazer a coisa! Podendo editar, arte com a qual a Kika tem grande intimidade, começamos a pirar na coisa, fazendo gravações externas, bootlegs [gravações não oficiais de áudio ou vídeo do trabalho de um artista ou banda], entrevistas, apimentando o programa com texturas sonoras das ruas, praias, carnaval. Enfim, um novo mundo se abriu para o Caipirinha Appreciation Society, mudando radicalmente toda a dinâmica do programa. De uma proposta radiofônica tradicional, a união de nosso background em cinema e TV com o rádio criou uma experiência, de certa forma, cinemática. Passamos a convidar nosso público a perceber com os ouvidos o que nós víamos com nossos olhos pelas ruas e shows no Brasil. 

Kika Serra – Tem gente que não gosta, mas assim é a vida, não dá pra agradar a gregos e tijucanos! Acontece que, ao longo desses anos todos monitorando nossas estatísticas, nos relacionando com nossa audiência, ficou claro que os programas onde estamos mais presentes são os que mais dão download, os que mais ganham comentários! Criamos um público não só interessado no repertório musical do CAS, mas nesse olhar nosso sobre a cultura, sobre a realidade brasileira, que a gente oferece para além da música em si. Isso com todas as besteiras que a gente fala no processo! Quando ficamos calados demais, a galera reclama! Vai entender? [Risos].

MdC Suingue – E é isso. Ah, para completar a experiência, faltava embalar o Caipirinha Appreciation Society com um visual à altura. Por absoluta falta de traquejo com essas coisas, nunca valorizei as possibilidades estéticas que a internet oferecia ao CAS... A Kika logo assumiu essa parte e criou toda uma cara para o projeto. Daí começou a surgir a identidade visual, que hoje é parte superimportante  do programa. Aliado a isso, começamos a usar câmera de foto e vídeo para criar pequenos making ofs, reportagens, para viralizar determinados programas.

Kika Serra – Dá uma trabalheira desgraçada! Mas surte efeito. Quando me tornei sócia do Caipirinha Appreciation Society, o programa tinha uns 60 downloads por semana. Fazíamos a maior festa quando chegávamos a 100! Hoje temos várias dezenas de milhares de ouvintes regulares espalhados pelo globo, de lá pra cá fomos crescendo por progressão geométrica. E a escalada continua, go, go, go! [Risos].

BD – E o CAS ainda é apresentado na rádio em Londres? No programa, vocês citam o nome de várias estações.

MdC Suingue – Pois é. Em 2007, a gente teve um baque: o fechamento da Sound Radio! Ficamos supertristes e já tínhamos nos resignado a fazer o programa apenas no podcast por um tempo, pois não seria fácil arrumar outra estação que aceitasse nosso jeito pouco metódico de fazer rádio... No último programa, de palhaçada, falamos que, se houvesse alguma rádio na escuta, que precisasse de um programa de música brasileira “além dos clichês”, que se manifestasse. Dois dias depois, recebemos o contato do pessoal da SOAS Radio!

Kika Serra – SOAS é sigla de “School of Oriental and African Studies”, um departamento muito prestigioso da University of London. Sempre tem algum acadêmico da SOAS dando pitaco na BBC sobre as crises da África, guerras do Oriente Médio, essas coisas! E apesar do CAS não ser nem oriental e nem propriamente africano, se encaixou como uma luva na programação da rádio, que tem uma proposta meio World Music. É uma rádio universitária, tocada voluntariamente por estudantes, mas é superbem equipada e a galera leva muito a sério. Temos o compromisso de estrear as novas edições do CAS na SOAS Radio e, só depois da transmissão ao vivo, publicar no podcast.

MdC Suingue – Nossa ideia naquela época, já que os dois têm visto de residência na Inglaterra, era passar metade do ano fazendo o programa daqui, de nossa sala de estar no glorioso bairro do Leme, e a outra metade apresentando ao vivo no estúdio da SOAS Radio, em Londres. Mas as circunstâncias e a crise na Europa frustraram esse projeto. De todo modo, nossa base lá continua firme e forte. 

Kika Serra – Hoje o CAS é retransmitido por uma rádio na Turquia e outra no sertão pernambucano. Adoramos essa variedade! Mas a realidade é que somos um programa com alma de internet. É na internet que construímos as pontes de relacionamentos, é lá que damos os follow-ups do programa, é lá que nos informamos, é lá que universalizamos a nossa mensagem... E curiosamente, é por lá que os brasileiros estão descobrindo o programa. É o país cuja audiência mais cresce para nós, proporcionalmente. No começo, representava uns 20% do nosso público, hoje está mais pra 40%.

BD – Como é o processo de pesquisa para o CAS? Vocês chegam a viajar para conhecer novos artistas ou sons que, se é que ainda é possível, não tenham visibilidade na rede?

MdC Suingue – A pesquisa para o CAS é diuturna, intuitiva e esquizofrênica! Sempre que viajamos, tentamos escolher nosso destino com base em seu potencial musical. Fazemos uma pesquisinha básica para termos o fio da meada, mas uma vez no local, é o acaso e nossos narizes que nos guiam. 

Kika Serra – Fora uma sorte fenomenal que cisma em nos acompanhar!

MdC Suingue – É, costumamos dizer que somos um ímã de coisas, pessoas e situações legais! A gente sempre acaba esbarrando com a galera mais maneira, o talento mais inesperado, o ângulo mais inusitado. Mas não viajamos tanto quanto gostaríamos, nosso nirvana seria viver a vida garimpando música e manifestações culturais pelo mundo afora...

BD – Como vocês fazem a seleção? Os podcasts são temáticos, mas imagino que eles exijam um grande trabalho de curadoria... 

MdC Suingue – Como eu disse, mesmo antes do CAS ser um programa de rádio, já tínhamos nossas fontes dentro da própria música brasileira através de músicos amigos. Mas também garimpamos muito e corremos atrás de discos e coisas inusitadas. Com o tempo, passamos a ser mais procurados por músicos que se identificam com nossa seleção e veem em nós uma chance de mostrar o seu trabalho. O fato de não haver em nossa relação com os artistas nada nem remotamente semelhante ao jabá também ajudou muito nesta aproximação. E contamos também com as dicas que surgem dentro de nossa rede de contatos na internet. São nossos “informantes". [Risos].

Kika Serra – Essa parte da curadoria é um trabalho conjunto. Passamos nossos dias lendo, fuçando, discutindo e, é lógico, escutando música! Como moramos juntos, um está sempre mostrando para o outro o que acabou de descobrir. Só o processo de montar, botar uma música atrás da outra, é que acabamos separando. Ao longo de anos de parceria, concluímos que era uma besteira a gente perder tempo brigando, porque um acha que a música de fulano deve vir colada com a música de sicrano, e o outro prefere seguir por outro caminho! Daí que, hoje em dia, decidimos o teor de cada episódio, montamos juntos uma lista frouxa de músicas, mas quem se concentra em organizar tudo em sequência é o Seu Suingue. Por essas e por outras é que, quando somos chamados para discotecar, ele é que comanda as carrapetas, eu fico lá fazendo social e dando pinta de primeira-dama [Risos].

MdC Suingue – Quanto aos episódios serem temáticos, não é sempre assim... Os podcasts têm sempre uma ideia, mesmo que só uma palavra, o título de cada episódio, que orienta a seleção muito vagamente. Quando definimos um tema específico, falamos pra caramba e as músicas têm relação direta com o que dizemos. Mas, muitas vezes, só tocamos música e quase não comentamos. Outras vezes, ficamos no meio do caminho: rola um bate-papo, mas a música não tem necessariamente a ver com o que estamos falando. A seleção segue a mesma linha, não queremos que as pessoas ouçam o programa com aquela sensação de que sabem o que vão encontrar, em que ordem vão encontrar e o que virá depois. 

Kika Serra – Tem uma expressão ótima em inglês: “No comfort zone”. Não queremos, não deixamos que nossos ouvintes se acomodem! Damos mesmo essas alfinetadas nas pessoas, para deixá-las ligadas, para que atentem para os detalhes, para a diversidade do conteúdo que apresentamos. O Caipirinha Appreciation Society não é programa de música ambiente, não é um mixtape climático, “música para dançar”, “música para amar”, "música para lavar a louça”. [Risos]. Não é que a seleção seja totalmente aleatória, um “samba do crioulo doido”, não mesmo! Rola uma lógica, bastante sofisticada até: toda uma narrativa subjetiva que construímos em cada programa, uma historinha que é contada entre uma música e outra. Mas como toda boa história, traz alguns belos sustos!


BD – E como a neoMPB entrou na seleção? 

Kika Serra – Vou confessar pra você que somos meio avessos aos rótulos... Somos apaixonados pela música popular deste “Brasilzão” de se perder de vista, mas nunca gostamos muito do que as pessoas vieram a entender por "M-P-B”, aquela coisa que você pode sempre reduzir ao banquinho e violão. De modo que “neoMPB”, ao nosso ver, acaba não dando conta da multiplicidade da produção musical contemporânea. Mas, frescuras vocabulares à parte... [Risos]. Sei que você está se referindo a uma geração, a todo esse pessoal que está aí, fazendo e acontecendo no novo milênio, por mais que bebam das mais variadas fontes e frequentem diferentes panelas. Enfim, essa turma que você está registrando magistralmente no seu blog, a maioria figurinha repetida do CAS! O difícil é responder “quando foi o primeiro contato”... Onde está essa fronteira, essa ruptura? Quem fechou a tampa da geração anterior, dando passagem para a atual? 

MdC Suingue – Evitamos colocar as coisas em compartimentos estanques. Existem movimentos e tendências que são até palpáveis, mas eles não surgiram do nada, lampejo unicamente de uma mente genial, como em geral querem nos fazer crer. Fazemos questão de colocar o passado, o presente e o futuro da música brasileira em pé de igualdade no programa, para contextualizar a música de forma orgânica, e não por supostas quebras de paradigmas que os rótulos nos sugerem.

Kika Serra – É curioso, porque o Caipirinha Appreciation Society, talvez por conta de seu mote, da ideia do “além dos clichês”, é muito identificado com a nova música brasileira. Só a gente é que não se vê assim! [Risos]. Somos amigos da galera, damos toda força possível para as bandas atuais, fazendo essa ponte entre o trabalho deles e o público lá fora. Tentamos divulgar sempre as turnês internacionais, outro dia até escrevemos uma carta de recomendação para ajudar o pessoal do Quarteto Olinda a conseguir visto para os Estados Unidos! O ouvinte internacional do Caipirinha Appreciation Society, aquela galera que veste, literalmente, a camisa do programa, bate ponto nos shows que os artistas de nosso repertório vão fazer em Nova York, nas “Europas”. Mas fato é que o CAS não é propriamente um programa especializado em novidades...

MdC Suingue – Veja bem, de maneira alguma estamos desmerecendo o trabalho dessa geração, muito pelo contrário! Ela está superpresente nas playlists do CAS. É por considerarmos eles grandes músicos que os posicionamos lado a lado com outros grandes músicos, no sentido atemporal da coisa.

BD – Mas imagino que vocês percebam algumas diferenças entre a música contemporânea brasileira e a das gerações anteriores... 

MdC Suingue – Talvez a maior diferença seja que o DIY [“do it yourself”] acabou com o reinado dos produtores, né? Antes, você podia dizer o nome e o sobrenome do produtor/arranjador da época, que imprimia a tudo a mesma sonoridade e textura. Michael Sullivan, Liminha, Lincoln Olivetti, Ezequiel Neves et cia., gente que tinha força dentro das gravadoras e foi onipresente em uma determinada época. Para o bem e para o mal, eles deixaram sua marca em determinados períodos! Para você ter uma ideia, apesar de eu ser um produto cultural da década de 80, que foi quando eu comecei a circular mesmo na noite, ir a shows e me entrosar na cena musical, apesar de nutrir grande afetividade por algumas bandas do período, são pouquíssimas as vezes em que as toco no CAS. Tirando o Picassos Falsos, conto nos dedos as vezes em que toquei Titãs, Legião, Barão Vermelho e afins. Não é que não goste de seus discos, é que a textura, a sonoridade destoa com o resto, o contraste não rola, fica sofrível!

Kika Serra – O que eu acho mais diferente da geração atual é o fato de ser quase impossível definir seus estilos. Fora um ou outro que se espelha muito literalmente em algum ícone do passado, o resto transita entre os gêneros sem nenhum pudor, sem querer com isso ser revolucionário. Talvez seja a tal antropofagia se aperfeiçoando cada vez mais: nos anos 60, era a cultura brasileira devorando influências estrangeiras. Hoje, é a cultura brasileira devorando a si mesma. Os sambas mais lindos que tenho ouvido não estão sendo feitos por músicos que se considerem sambistas. O meu roqueiro preferido deixa críticos atordoados, as resenhas definem o menino como dono de um estilo meio anos 50, 60 e 70, três décadas totalmente díspares em um! Nada disso se apoia num discurso pedante, é o som que a geração que tem acesso a tudo está produzindo naturalmente. 

BD – Entretanto, por mais que o atual momento da música brasileira seja muito rico, é evidente que parte desta geração tem dificuldades financeiras para dar continuidade ao seu trabalho. Até mesmo por conta do mercado fonográfico estar debilitado e a grande maioria dos artistas optar por disponibilizar gratuitamente seus álbuns em troca de visibilidade...

MdC Suingue – Essa talvez seja a grande marca da neoMPB, menos a ver com uma coerência estética, mais a ver com estratégias de sobrevivência. Faz tempo que a galera viu que não valia a pena chorar pelas vendas derramadas! [Risos]. Quando eu era novo, pessoas como eu, como a Kika, que tinham a música como tema permanente de pesquisa e conversa, pertenciam a uma tribo muito seleta! Hoje em dia, observando as movimentações nas redes sociais, você vê como isso está mudando, devagar e sempre. A moçada está ouvindo, discutindo e, é claro, trocando música como nunca fez antes. Aquele tipo que acumulava meia dúzia de CDs ao longo de uma vida inteira, que nunca se abalava a buscar mais variedade, é um perfil cada vez mais raro. Aliado a isso, o pessoal acordou para o fato de que a rádio e a TV os desfalcam de muita informação, e sai à caça desses conteúdos adicionais na internet. É lógico que ainda tem o Zé Mané se lamentando que, como a rádio não toca música boa, não se faz mais música boa... Bitolados nunca vão deixar de existir, mas o lindo é que o interesse por música é cada vez menos uma exclusividade de moderninhos e descolados. 

Kika Serra – É claro que tem muita fuleragem, como dizem nossos amigos pernambucanos, sendo ouvida e compartilhada... Mas eu sempre digo que quem lê livro ruim já é uma evolução sobre quem não lê! Quem é louco por música, vai a show, baixa, se interessa, é uma evolução de quem não tem interesse nenhum sobre o assunto, seja qual for o estilo! De um jeito ou de outro, o pessoal está aprendendo a formular preferências por conta própria, a articular opiniões individuais. Procuram seus ídolos nas redes sociais, se ligam no que eles estão escutando e recomendando. O fato desses fluxos de informação estarem a mil, de vídeos do YouTube e arquivos mp3 estarem cruzando o ciberespaço pra lá e pra cá, isso é o que deve ser celebrado! Informação é poder, e a informação deixou de ter só alguns poucos donos. Isso não pode ser ruim! 

MdC Suingue – Bom, mas voltando à pergunta...

Kika Serra – Sorry! [Risos].

MdC Suingue – Tudo isso pra dizer que a neogeração da música brasileira surgiu desse contexto, e calculou por um simples A + B que está em seu interesse que suas composições peguem carona nesse fluxo, que sejam ouvidas, trocadas, espalhadas o máximo possível! Isso pode se transformar em dinheiro na conta bancária um dia, ou não! O raciocínio é que eventualmente o pessoal que tanto baixou o seu CD de graça eventualmente vai pagar para te ver tocar ao vivo... e comprar a camiseta, e participar do crowdfunding! É claro que isso não é uma fórmula infalível, a coisa pode não acontecer assim. Também não é mole competir com o excesso de oferta. Mas se você não fizer da música uma carreira economicamente viável, pelo menos você, artista, criador, terá dado a sua mensagem a um grupo de pessoas que quis te ouvir, e não vai morrer na obscuridade absoluta, como tantas bandas pré-era digital fizeram.

Kika Serra – É difícil viver de música? É! Impossível até, para quem não é muito safo nas redes, muito versátil nas parcerias. Parece um contra-senso cada vez mais pessoas ouvirem música e cada vez se ganhar menos dinheiro com isso? Parece! E, no entanto, lembrando dos tempos em que eu, Kika Serra, cantava em uma banda, em que meus amigos da adolescência tocavam em bandas, vejo uma cena alternativa muito mais saudável hoje do que então: mais casas de show, mais festivais, mais turnês internacionais... A geração Banda Desenhada está lá, na labuta, criando, disponibilizando suas músicas de graça, fazendo sua arte chegar ao seu público e, aos trancos e barrancos, pagando as contas no final do mês.


BD – Sendo um pouco advogado do diabo: Andrew Keen, em seu livro “O Culto do Amador”, faz críticas severas à produção virtual, chegando a dizer que a democratização na web  “está solapando a verdade, azedando o discurso cívico e depreciando a expertise, a experiência e o talento”....

MdC Suingue – Sempre que rola uma democratização dos modos de produção, vem alguém desqualificar os novos produtores que chegam contestando os dogmas daquela atividade. Enquanto você é o único dono da bola, só joga quem você quer e a camisa 10 é sempre sua, né? [Risos]. Parte da graça de ser o dono exclusivo de um modo de produção, ou de viver sob suas benesses, é se arvorar a dono da verdade, da razão cívica e da expertise! Temos que ter em mente, também, que talento e experiência nem sempre andam juntos, até porque, para ganhar experiência em algo que envolva modos de produção de difícil acesso tem que se lamber muita bota, sacrificar muito de suas ideias e se adaptar aos caprichos do patrão. Agora, quando alguém está lá no topo, tem sempre um lá embaixo dizendo entre os dentes “eu faria melhor do que isso”. Pois não é que, em alguns casos, isso não é arrogância ou inveja, é verdade mesmo? Na hora em que aparece a oportunidade de acesso fácil ao modo de produção, o cara vai lá e faz! Muitas vezes algo que, por fugir aos padrões vigentes, pode parecer pouco sofisticado, mas tem conteúdo, é inédito, é diferente e cria o seu próprio espaço. 

Kika Serra – Quem é envolvido no mundo da cultura não pode negar que a gente está vivendo um período de florescimento no cenário musical. Veja a quantidade de gente retratada no Banda Desenhada! Tem muita música sendo feita, muita música ruim, mas também muita música boa! Tenho certeza que 90% do que eu e você ouvimos hoje em dia jamais teria o alcance que tem se dependesse dos padrões vigentes na era de ouro da indústria do disco... A mudança não diz respeito só à facilidade de gravação, mas também à distribuição e à divulgação. As redes sociais ajudaram a criar nichos de interesses, que tornam verdades absolutas obsoletas, que abriram espaço para várias verdades. A qualidade, ou a sofisticação atribuída a um projeto, tem mais a ver com o juízo de valor de quem consome, não com a opinião das ditas autoridades no assunto.

BD – E como é no caso de vocês? Como fazem para driblar estas questões financeiras?

MdC Suingue – Como fazemos para driblar estas questões? Não confundimos o que a gente faz para viver com o que vivemos para fazer! Nossa satisfação com o Caipirinha Appreciation Society é independente dele nos render dinheiro ou não. Hoje em dia todo mundo tem que assoviar, chupar cana e vender mariola ao mesmo tempo e com a gente não é diferente... Somos freelancers e tentamos adaptar nossa vida a essa realidade, de forma a termos espaço para desenvolver o Caipirinha Appreciation Society. Abrimos mão de algumas coisas em nome deste estilo de vida, mas em nosso caso vale a pena. Antigamente, as pessoas se definiam por seu emprego formal, pela atividade que garante a sua subsistência. Nós nos identificamos com o que nos faz felizes: somos produtores do Caipirinha Appreciation Society. Se você quer ser feliz neste novo mundo que se abre, tem que abraçar seus projetos como qualquer pioneiro em qualquer tempo. São negócios que ainda não têm modelos definidos. E, para falar a verdade, pela rapidez que as coisas estão acontecendo, nem sei se vão ter modelos definidos um dia!

Kika Serra – Ao longo dos anos, tenho reparado em uma mudança radical na maneira como as pessoas à minha volta reagem ao meu mergulho no universo do Caipirinha Appreciation Society. Ficava muito claro, no começo, que elas me achavam meio looser: quando larguei mão de ser carreirista em nome de uma falsa sensação de importância profissional, quando optei por ganhar menos dinheiro para me dedicar com afinco ao que só me traz satisfação pessoal... Mas acho que essa crise do neoliberalismo mundial, esse momento de indignados e ocupadores de praças públicas, tudo isso está corroendo o princípio de que todo esforço tem que ser monetizado, de que todo sucesso tem que ser medido em cifras. Isso tem feito opções como a nossa parecerem mais naturais, tem levado mais pessoas a trilhar caminhos semelhantes. O mundo está mudando, e quem tenta diminuir a importância deste momento é um boboca. Quando inventaram a imprensa, o telégrafo, o telefone, enfim, todo entroncamento na história da humanidade em que um modo de comunicação foi substituído por outro foi chamado de revolução. Não é diferente agora: estamos todos, músicos, artistas, comunicadores, no meio do turbilhão. A gente tem muito orgulho de abraçar a revolução de nosso tempo, de não gastar nossas energias tentando contorná-la ou resistir a ela, de, com o Caipirinha Appreciation Society, ter um papel ativo dentro dela. Com toda a incógnita e os pontos de interrogação que só as futuras pós-neogerações de músicos e comunicadores vão saber responder. Até lá, a gente pode não ficar rico, mas há de continuar se divertindo!

MdC Suingue – A nós mesmos e, com alguma sorte, a uma meia dúzia de ouvintes.

8 Responses to uma festa imodesta

  1. Uma festa imodesta como esta
    Vamos homenagear
    Todo aquele que nos empresta sua festa
    Construindo coisas pra se cantar
    Tudo aquilo que o malandro pronuncia
    E o otário silencia
    Tudo aquilo que se dá ou não se dá
    Passa pela fresta da cesta e resta a vida
    Acima do coração
    Que sofre com razão
    A razão que volta do coração
    E acima da razão a rima
    E acima da rima a nota da canção
    Bemol natural sustenida no ar
    Viva aquele que se presta a esta ocupação
    Salve o compositor popular

    ~ Chico Buarque


    ... Muita honra constar destas páginas, incrível Bulk! Beijo grande.

  2. demais. criativos, em movimento, curiosos! adorei!

  3. Parabéns pelos "esclarecimentos".
    O Caipirinha Appreciation Society Show tornou-se uma referência graças ao trabalho e a dedicação dessa incrível parceria. Quem ganha é o público privilegiado que acompanha os programas.
    O sucesso do Caipirinha reflete a produção espetacular que nosso país abriga e poucos aqui re-conhecem.

  4. Este comentário foi removido pelo autor.
  5. É pois que é nas rádia, né?
    Se fosse nas TV nóis agesticulava!

  6. Adorei a arqueologia do CAS!
    Adoraria ter conhecido o programa antes, quando estava em londres na época que começou.
    É a movimentação online!
    Muito Obrigado
    x

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