olhando o movimento


fotos: daryan dornelles

Mesmo que a cada dia mais indefinível, a MPB sempre se caracterizou pela mistura indiscriminada dos mais diversos gêneros musicais. Esta fórmula, levada às últimas conseqüências pelo movimento tropicalista, vem servindo, ao longo dos últimos 50 anos, às gerações de artistas que, em busca de uma identidade, se apropriam e aglutinam estilos musicais que variam do samba à música eletrônica, do baião ao rock'n'roll. Em 1972, sob forte influência da Tropicália, os Novos Baianos reafirmaram o caráter híbrido de nossa música ao lançarem o clássico “Acabou Chorare”, um dos mais importantes álbuns da história da MPB. Nos anos 80, mesmo com o predomínio do pop rock, foi a vez dos pernambucanos Lenine e Lula Queiroga lançarem “Baque solto” (PolyGram, 1983). O disco, ainda que pouco conhecido, deu continuidade às experimentações musicais das décadas anteriores e, em certa medida, trouxe alguns elementos que caracterizariam, em seguida, o manguebeat. Este, por sua vez, tornou-se uma das principais influencias para a cena musical contemporânea, em especial a desenvolvida por artistas independentes.
Após a rápida passagem pela PolyGram, Lula, radicado no Rio desde 1980, voltou à Recife. Lá, trabalhou por algum tempo em agências de publicidade até abrir sua produtora, Luni, onde realiza filmes, trilhas para cinema, comerciais e programas para TV. Em 1998, “A ponte”, composição sua e de Lenine, ganhou o prêmio Sharp de “Melhor Música”. Três anos depois, Lula finalmente voltou aos estúdios, lançando pela gravadora Trama seu primeiro disco solo, “Aboiando a vaca mecânica”. Por conta deste trabalho, recebeu em 2002 o prêmio de “Melhor Compositor”, na categoria  “Música Popular”, pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). Em 2005, lançou de forma independente o CD  “Azul invisível vermelho cruel e, em parceria com Zé Renato, compôs A moça na janela, participando do Festival Cultura, da TV Cultura de São Paulo, onde classificou-se em terceiro lugar. Foi responsável pela produção e direção, junto aos cineastas Leo Crivellare e Roberto Berliner, do premiado documentário “Pindorama, a verdadeira história dos sete anões”(2007), sendo também autor de sua trilha sonora. Em 2009, Lula lançou seu terceiro e elogiado disco, “Tem juízo mas não usa e, em 2011, Todo dia é o fim do mundo.
Gravado por grandes nomes como Ney Matogrosso, Milton Nascimento, Maria Rita, Teresa Cristina, Zizi Possi, Elba Ramalho, Pedro Luís e a Parede, e Zélia Duncan, Lula Queiroga se tornou um dos mais importantes compositores da música popular brasileira. Ao longo de sua carreira, o artista nunca se absteve de dialogar com colegas de outras gerações, formando parcerias e se agregando aos jovens artistas da cena pernambucana, como Lirinha, China, Cannibal (Devotos), Fábio Trummer (Eddie) e a banda Nação Zumbi, além do paulistano Marcelo Jeneci.
Por conta disto, Lula Queiroga é uma das figuras mais importantes para a compreensão do atual momento da música brasileira. Poucos acompanharam de tão perto as reviravoltas da indústria fonográfica e conseguiram se manter ativos em um cenário que, até bem pouco tempo, era bastante inóspito para o artista independente. De passagem pelo Rio com a turnê de seu último álbum, Lula recebeu o Banda Desenhada  em seu apartamento na praia de Botafogo e nos falou, entre outras coisas, de sua carreira e da interação com os artistas da neoMPB:

BD – Você e Lenine, ainda em dupla, presenciaram o crescimento e a crise da indústria fonográfica. Como foi o período em que estiveram em uma major?

Lula Queiroga – Não chegamos a formar uma dupla. Tocávamos juntos, mas, na verdade, éramos dois artistas que conseguiram um espaço em uma grande gravadora. Eu brincava muito com o Kleiton e Kledir, dizendo: “Véio, vocês é que são dupla, a gente é doido!”. [Risos]. Na verdade eu era muito novo e fiquei abestalhado quando me disseram: “Ó, vocês vão gravar neste estúdio aqui. Ele é flutuante, com molas em baixo!”. Daí a pouco, Peter Gabriel estava ao meu lado! A gente gravava no estúdio maior e ele no menor! Fizemos uns 90 e poucos shows e, no início, a gravadora ajudou. Mas daí a pouco, começou a pedir penico e tivemos problemas. Até então, vínhamos lidando com o Menescal [músico e diretor artístico da PolyGram entre 1971 e 1986]. De repente, o tiraram e colocaram um holandês, o Cor Van Dyke! O cara não tinha a mínima noção de nada do Brasil. O disco solo que cada um iria gravar se transformou em um compacto. A coisa começou a ficar estranha: “Ah, vai ter um showzinho de lançamento, mas não vai ter mais a grana para a divulgação”... E como iriam  pagar o jabá? Porque na época era assim. Toda a estrutura era muito cara. E aí saímos. Fiquei muito chateado... estava tão forte a história toda... eu trabalhava como redator nos programas do Chico Anísio e  do [Renato] Aragão e não queria que a minha música fosse contaminada com essa história de “vamos fazer um negócio pra vender!”. Não, primeiro eu faço, depois vejo pra quem vendo! Havia invertido o eixo, sabe? Vimos muitos artistas desavisados entrando neste jogo. No nosso caso, seria impossível. Prometi para mim que só gravaria novamente quando tivesse o meu estúdio. Caso contrário, não gravaria nunca mais, iria ser feliz como bancário! [Risos]. Nesse meio tempo, enquanto esperava o estúdio ficar pronto, comecei a fazer outras coisas: filmes, jingles, trilhas...

BD – Muitos jornalistas já comentaram que é uma injustiça você não ter feito um estrondoso sucesso até hoje. Existe algum rancor da sua parte por conta disto? 

Lula Queiroga – Mas isso é a vida, né cara? Será que eu quero esse sucesso? [Risos]. É lógico que você quer ser reconhecido, que a sua música vá mais longe. Este ano eu resolvi investir nisto. Dar esta mergulhada. Vou tocar em tudo que é canto. Até por conta da banda. Quanto mais tocamos, mais fica legal, mais o som fica definido, e faz bem, né? A gente trabalha pra caralho pra chegar ali e fazer aquela uma hora e meia de show, é a maior emoção, e quando acaba, fica um vazio. Dá vontade de perguntar para a platéia: “Pô... Vocês vão pra onde? Fiquem aí! Ou então me levem!” [Gargalhadas].

BD – E como você lidou com as mudanças do mercado? Imagino que tenha ficado um pouco impactado quando as vendas de CDs começaram a despencar, não?

Lula Queiroga – Eu não dependo de maneira nenhuma da venda de CDs. Para mim, disco é para dar de presente. A gente faz as tiragens, a Fnac compra uma parte, a [Livraria] Cultura compra a outra e pronto. Já não existem mais lojas de disco. Em Recife tem uma chamada Passa Disco que é bem famosa. Mas só tem ela, porque as outras todas faliram. A Modern Sound aqui no Rio, por exemplo, fechou. Agora só tem a Tracks, lá no Baixo Gávea. Nem como mídia de transporte o CD vale mais. Eu gosto do objeto físico, gosto de encarte, mas hoje você compra por dois reais um disco pirata e o cara ainda tem margem de lucro! E nêgo quer vender disco a 35 reais?! Aí pesa no orçamento. Os preços afastaram as pessoas. Essa história de comprar disco, não existe mais. Se a pessoa gosta muito, é um diletante, um neófito, vai correr atrás, mas tem que ter poder aquisitivo, porque é muito caro. Em Belém do Pará, nêgo vende um disco com 300 músicas em mp3! O cara ouve, bota no aparelho e está tudo certo. Lancei meu disco anterior, o “Tem juízo mas não usa”, em pen drive e foi muito bacana.

BD – Mas é nítido que houve uma grande preocupação com a arte do “Todo dia é o fim do mundo”. Como fez este CD? Deve ter saído um pouco caro...

Lula Queiroga – Tive apoio do sistema de incentivo da cidade do Recife. Foi uma grana pequena, mas que ajudou a pagar os custos. Eu quis fazer um CD bacana, sabe? A primeira tiragem se esgotou rapidinho. Usamos um tipo de papel impermeável. Eu nem sabia! Meu filho derramou, sem querer, uma jarra de suco em cima e ficou intacto! O que fudeu foi a minha calça! [Gargalhadas]. Não estou querendo que as pessoas fiquem jogando o CD em aquário ou piscina não, mas que ele é impermeável isso é. [Risos] Tive uma preocupação em agregar valores, em criar um invólucro atraente, sabe? De resto, as pessoas ouvem baixando. Para as novas gerações o Ipod já é coisa do passado! Quando lançamos o compacto [Presença, 1984], o CD já tinha nascido. Menescal nos mostrou, dizendo: “Ó, isto aqui vai ser o futuro!”. Hoje em dia, é coisa do passado. Adoro novas tecnologias. Elas não me espantam. Sei que as mudanças estão sendo cada vez mais rápidas. Você vê, antigamente, para alguma coisa pegar... demorou bastante para que todo mundo tivesse um CD player ou um videocassete. Hoje, você ouve um negócio num dia, no outro... Enquanto esperava o Todo Dia... chegar da fábrica, chamei um amigo que entende de Facebook para me ajudar na divulgação. Achamos um site gringo e, usando um negócio chamado band page, da Root Music, botamos o stream na página oficial. Uma puta invenção! Só que aquilo havia sido criado há menos de um mês. Hoje, todas as páginas têm! [Risos]. Através do Facebook descobrimos um universo enorme. Fomos publicando na página uma música de cada vez e, em 25 dias, tivemos 33 mil audições em 52 países! Veja só! No painel administrativo descobri que a maior parte das pessoas que curtiu era do sexo feminino e na faixa dos 18 aos 35 anos. Quando é que eu iria saber disso tudo?! Fico me perguntando quem são essas pessoas da Finlândia e da Nova Zelândia que ouviram. Tivemos 250 audições de Hong Kong! Mas o grosso mesmo veio daqui. E ainda dá para saber se é de São Paulo, do Rio...  e aí, quando fizemos o show de lançamento, em Recife, as pessoas já sabiam as letras!

BD –Você está bastante entusiasmado com as redes sociais e as novas tecnologias. De alguma forma isto repercutiu na produção do “Todo dia é o fim do mundo”?

Lula Queiroga – Eu convivo muito bem com a tecnologia, mas este disco é bastante analógico. Quando havia a necessidade de um novo timbre, íamos buscar em coisas que estavam aqui, em um extintor de incêndio, em colheres, em uma lâmina de aço...  reprocessávamos o som, mas partíamos de uma referência mais concreta. Depois é que trabalhávamos com o eletrônico. Botamos a bateria na escada e a gravamos com dois microfones cruzados, só o pedal do bumbo e mais nada. Usamos  guitarra desligada e gravada direto do microfone! Dá outro som, parece um cravo. É muito bacana essa história de você criar sons até chegar a um timbre. Os meninos do Rappa, Marcelo e Marco Lobato escutaram o som e acrescentaram violão dobro e harmônio, tudo tocado. Assim como Jeneci e Vitor Araújo. Também fizemos umas coisas diferentes dos outros discos. Yuri [Queiroga], que produziu comigo, e P.G., que gravou e mixou, foram importantíssimos nessa parte. Não saímos gravando. A gente gravava e limpava, gravava e limpava. Tirávamos todas as impurezas que não queríamos e deixávamos outras. Meus respiros estão todos lá. Eles também fazem parte das músicas. Este mergulho, esta dedicação, foi fundamental para a realização do álbum. Voltava para casa e quando tentava dormir, ficava pensando: “Aquela letra ainda não ficou legal, acho que a palavra não é aquela...tem uma hora que a minha voz está pedante... vou regravar tudo!”. E quando dava por mim, já era de manhã! Cheguei a tomar remédio pra dormir! Nas letras, trabalhei muito o meu lado cronista. Quis contar histórias. “Os Culpados” [Lula Queiroga / Yuri Queiroga] aborda a tomada do Alemão. Na verdade a gente tinha feito a música, só não havia a letra: “Aonde vão os filhos/Que viraram vapor?/Fugindo feito rato/Em meio à chuva de bala”. A imagem daquelas pessoas... No meio, eu coloco um pai dizendo: “Fuja, filho meu, que a luz divina te guarda/Foge pelo esgoto onde você cresceu”... No final: “E a população procura em vão/Os culpados”. Aquela situação foi tão louca: milícias, bandidos, a população aplaudindo e daqui a pouco chorando... Minhas letras não são tão óbvias como: ”Vem meu amor que eu vou te pegar, te amar, que delícia”. [Risos]. Mesmo quando são letras de amor, tento ver a situação por outro prisma, de uma forma diferente. No meu caso acho essencial ter este cuidado. No decorrer do show, inclusive com músicas de outros discos, o público vai prestando atenção e começa a entender que tudo ali é interligado. E vibra! Como vou muito à beira do palco, olho para a cara de cada um, faço um contato. É diferente de você sair tocando uns mantras malucos e todo mundo ficar dançando doidão. 


BD – Vendo suas novas parcerias e os músicos com quem vem tocando, dá para perceber que  está bastante confortável e integrado à atual geração. Não há nenhuma dificuldade no diálogo entre você e os novos nomes da música popular?

Lula Queiroga – É, não tem isto não. Por exemplo, sou amigão do Cannibal, do Devotos, uma banda de hardcore. Já fizemos algumas coisas juntos. A idade não é uma questão. Conheço o Cannibal há mais de 15 anos. O Otto eu conheço há uns 20! Quando ele ainda era do Mundo Livre e eu estava voltando para Recife. Fui trabalhar em uma agência de propaganda e depois fundei com minha mulher [Danielle Hoover] a nossa produtora, a Luni. Todo mundo passou por lá. O Mombojó fez toda a pré-produção do “Homem-Espuma” [2006] em nosso estúdio. O primeiro emprego do Felipe S foi na Luni. É uma troca bacana que acaba melhorando e fortalecendo a cena, em todos os aspectos... e isto vale para aqui também. Posada [e o Clã] vai abrir o show da gente no Circo Voador. Da última vez que estive no Rio, foi o Nervoso. É um intercâmbio natural. Eu não vejo exatamente a idade das pessoas. A idade está nas ideias. Tem gente novinha que já é velha! Em Pernambuco todo mundo é muito irrequieto. No ano passado, foi lançada uma leva enorme de discos de artistas de lá [Karina Buhr, Eddie, Siba, Mundo Livre S/A, Junio Barreto, Tibério Azul, China, etc.]. E nestes últimos anos, São Paulo absorveu muito do que vem sendo feito em Pernambuco. 

BD – Desde os anos 90, Pernambuco se tornou um celeiro de novos nomes da MPB...

Lula Queiroga – Na verdade, Pernambuco é um pouco reserva. Têm coisas que, mesmo pesquisando, só conheci agora! Fui ver um negócio chamado samba de velho quebrado. Só tem em uma ilha, perto de Petrolina, no [rio] São Francisco. Quem dança são os velhos. Este tipo de acervo cultural ainda é muito preservado em Pernambuco e acaba nos dando um tônus, um vigor, que é bastante visível nos trabalhos dos artistas de lá. E não só na música, mas também na dança, na moda e no cinema. Existe uma relação entre o tradicional e o novo que faz com que a produção cultural pernambucana tenha uma pureza de atitude.Você identifica: “Este negócio aqui... acho que é de Pernambuco!”. Já nos grandes centros culturas há um hibridismo muito grande. Entretanto, justamente pelo estado não ser o grande centro propagador e difusor, muitos artistas continuam necessitando vir pra cá para desenvolverem suas carreiras... Eu, (DJ) Dolores, Fred Zero Quatro e Silvério Pessoa, por exemplo, conseguimos fazer de Recife a nossa base. Já temos uma vida estabelecida por lá. Mas agora você vê: A galera da Nação não tem como ficar. Se eles não tivessem ido para São Paulo, ficaria muito difícil dar continuidade ao trabalho. E existem outros diversos casos. Mesmo com internet e as redes sociais divulgando, na hora de contratar o papo é sempre o mesmo: “Ah, ta lá em Recife? Tá longe! Não vou pagar passagem de avião!”. 

BD – Você falou de São Paulo... A cena pernambucana e a cearense, mais especificamente o Cidadão Instigado, parecem ser as maiores responsáveis pelo que vem sendo produzido nos últimos anos na capital paulista...

Lula Queiroga – Pois é, Catatau está em todas, um superguitarrista, totalmente apaixonado pelo seu ofício. Ele pode ficar sem falar uma palavra durante uma conversa inteira, mas se você disser: “Véio, eu vi uma Fender Mustang 66 em ótimo estado!”, ele vai dar um pulo e perguntar: “Aonde?!”. Assim como Siba e Lirinha, ele não é uma pessoa falante, que chegue aos lugares e saia agitando. E isto é muito bacana. Porque a pessoa tímida tem que ser muito talentosa para conquistar o seu devido espaço. Vide Junio Barreto, Fabinho [Eddie]... eles têm essa coisa meio cismada, as vezes.

BD – E como era a sua relação com a Nação Zumbi?

Lula Queiroga – Para mim, a Nação Zumbi é a melhor banda do mundo! A questão de timbre, de desenho sonoro, é muito interessante... Durante um tempo, o Pupillo [baterista e percussionista da  Nação Zumbi] tocou com a gente. A história de Chico foi muito forte para ele, sabe? Deu uma sacudida... 

BD – A história, como assim? A morte?

Lula Queiroga – Sim, a morte. Inclusive, dei a notícia sem querer. Eu estava em um lugar, tinha acabado de saber e encontrei o pessoal. Quando Pupillo chegou, perguntei: “E aí, como foi lá no hospital, cara?”. Ele não sabia de nada: “Hospital? O que aconteceu?!”. Tive que falar: “Você não está sabendo não? Chico morreu”. Ele parou, zerou-se... se afastou um pouco, voltou e perguntou: “Quando?”, eu: “Ainda agora, saiu no jornal da tv e tudo”.  Ele ficou... [faz uma pequena pausa] O Pupillo tinha tatuado “Chico” no braço. Ele dizia que agora a Nação iria ganhar o mundo. Todos ficaram desorientados. Chico era um grande articulador. Era muito generoso e cuidadoso com as suas relações. Um conciliador, na verdade. Fazia de tudo para que as coisas dessem certo. Estava sempre disponível e com bom humor. Um grande artista. O enterro dele foi um negócio bem absurdo. Era uma enorme festa e havia um cara morto ali. Todo mundo gritando! Foi a primeira vez que vi alguém com uma indumentária local, de mangueboy: um chapeuzinho de palha, sandália e bermuda. Vi hordas de mangueboys chegando ao enterro. Nêgo se veste de Madonna, Michael Jackson, de não sei o quê... agora, de uma figura local... acho que da última vez que isso aconteceu foi com Luiz Gonzaga. 


BD – Direta ou indiretamente, o manguebeat iniciou um processo que acabou dando visibilidade a diversas cenas independentes do Norte e Nordeste, não?

Lula Queiroga – Sim. Em Pernambuco e na Bahia têm uma galera enorme. Na Paraíba também tem um monte de gente legal. Tem um cara chamado Sacal. É muito bom! Chico César é bom pra caralho! Faz música de todo tipo, de rock’n’roll à música romântica. É muito antenado com tudo. Agora ele é secretário de cultura do Estado da Paraíba. Antes, estava um caos total. Tiveram que chamar alguém que pudesse dar um jeito naquilo. Há pouco tempo, Chico foi categórico: “Na Paraíba não se toca mais forró de plástico! Estamos aqui para amparar quem precisa e não para dar dinheiro a megaempresas”. Já no Ceará teve o Cidadão Instigado. E agora vem o Pará, com a Gaby Amarantos. O engraçado é que a música que ela canta, “Xirley”, é do Zé Cafofinho e suas Correntes, que é uma banda pernambucana. Acho muito interessante ver como as coisas todas terminam se misturando.

BD – Você é reconhecido pela qualidade de suas músicas. Entretanto, volta e meia ouve-se o comentário que esta nova geração está aquém das anteriores ou que haveria uma crise na composição. O que você acha?

Lula Queiroga – Para mim, não existe esse negócio de música melhor que outra. O Zé Renato, que é meu parceiro, me induziu a participar do Festival da Cultura [2005]. Ficamos em terceiro lugar. Aí vieram me entrevistar e eu disse: “Em primeiro lugar, eu sou contra festival de música a nível nacional!”. [Risos]. Festival bacana é do interior porque realmente estimula a música daquela região. Mas botar música pra brigar em cadeia nacional? Eu discordo completamente disto. O importante é você construir uma obra e não ganhar um prêmio por conta de uma música apenas... Antigamente, achava que tudo poderia ser dividido em dois grupos: o dos bonitos e o dos feios. Depois, vendo a história, acabei descobrindo que o que realmente existe é o verdadeiro e o falso. Não adianta que não desce quando você vê que é armação, que você é a presa da vez... Mais importante que a beleza, é a sinceridade. E também as descobertas, as coisas novas que você ouve. Tudo isto vai se fundindo, calcificando em sua mente, e depois você recolhe o que acha interessante e coloca em seu trabalho... Às vezes, mando minhas músicas para alguns artistas. Na verdade, voltei a mandar, porque durante um tempo fiquei achando que era meio impositivo fazer isto. Parece que a pessoa é obrigada a te gravar. Havia certo nível de constrangimento. Agora tirei isto da minha cabeça. Mas vejo que tem muita gente que prefere gravar as minhas canções mais redondas. Acho que tem muito disto, de costume, de não querer arriscar.

BD – Por falar em descobertas, ou melhor, em redescobertas, a jovem guarda e o brega se tornaram importantes referências para a música produzida atualmente.

Lula Queiroga – Pois é! É a volta do iê, iê, iê! Em alguns casos sinto que é bem natural, mas em outros soa um pouco forçado. Acho muito bacana, adoro Reginaldo Rossi, Márcio Greyck... Gosto muito deste tipo de música, minha mãe gostava de cantar e eu ouvia no rádio desde pequenininho. Está muito ligado à minha memória sentimental. Mas algumas composições de hoje são retrô demais, é muito pré-Martinha! [Risos]. Acabam se tornando plastificadas, sabe? Mero rótulo. Não é possível ficar somente em um romantismo de palavras banais, é preciso enriquecer aquilo ali, acrescentar alguma coisa. 




3 Responses to olhando o movimento

  1. Lula é incrivelmente incrível. E bate uma felicidade vendo o BD assim, crescendo mais e mais a cada dia.

  2. Como devem imaginar, já li inúmeras entrevistas com meu pai, mas essa foi uma das mais interessantes.

    Parabéns.

  3. Palavra chave para Lula é sinceridade musical... Fantástico!!!

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