rebento, substantivo abstrato


fotos: daryan dornelles


Utilizado anteriormente para descrever boa parte da produção musical da década de 1990, o termo neotropicalista acabou por voltar à cena, em mais uma tentativa de classificar a atual geração da música independente brasileira. Mesmo que utilizado com bastante moderação, o termo não deixa de ter sua relevância. Surgido no final dos anos 60, em meio ao recrudescimento da ditadura militar e a um veloz desenvolvimento urbano-industrial, o tropicalismo veio a se opor esteticamente ao que se produzia nas fileiras da então chamada MPB. Forjada nos festivais de música do período e com forte influência da bossa nova, a MPB se caracterizava mais pelo seu caráter contestatório e doutrinário – com destacada preocupação pelas causas sociais e a defesa das tradições populares – do que, necessariamente, por seu espírito vanguardista. O tropicalismo, por sua vez, propunha uma ruptura brutal dos dogmas de então e promovia um sincretismo que, endossado pela antropofagia modernista de Oswald de Andrade, mostrava-se voraz ao deglutir elementos considerados distintos ou mesmo antagônicos: o erudito e o kitsh, a cultura nacional e a cultura de massa, o arcaico e o moderno. Na tentativa de internacionalizar e adequar, de forma propositadamente tensa, a cultura brasileira aos paradigmas da época, o tropicalismo concebeu uma nova e dinâmica identidade nacional que ainda reverbera na atual produção artística do país, seja nas artes plásticas, no teatro ou, mais destacadamente, na música.
Cerca de 40 anos após o surgimento do tropicalismo, o Brasil passa novamente por uma crise. Com o desenvolvimento e a popularização das novas tecnologias e recursos como o mp3 e os sites de armazenamento, o mercado fonográfico vem, paulatinamente, sofrendo perdas que provocaram a redução drástica dos castings das gravadoras, quando não a extinção destas. Paralelamente, sem os investimentos de outrora, viu-se a severa redução de espaços na mídia para a divulgação de trabalhos de novos artistas, principalmente os considerados menos comerciais. Assim, apostando em nomes que rendem uma incontestável e propícia margem de lucros, as gravadoras, juntamente com os grandes veículos de comunicação, foram por certo tempo responsáveis pelo empobrecimento da produção artística do país, limitando-se, fora raras exceções, aos axés, sertanejos, pagodes e outros tantos gêneros devidamente pasteurizados. Somente com o fortalecimento da cena independente – muito por conta do barateamento das tecnologias de gravação e da expansão das redes sociais - é que a música popular brasileira pôde ganhar novo fôlego e, por assim dizer, retomar a tão falada “linha evolutiva” que Caetano Veloso idealizara nos anos 60. Obviamente, não faltam diferenças entre o tropicalismo e a atual geração que, carente de um nome melhor, vem sendo chamada, entre outros termos, de neoMPB. Contudo, é curioso perceber a capacidade de resposta que tanto artistas da geração 60 quanto a 00 foram capazes de elaborar em meio à crise, seja social, de mercado ou política. Curiosamente, mesmo que imbuída de um vocabulário pop e sendo fortemente caracterizada por um niilismo e cosmopolitismo típicos de nossa época, a neoMPB, diferentemente do tropicalismo, desenvolveu uma relação dúbia com as antigas corporações, pendendo muito mais para a animosidade do que para a conciliação. Entretanto, se em seu discurso, a cena independente brasileira parece, por vezes, distante de qualquer propósito vanguardista, ela ainda consegue, ao seu modo e com suas devidas limitações, expressar em sua produção as mudanças e contradições de seu tempo, construindo assim uma nova identidade para a música brasileira que remete claramente ao substrato tropicalista. Assim, tal qual um moto contínuo, o ideário de artistas como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, José Celso Martinez Corrêa, Hélio Oiticica e Glauber Rocha ainda se faz presente e se torna de extrema valia não só como referência para a atual produção, mas também para a análise desta.
Filha dos cineastas Glauber Rocha e Paula Gaitán, Ava Rocha parece representar melhor do que ninguém as tensões por que vem passando a música contemporânea brasileira. Reconhecida por seus trabalhos como montadora e diretora na área de audiovisual, Ava tem em seu currículo dezenas de projetos, entre eles “O Naufrágio Lento no País das Maravilhas” (2002), “Quimera” (2004), “Dramática” (2005), “Intervalo Clandestino” (2006), “A Estrada Real da Cachaça” (2008) e “Transeunte” (2010). Mais recentemente, lançou seu primeiro longa metragem, o documentário experimental “Ardor Irresistível” (2011), onde registrou a montagem e a encenação de “Os Sertões”, do Grupo Oficina, na cidade de Canudos (BA). Não por acaso, Ava já havia integrado o grupo de Zé Celso, onde teve a oportunidade de cantar pela primeira vez. A partir desta experiência, a artista uniu-se a Emiliano Sette (violão), Daniel Castanheira (percussão e eletrônicos) e Nana Carneiro (violoncelo e vocal) para formar a banda AVA. Caracterizada por uma experimentação artística que promove o entrecruzamento de música, happening, literatura e vídeo-arte, o grupo chamou a atenção da Warner Music e lançou pela gravadora seu primeiro álbum, “Diurno” (2011).
Envolvida com a montagem do primeiro clipe oficial da banda, “Filha da Ira”, e os preparativos para a chegada de sua primeira filha, Uma, Ava Rocha aceitou o convite do Banda Desenhada e nos concedeu esta entrevista que começou com um bate papo em uma praça no bairro da Glória (RJ) e se estendeu por mais algum tempo em uma sucessiva troca de e-mails e conversas em redes sociais. Neles, a cantora nos falou a respeito de sua carreira, do seu processo de criação, do cenário musical brasileiro e, entre outras coisas, da influência de seu pai e do tropicalismo na atual geração da MPB:

BD - Ao que parece, o núcleo da AVA é você e o Daniel Castanheira. Entretanto, é possível ter uma banda com o próprio nome e não ser vista como bandleader? Isto já não causou algum incidente? 

Ava Rocha - Todos os quatro elementos da banda são importantes, imprimem a sua personalidade e contribuem no processo criativo. O Daniel tem características marcantes que o tornam muito importante, mas, na realidade, todos são. O nosso encontro se deu de forma não linear, mas realmente fui eu quem, como uma boa montadora, fui juntando as peças e conseguindo criar um elo entre os integrantes da banda. A vontade surgiu de um momento pessoal, de me assumir como cantora... e isto estava ligado a todo o meu contexto artístico, a minha visão de mundo, ao meu processo de descoberta musical. Nada disto eu poderia fazer sozinha. A banda foi se configurando a partir de uma sintonia, da troca, da criação e união de uma série de desejos e visões. Eu não gosto dessa palavra bandleader porque não sou líder. Eu sou um elo, uma força ali presente. E todos, assim como eu, são lideres, defendem suas ideias e propõem coisas. Tudo nós discutimos e decidimos juntos. A questão do nome se explica pelo fato de que ele é anterior a própria banda. Eu já queria usar só AVA, não queria ter sobrenome. Não queria o Rocha. Então, os incidentes acontecem. As pessoas não estão acostumadas a isto. Mas não é uma novidade. Outras cantoras como Sade e Pitty tem bandas homônimas. Agora, o Botyka acabou de criar sua banda Botyka. Acho a questão do “solo versus banda” um pouco diluída quando o processo criativo e a estética de um álbum são realmente coletivos. O que realmente me interessa é que, enquanto cantora e integrante de uma banda, sou a mesma. Persigo os mesmos objetivos e me construo neste contexto. Costumo brincar, dizendo que quando lançar meu projeto solo, quando quiser entrar em outras vias sonoras incompatíveis com a estética e as intenções da banda, eu usarei meus outros três nomes Patrya Yndia Yracema. [Risos].

BD – Havia me esquecido! Que nome formidável! Mas voltando à banda, como é o processo criativo de vocês? O que é delegado a cada um?

Ava Rocha – Cara, o processo não é assim linear, hierárquico, sabe? No caso especifico deste disco, do nosso primeiro trabalho, eu comecei me encontrando com o Emiliano e com a Nana, separadamente. Mas logo eles se conheceram. Mostrei minhas canções para o Emiliano, como “Só Uma Mulher”, que ele harmonizou, e outras, que ele desenvolveu no violão. Além de compor e ser muito generoso, o Emiliano também me ajudou a escolher várias canções que iriam compor o repertório da banda. Já a Nana, tem uma musicalidade muito especial. Ela trata o violoncelo com rebeldia, o que acabou incitando muitas descobertas sonoras. Nós nos identificamos muito, pela força feminina mesmo. Foi a Nana que propôs “Pra Dizer Adeus”. Ficamos por um tempo com este núcleo, só nós três. Trabalhamos muito, nos encontrávamos diariamente, amadurecendo as canções. Durante este processo, tivemos o Edson Secco, um músico e designer sonoro que inseria uns elementos eletrônicos. Depois, chamamos o Daniel. Eu pessoalmente não queria bateria, estava afim de algo mais estranho. O Emiliano então sugeriu o Daniel porque ele tem uma grande força inventiva. É um cara que pesquisa som, tem uma sensibilidade enorme, e já tinha uma ligação com a gente. Antes de formarmos a banda, tínhamos feito uma gravação de uma música do Emiliano, “Infinito Azul”, onde o Daniel fez as programações. Bom, então quando o Daniel veio, ele processou todo o repertório que já estava na mão e sugeriu uma canção sua, “Acorda Amor”. Depois o Edson saiu e o Daniel assumiu seu lugar. No fundo, são muitas nuances. Não tínhamos baixo. Durante um tempo nossos shows foram sem baixo, salvo em dois momentos que o Daniel saía da bateria e tocava. Nas apresentações, a Nana também abandonava o cello e tocava piano. Com o processo de gravação do disco, inserimos estes dois instrumentos, fomos agregando outras sonoridades. Agora estamos em uma nova etapa: os shows. O palco também é um campo fértil de experimentação e temos algumas novidades. Apresentamos canções que não entraram no disco e outras que ainda estão em fase de amadurecimento. 

 BD – Seu trabalho e o da banda têm um cunho quase artesanal e vocês parecem pouco se preocupar com a questão comercial. No entanto, lançaram o álbum pela Warner. Como foi isso? Afinal, qual é a grande diferença entre ser independente e pertencer a uma grande gravadora?

Ava Rocha - Acho que estamos em um momento de grande confusão mental por conta desta ideia de  geração independente versus gravadora. As pessoas não têm mais certeza do que é o quê... Quais são as reais possibilidades para o crescimento de suas carreiras, o que é o mercado... Hoje existem trabalhos muito mais comerciais que o nosso e que são independentes, que têm certa visibilidade e são voluntariamente pop. A questão, para mim, passa por outro crivo: uma coisa é fazer um trabalho cujo principal objetivo é ser comercial, outra é fazer de forma singular, podendo ser ou não comercial, capturando a atenção e o gosto das pessoas pela curiosidade ou pela identificação com a música, com o que ela traz de novo. O nosso encontro e a parceria com a Warner se dão neste viés. Eles entendem que o nosso trabalho não é pretensamente comercial, mas confiam no potencial dele pelas características que possui: a minha voz, a sonoridade, a delicadeza e o rigor.


BD – Não sei se você tem esta mesma sensação, mas parece que de uns tempos para cá vem se criando certo estigma em relação aos músicos pertencentes às grandes gravadoras. Até mesmo quando se fala em neoMPB ou nova MPB o que vemos é, basicamente, músicos independentes... Imagino que tenha visto a revista Serafina de abril, por exemplo, onde boa parte dos artistas que está ali relacionada é independente.

Ava Rocha - Para mim está claro que existem muito mais artistas fora das gravadoras do que dentro. Hoje se tornou uma opção viável não estar em majors, mas não para todos. Também vemos casos de gravadoras menores, ditas independentes, e ainda temos os patrocínios como os da Natura, os editais de música e a Bolsa-Artista [projeto de lei federal que concederá benefícios a artistas em processo de formação]. Temos casos em que pagamos ou fazemos na garra um disco, num puta estúdio de graça ou em casa, com a colaboração dos amigos. Então é claro que tem mais artistas ditos independentes. Mas todos dependemos, inclusive e sobretudo, de mídia. Estes que saíram na Folha, por exemplo, que chama de neoMPB, se concentram basicamente em São Paulo. Então a mídia vai construindo o que ela quer, criando estes rótulos, dando pareceres. Estou falando isto porque existem muitos artistas independentes no Brasil que, mesmo talentosos, não têm visibilidade e que também não fazem a dita nova MPB, mas que, ainda assim, produzem uma música nova, inédita e criativa. Ou não! [Risos]. Não há mais a obrigatoriedade de ser novo, até porque, como dizia Itamar [Assumpção], "o novo não existe mais", não surpreende mais. Tem muita gente que trabalha com a tradição, e trabalha com qualidade. A questão que coloco é que a nossa geração não deve se submeter a uma certa pressão para a aceitação, agradar ao pai e à mãe ou querer ser reconhecido como “o novo fulano” ou “o substituto de sicrano”. Acho que a relevância de um artista está na sua singularidade. Para mim, o que importa não é se determinado artista é de uma gravadora ou não, e sim a relevância de sua obra. 

BD – Mesmo divulgando um projeto musical, há certa tendência da maioria dos jornalistas em explorar questões relacionadas ao se pai. Imagino que já fazia ideia que isto iria acontecer, não?

Ava Rocha - É natural que o meu pai, sendo o Glauber Rocha, seja figura marcante e presente nas entrevistas e matérias a meu respeito. Realmente isso não me incomoda tanto porque o admiro e o amo muito....e acho que ele só ilumina o meu caminho. Sei que ele teria orgulho de mim. O fato que me intriga é o porquê dos jornalistas ainda insistirem em mencionar isto, mesmo quando não existe um recorte real que valide esta informação. Não é mais novidade para ninguém que eu seja filha do Glauber. Mas enfim, não quero ficar transcorrendo sobre isto. Que as coisas fluam naturalmente. O que importa é que estou feliz e sou grata às oportunidades que a vida me dá.

BD – Bem, só para finalizar esta questão: Glauber Rocha, o cinema novo e a tropicália ainda  influenciam até hoje gerações de artistas. Você saberia explicar este fenômeno?

Ava Rocha - A efervescência de uma época. Todo o contexto geracional. As drogas, o sexo, a política, as contravenções, a rebeldia, a criatividade, as rupturas... nossa! É mais que um fenômeno, é um momento muito especial na história do Brasil e do mundo. Os anos 60 e 70 tiveram uma conjuntura astral e impacto descomunal. Tanto pela explosão criativa dos artistas em várias regiões do planeta quanto pela violência das ditaduras militares. Além do diálogo entre as culturas, seja como forma de dominação ou de libertação, que a televisão e o cinema proporcionaram. Enfim, inúmeras coisas que eu não sei explicar... só intuo. Mas estes artistas e movimentos não surgiram assim do nada, houve toda uma geração anterior que propiciou isso. Tivemos no Brasil o Noel Rosa, o João Gilberto, o Heitor Villa-Lobos, o Tom Jobim, o Guimarães Rosa e tantos outros. O surrealismo, o neorrealismo italiano, o Eisenstein... as revoluções, os massacres, a Segunda Guerra Mundial... A história está em movimento e cada período tem seu potencial energético. Acho que por termos passado por uma fase pós-traumática um pouco estéril, ficamos com estes mitos: do cinema novo, do tropicalismo... do poder midiático destes movimentos. Estou dizendo isto porque realmente sou influenciada por eles, tenho verdadeiras paixões. A começar pelo cinema do meu pai, absolutamente genial e universal. Mas minha formação vai mais além. É uma alquimia muito mais complexa. Acredito que seja assim para a maioria das pessoas.

BD – Você falou que passamos por um momento estéril... Que momento seria este? A década de 80? Imagino que esteja falando da produção cultural da época, não?

 Ava Rocha – Olha, não é oito nem 80. [Risos]. Acho que nos anos 80, surge no Brasil um sentimento novo, ligado à abertura, com o fim da ditadura. Mas, assim como no resto do mundo, também há uma explosão da indústria musical. A publicidade vai se tornando muito forte. Enfim, não sei bem, mas dá a sensação que começamos a viver realmente um período menos político, mais estéril do ponto de vista das vanguardas... Na verdade, quando falei isso, estava me referindo mais à minha geração mesmo, que surgiu nos anos 90 e 2000. Mas não acho que se deva dar tanta importância a esta questão geracional... mesmo que estejamos, neste momento, vivendo um período mais interessante.

BD – Você também participou do Teatro Oficina... É incrível a importância que ele tem para vocês. Dan Nakagawa, Karina Buhr, Iara Rennó, Thalma de Freitas, muitos passaram ou se apresentaram por lá.

Ava Rocha - Claro, o Teatro Oficina é uma universidade. Eu canto desde pequena. Descobri a beleza da minha voz, do meu timbre muito cedo. Sempre cantei. Comecei a compor aos 20 anos e a inserir minha voz em filmes. Mas era muito tímida. Foi no Teatro Oficina que, indo para o palco, nasci realmente como cantora. Comecei a compreender e a cutucar, a expressar com meu corpo e com o meu teatro algo que já vinha expressando e desenvolvendo no cinema, na minha poética audiovisual. Enfim, é como diz o Zé: “Assumir o seu ‘Phoder’, se coroar”.

BD – O que mais me despertou a curiosidade foi a relação, direta ou indireta, do Zé Celso com a neoMPB... 

Ava Rocha - Eu acho que o Zé não pensa assim: “A nova geração da MPB”. Até porque neoMPB é um rótulo ainda recente, dos dois ou três últimos anos, por conta de certo boom que houve, tanto de  novas propostas quanto de novos artistas....mas eu mesma não curto. Gosto de muitos artistas, mas não me atrai esta ideia de grupo. O Teatro Oficina é o oposto disto. Lá é Canudos. Têm todas as raças, procedências, tendências, histórias de vida... O Zé está interessando na potência do homem e do artista, e se relaciona com todos que estão dispostos a uma postura revolucionária, a uma experiência profunda ligada ao corpo e a arte. Sobre a música, o Zé é um compositor maravilhoso, toca piano, canta e faz de suas peças verdadeiros musicais. Muitos dos atores do Teatro Oficina são músicos. Há  os cantores e instrumentistas de várias gerações e de origens diversas: cantores de ópera, ogans, sambistas... Não tem isso de nova geração da MPB. Este rótulo reduz a potência da música brasileira. Deveriam dar um nome mais amplo que expressasse o momento fértil que estamos vivendo. 

BD – Você vem do cinema e boa parte da banda tem experiência com teatro. Nos shows há a presença literária de Clarice Lispector e Jorge Gaitán Duran [poeta colombiano, avô de Ava] e a capa do álbum foi realizada pelo [artista plástico] Tunga. É natural para você fazer este entrecruzamento de literatura, música e artes visuais?

Ava Rocha - Tudo que estou dizendo até agora responde a sua pergunta. Explica isto. Para mim, não existem fronteiras entre países, épocas ou campos artísticos. Meu trabalho pessoal desde sempre é hibrido. A estética da banda é hibrida. Nós somos híbridos porque nos misturamos e não somos uma única coisa, nem perseguimos determinado gênero ou ritmo. Os elementos se ligam, se cruzam, entrecruzam. É um trabalho de montagem, não linear, cinema de invenção, de poesia. Infinitas camadas... e rigor, não há aleatoriedade. Há experiência, procura, descoberta, sentido, signo, a porra toda! [Risos]. E tem mais gente envolvida neste projeto que não integra diretamente a banda. O Pedro Paulo Rocha, meu irmão, multiartista, gênio, compositor, poeta, filosofo, cineasta, etc. e tal. Ele é fundamental no disco, na sua concepção poética. Ele é uma grande referência para mim. Eu trouxe alguns rascunhos para a banda a partir dos trabalhos e das parcerias que fizemos. “Filha da Ira”, por exemplo, é minha primeira composição, seguida por “O Futuro”, ambas feitas com ele. O Pedro me incentivou muito a continuar. E me inspirei bastante na maneira como ele constrói suas canções. Enfim, somos muitos. O Tunga fez mais que uma capa, ele agregou sentido, completou a poética do álbum. Trazer o Jorge Gaitán Durán é trazer muito de mim, das minhas origens. É trazer a voz latino-americana, a poesia e o amor, o erotismo, a vida e a morte. Acho que, de certa forma, é tudo muito espiritual. E alquímico.


BD – “Diurno” remete à MPB dos anos 70. Não só aos pós-tropicalistas, mas também à Nana Caymmi, principalmente em seus álbuns para a [gravadora] CID. Estes artistas lhe influenciaram de alguma maneira?

Ava Rocha - Acho que é tudo muito espiritual realmente. Mas só posso responder por mim, já que a banda toda é responsável pelo resultado do disco. Sou apaixonada pela voz da Nana Caymmi, mas realmente não escutei os seus discos, nem sou conhecedora de sua obra. Passei minha adolescência em Bogotá, em uma época que não havia internet. Então, eu escutava os CDs e vinis que tínhamos levado do Brasil. Por exemplo, ouvi muito “Passarim”, do Tom Jobim, e “Getz/Gilberto”. Também escutava uma rádio de música brasileira que tocava muita coisa, Gal, Bethânia... Quando voltei ao Brasil, com 20 anos, entrei em contato com a obra do Jards Macalé. Ele tocou muito a minha alma naquele momento. E outros: Bjork, Eric Satie, Villa Lobos, Ismael Silva... Já fui viciada no [Luiz] Melodia, no Tom Jobim, na Janis Joplin, na Nina Hagen, na Ella [Fitzgerald], no Tom Zé, no Tim Maia, no Kraftwerk, e por aí vai….

BD – De modo geral, você se difere do restante da sua geração por ter uma sonoridade bem mais dramática e densa. Até a própria capa do CD acaba por reforçar esta idéia. Você se percebe assim? Como foi esta construção?

Ava Rocha - Olha, meu primeiro curta-metragem em 35mm chama-se "Dramática". [Risos]. Meus amigos do cinema aproveitaram a deixa para me apelidar de dramática. O Daniel diz que sou muito "lágrimas e sangue". Mas também sou muitas outras coisas. A dramaticidade, digamos assim, é um traço poético que tenho, mas não é algo que eu persiga de maneira consciente. A relação com a capa se dá muito mais por conta de uma identificação artística que eu tenho com a obra do Tunga. Portanto, ela não poderia ser diferente enquanto potência.

BD – O Brasil vive um momento fértil de compositoras, algo raro na história da MPB. Você tem ideia do porquê desta proliferação? Algumas vezes me pergunto se, em tempos de metrossexualidade e implosão de alguns arquétipos relacionados a gênero, ainda cabe falar de discurso feminino na literatura ou nas canções...

Ava Rocha – As mulheres vêm conquistando seu espaço cada vez mais. Assumindo seu poder. Deslocando-se do papel de musa ou diva. Assumindo-se como ser pensante. Assumindo sua independência. Mas é só uma questão de quantidade. Temos na história exemplos de diversas mulheres muito além de seu tempo, absolutamente geniais. Acho que cabe falar de discurso feminino, mas não enquanto gênero, pois isto cai no clichê do que é ser feminino. Mas acredito sim em um território da observação e do sentido feminino. Mesmo sabendo que não somos gênero sexual, sobretudo nos dias de hoje... como você mesmo disse, em tempos de metrossexualidade. Todos nós, homens e mulheres, refletimos de alguma maneira um fragmento de nossa percepção sobre o mundo... mas uma coisa é certa: a mulher ainda sofre muitos abusos e a luta continua. Viva a Marcha das Vadias! Legalização do aborto já! Direitos iguais e etc. e tal!

BD – Mas você consegue perceber alguma semelhança no discurso das compositoras da sua geração? Existe algo em comum, mesmo que de forma subjetiva, entre você, Nina Becker, Tulipa Ruiz ou Andreia Dias, por exemplo? 

Ava Rocha – Acho que sim, mas temos identidades próprias. E isto é muito bom, porque dá vontade de trocar, de fazer coisas juntas, de escutar umas as outras, de compor. Além da Nina, Tulipa e Andreia, existem também outras cantoras maravilhosas: a Karina [Buhr], que eu gosto muito; a Iara Rennó; a Mariana de Moraes; a Alice Caymmi; a Aline Calixto... Acho que existe algo do universo da mulher que só ela pode expressar. Seria no mínimo inusitado que um homem o fizesse. Por exemplo, já imaginou Marcelo Camelo compondo "Efêmera"? Ele pode até cantar, mas acho difícil que venha a conceber este tipo de canção. “Efêmera” é ótima, muito singular na percepção de como a alma da mulher, e não da mulherzinha, lida com o tempo.

BD - Por falar em feminino, como está sendo a gravidez? Ela alterou algo no seu ofício ou no seu processo de criação? Tiê, Fernanda Takai e Paula Toller, por exemplo, acabaram compondo canções a partir dessa experiência... 

Ava Rocha – Para começar, acho que estou cantando melhor, parece que estou no mundo de um outro jeito e isto me ajuda a cantar, a estar, a ser... é uma outra sensação. Também estou muito inspirada e reflexiva. É muito difícil passar por esta fase de forma indiferente. Isso não quer dizer que as coisas estão diretamente ligadas à gravidez. Mas acabei de dirigir um clipe com o meu irmão, o Eryk Rocha, da canção “Filha da Ira” que é uma homenagem à minha filha, que vai se chamar Uma. Antes mesmo de engravidar, fiz uma canção [ainda inédita] para ela. Um dia, quando você escutar, você vai entender... Fora isso, é um momento de muito amor na minha vida, onde eu e meu marido [o músico Negro Leo] nos preparamos para a chegada de Uma, além de estarmos vivenciando uma união criativa muito intensa.

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