samba tarja preta


fotos: daryan dornelles

Agregadora. Esta é muito provavelmente a melhor palavra para designar a atual produção musical brasileira. Muito por conta da severa crise por que passa o mercado fonográfico, surgiu nos últimos anos, mais acentuadamente em São Paulo, uma nova e diversificada geração de artistas independentes cujos trabalhos vêm se caracterizando pela intensa cooperação de instrumentistas e produtores. Estes, se tornaram responsáveis por fomentar o diálogo entre os representantes desta nova cena, criando, ainda que de forma tênue, perceptíveis afinidades estéticas. Assim, Fernando Catatau, Gustavo Ruiz, Régis Damasceno, Guilherme Held, Dustan Gallas, Marcelo Cabral, Kassin, Pedro Sá, Thiago França, entre outros, vêm afirmando com seus trabalhos o caráter colaborativo da nova música brasileira.
Proveniente das rodas de choro e das noitadas de gafieira, o saxofonista Thiago França já se apresentou ao lado de grandes nomes como Nelson Sargento, Beth Carvalho e Roberto Silva. Em 2009, lançou seu primeiro álbum solo, “Na Gafieira”, ainda sob forte influência do samba. Entretanto, foi ao lado de Kiko Dinucci, Romulo Fróes, Rodrigo Campos, Juçara Marçal e Marcelo Cabral que o músico mineiro encontrou o espaço que buscava para dar vazão as suas experimentações, flertando com diversos gêneros como jazz, funk, música latina, afrobeat, rap e punk. Assim, em 2011, Thiago lançou, em parceria com Kiko Dinucci e Juçara Marçal, o elogiado Metá Metá. No mesmo ano, dessa vez com Marcelo Cabral e Tony Gordin, o saxofonista promoveu o álbum de seu projeto MarginalS. Mais recentemente, acompanhado de Kiko Dinucci, Marcelo Cabral, Samba Ossalê e Pimpa (Wellington Moreira), Thiago desenvolveu o Sambanzo, lançando este ano o álbum “Etiópia”. Em meio a tantos projetos, o músico ainda encontra disposição para participar de shows e gravações de seus colegas de geração, desde seus parceiros mais constantes, como Romulo Fróes e Rodrigo Campos, até artistas de outras searas, como Criolo, Gui Amabis, CéU e Lurdez da Luz.
Figura extremamente atuante na musica contemporânea brasileira, Thiago esteve de passagem pelo Rio acompanhando a turnê “Nó Na Orelha” de Criolo. O Banda Desenhada aproveitou a oportunidade para convidá-lo para esta entrevista onde nos contou de sua carreira, projetos, a relação com o samba e as religiões afro-brasileiras.

BD – Além de ser um projeto de música instrumental e experimental, as músicas do MarginalS não têm título... Você deve ter bastante dificuldade para divulgá-lo e viabilizar shows, não?

Thiago França – Pois é, o MarginalS é totalmente improvisado e experimental, não tem tema, não tem nada. É engraçado você falar isso... No lançamento do Sambanzo, terça-feira passada, eu comentei: “Pô, gente, vamos encerrar o show agora porque música instrumental é muito cansativa, muito longa e chata”! E o pessoal: “Não! Tá maluco”?! [Risos]. Na mesma semana, por coincidência, saiu no Estadão a resenha do disco do Marcelo Monteiro, que também é saxofonista. O texto toca justamente nesse assunto, do novo momento da música instrumental brasileira, distante da chatice, do virtuosismo banalizado e gratuito, distante daquela imagem do músico loser que sempre reclama da vida. Diz também que se as pessoas não têm interesse pelo que você está fazendo, o problema é seu. E é mesmo. A música instrumental tem essa coisa de correr atrás do próprio rabo. Você não tem limite de até onde pode ir com a sua técnica e é muito fácil se perder: “Agora vou tocar mais notas, agora vou tocar mais rápido”... É um negócio masculino demais! Coisa de primata medindo pau! [Gargalhadas]. Se você reparar, a partir dos anos 60, os grandes instrumentistas que surgiram eram exclusivamente improvisadores. Nêgo gravava disco de hard bop com músicas de 10 minutos com temas de 20 segundos! [Canta rapidamente uma melodia]. E daí improvisa o restante da música! AAAH! Bicho, não dá. Isso é coisa de americano, tem a ver com a personalidade dos caras. Aqui não funciona, aqui a gente faz as coisas no coletivo. Imagina uma escola de samba nos Estados Unidos! Não ia dar! Colocar trezentos caras para tocar e cada um tendo seu tempo de improviso! Ia ser um desastre. Além disso, no meu caso, tenho um olhar que passa pela canção. Venho das rodas de choro, fiz muito baile, tocando para as pessoas dançarem. E sempre me preocupei com o repertório: “Que música dá certo? Que música é legal de se tocar? Por que é legal”? E comecei a entender isto, a questão estrutural, melódica... a construção de um repertório para a noite, a sequência das músicas. Através delas você conta uma história, conduz o público. E isso sempre me fascinou. Quando ouvi pela primeira vez o disco novo ["Bahia Fantástica"] do Rodrigo [Campos], instintivamente comecei a reordenar as canções. Aí mandei um e-mail pra ele: “Rodrigo, desculpe a ousadia, mas veja o que você acha disto aqui”. E ele curtiu muito! Sempre gostei de fazer isso, sabe?

BD – O Sambazo parece se encaixar bem nessa ideia...

Thiago França – No Sanbanzo, por exemplo, demorei bastante para azeitar o groove de “Tilanguero”. Eu queria encaixar uma melodia... Até que uma hora veio a parte B assim: [cantarola] “parapaparapáááára”. A música inteira é só esse negócio: [cantarola] “pááááára”. O resto é complemento. E é do caralho, porque ali existe uma história, uma chamada para dançar, meio vulgarzona. Coisa de povão mesmo, sabe? De sacanagem, de mexer com o corpo. E é muito louco porque quando a gente começa a tocar e eu faço o [cantarola novamente] “parapaparapáááára”, sempre escuto uns gritinhos! A música tem isso mesmo, tem essa sacanagem.

BD – O Sanbanzo tem um clima de gafieira. Você já tocou bastante nesse ambiente, não?

Thiago França – Aqui no Rio, toquei muito com o Zé da Velha e o Silvério Pontes. Conheci o Silvério no final de 2006. Em 2007 e 2008 vinha quase todo mês pra cá e ficava uma semana com os caras, fazendo Rio Scenarium, Democráticos... E tocava em São Paulo também. O meu lance sempre foi esse. Sempre gostei de tocar para as pessoas dançarem. Foi um pouco louco... A gente nunca sabe exatamente o momento em que se torna profissional. Quando você deixa de ser o moleque que estuda e toca, ganhando uns trocados pra pagar um guaraná, e se torna um cara que ganha extremamente mal! [Risos]. Não dá para saber exatamente o momento...

BD – Mas você já passou também desta segunda fase, não? [Risos].

Thiago França – Graças a Deus já sou um cara que só ganha mal. [Risos]. Quando entrei pra Unicamp, pro curso de Música Popular, fui procurar por minha turma. Os caras com quem fui morar se tornaram grandes amigos meus, até hoje. Mas o curso era um negócio horrível! Havia um tal de canjão onde pegavam três pra Cristo, um batera, um baixista e um guitarrista, para acompanhar um bando de neguinho solando! E aí ficava uma fila, cada um abraçado ao seu instrumento esperando a hora de tocar! Quando chegava a sua vez, você puxava um tema e começava a improvisar por uns vinte minutos! Aquilo ali era a vida dos caras. A única chance de tocar no mês inteiro! Eu pensei: “Se continuar aqui vou ficar amargurado, rancoroso, falando mal de todo mundo e não vou tocar. E o que eu quero é tocar! Vá todo mundo se fuder”! Aí conheci uns caras e passei a tocar com eles nas festas da Moradia Estudantil da Unicamp. Fazíamos um bailão, tocando Gilberto Gil, Djavan, aquelas coisas manjadas, mas que eram o maior barato. Um repertório pra baile mesmo, com uns funkzinhos, uns grooves, um negócio mais brazuca... E a coisa acontecia! Conseguia tocar e todo mundo se divertia. Então, a música instrumental veio até mim através disso, de uma forma agregadora, coletiva, promovendo o encontro. É meio piegas, mas acho que a música tem uma função social. Eu fico vendo... Hoje em dia, as pessoas estão cada vez mais sozinhas, se achando autossuficientes... Cara, eu me sinto na obrigação de fazer música para tocar essas pessoas, para que elas se encontrem, se conheçam e se desejem. Acho muito sem vida essa história de música instrumental em teatro, com holofotes e solistas. Isso imprime uma distância entre a sua música e o público. Nunca gostei, nunca quis isso pra mim. Fazer música, mesmo que cantada, já é difícil pra caralho. Aí o cara resolve fazer uma música instrumental que não pode ter suingue nem ter uma melodia um pouco menos complicada! Acha que vai estar apelando! Porra, a música acaba virando uma piada interna! Porque não é só difícil para o público, é difícil até para o cara que está do seu lado tocando! Não tem como não ser um desastre. 



BD – Além da influência da gafieira, li que você tocou em uma banda punk. É isso mesmo?

Thiago França – É verdade. Mas tenho que tomar cuidado porque senão eu arrumo problema com o Kiko. [Risos]. O Holly Tree era uma banda de punk rock considerada de playboys, de três moleques de um colégio dos Jardins onde eu também estudava!

BD – Ah, está explicada a implicância do Kiko! [Risos]. Mas você tocava o quê?! 

Thiago França – Saxofone! Na verdade, eu não era da banda, só fazia participações. Foi uma das minhas primeiras experiências de palco e gravação. Entrava e tocava uns skazinhos com eles. Era divertido. Sempre toquei de tudo. Estava com uns 16 anos e tocava também com outro maluco do colégio em uma dupla sertaneja! Tive uma banda de pop rock junto com o professor de redação e ainda tocava com outro cara que gostava de bossa nova. A gente se encontranva no recreio e também se apresentava todo domingo na igreja do colégio, na missa das sete. [Risos].

BD – Rapaz eclético! [Risos]. É legal perceber que em São Paulo existe essa troca entre os músicos de diferentes gêneros: você integrando a banda do Criolo, Fabiana Cozza gravando e fazendo participações nos shows do Emicida, a Lurdez da Luz participando do álbum do Kiko... Aqui no Rio a tradição do samba possui um peso que torna difícil este diálogo.

Thiago França – Eu tô ligado, vivi isso pra caralho. Fiquei de 2001 até 2008 tocando exclusivamente samba e choro. Foi o trampo que deu certo. Tinha demanda. As pessoas estavam voltando a ouvir samba na noite e várias casas de show foram abertas. Mas esse período foi muito difícil para mim. É muito louco... Hoje em dia é possível viver de música, só que, por conta disso, as pessoas deixaram de ser criativas. Um músico com vinte anos de idade já pode ser profissional e ganhar dinheiro com isso. E aí fica dividido entre querer experimentar e ganhar uma grana... Fica naquela: “Putz, vamos zoar? Vamos experimentar isso aqui”? Mas aí alguém fala: “Ah, não, vai que o público não gosta, vai que o dono da casa acha ruim e põe a gente pra fora”?  Ou então “Não, isso aqui sempre deu certo, não vamos mexer não”. Até hoje tem gente fazendo samba falando de pandeiro, tamborim e batucada até o sol raiar! Tem uns moleques de vinte anos lá em São Paulo que, bicho, os caras parecem velhos! Eu, com 31 sou muito mais jovem do que era há seis anos. Porque a nóia da sobrevivência já passou. Foi por isso que me distanciei do samba. O samba é maravilhoso, amo de paixão. Agora, o sambista...

BD – E como você foi parar no rap? Além de integrar a banda do Criolo, você já trabalhou com a Lurdez da Luz...

Thiago França – Enquanto gravávamos o Metá Metá no [estúdio] El Rocha, o [Marcelo] Cabral, que tocava com a gente no Ó do Borogodó, e o Ganja [Daniel Ganjaman] produziam o disco do Criolo na sala ao lado. Como há dois anos a única coisa que fazia da vida era arranjo para gafieira, me chamaram para fazer um no disco do Criolo. Mas não era uma ideia do tipo “A Procura da Batida Perfeita”, sabe? Juntar o samba com o rap. Não! Era pra ser um samba mesmo!  Mas, na real, a minha primeira experiência de tocar rap foi com o Sombra, do SNJ, através do Kiko. Os dois são de Guarulhos. 


BD – Tanto você quanto o Romulo, Kiko, Rodrigo e Juçara têm como principal característica a intensa experimentação musical. Além de retrabalharem o samba, alguns de vocês vêm renovando a temática religiosa afro-brasileira. Como se deu esse encontro e a percepção dessas afinidades?

Thiago França – A amizade foi surgindo aos poucos. Conheci o Rodrigo e o Cabral em 2004, mas só fui reencontrar o Rodrigo em 2006. Já o Cabral, eu nem sabia que era músico. Só fomos tocar juntos uns cinco anos depois. O Kiko eu conheci em 2007 e o Romulo em 2009. A amizade foi rolando... e, com o tempo, a gente começou a se soltar e a falar coisas que até então tinha medo de dizer por achar que ninguém entenderia, mas aí um virava e mandava: “Pode crer, eu acho isso também”! Quando chegou 2010, o Carnaval caiu em março e teve a Copa do Mundo e eleição! Ninguém trabalhou, ninguém fez porra nenhuma! Na época da Copa eu ficava o dia inteiro em casa assistindo jogo! Se não fosse a gafieira nas segundas-feiras, nem teria tocado naquele mês! Então a gente acabava se encontrando pra almoçar, pra tomar umas cervejas, ir ao cinema... E foi isso. Fazendo uma análise mais profunda, havia um pouco de desespero naquilo tudo. Cada um, dentro do nicho em que estava inserido, estava se sentindo sozinho. E você sabe, quando se encontra alguém que está pensando e sentindo o mesmo que você, você agarra, dá a mão e: “Putz, mano! Vamos nóis aí”!Começamos a buscar lugares alternativos para tocar: Casa de Francisca, Serralheria, Tapas, o Sarajevo, que é underground até...

BD – O nome já diz tudo. [Risos].

Thiago França – A gente começou a fazer algumas coisinhas nesses lugares e aos poucos vimos que as nossas ideias eram muito parecidas. Queríamos muito trabalhar, fazer as coisas do nosso jeito. Então, no final de 2010, gravamos o Metá Metá, o disco do Criolo ["Nó Na Orelha"] e o do Romulo ["Um Labirinto Em Cada Pé"], nasceu o MarginalS e participei do disco do Gui Amabis ["Memórias Luso Africanas"]... Tudo isso no mesmo ano, cara! Entre setembro e dezembro! Quando chegou 2011, começamos a por esses trabalhos na rua. E foi dando certo. A gente está cada vez mais se curtindo, curtindo tocar um com outro, trocar idéias, referências... Estamos experimentando, saca? No sentido mais inocente da palavra. Quando você fala de música experimental, vem à cabeça a imagem de um cientista maluco com um monte de máquinas, né? [Risos]. E não é isso. É experimentar no sentido mais puro da palavra. No MarginalS, eu levo para o palco um pedal que acabei de comprar, que nunca usei, e aí fico experimentando! "Loopam" um barulho e a gente vai criando, vai jogando melodia, vai criando texturas. E o resultado é sempre imprevisível. 

BD – Você falou em Gui Amabis... em sua entrevista para o Banda Desenhada cheguei a questioná-lo se este espírito colaborativo dos instrumentistas não caracterizaria, de algum modo, esta geração. Ao participar de tantos álbuns e, invariavelmente, dialogar com todos esses artistas, imagino que você consiga perceber isto mais claramente...

Thiago França – Sim. Acho que o envolvimento com a música é o ponto em comum a todos estes trabalhos. Se você for aos shows vai reparar: não tem partituras em cima do palco! Todos estão muito envolvidos, nós realmente compramos a ideia dos outros e, com isso, temos a oportunidade de tocar de uma forma mais livre, de criar junto... As personalidades afloram, sabe? Você não é simplesmente um músico vestido de preto no fundo do palco. Existe uma experiência mais aprofundada com a sua música e a do outro. Encaro todos os trampos que faço como se fossem meus, porque ali eu não sou um saxofonista, eu sou o Thiago França. Mas me comporto de forma diferente em cada situação. Porque a gente não é uma coisa só. O Sambanzo, por exemplo, é diferente do MarginalS que é totalmente diferente do Metá Metá. Acho que, acima de tudo, há o respeito pela visão do outro. Por exemplo, eu gravei nos discos do Gui e da CéU. Cara, um monte de gente já veio me perguntar: “Pô, mas tocou o quê”? Ninguém estava achando o sax! [Risos]. O Amabis juntou o saxofone com algum sample, colocou teclado e criou aquela amálgama que é a sua marca. Mas, cara, eu confio e admiro tanto o Gui que deixo fazer o que quiser com o meu som. Porque o cara é genial! Nêgo pode não saber que estou ali, mas estou e tô achando da hora. Já o Romulo tem um jeito de pensar muito artes plásticas! [Risos]. Eu me lembro de uma gravação em que ele falou: “Mano, aqui nessa hora você dá a nota mais grave que tiver aí”. Ainda cheguei a argumentar: “Mas Romulo, é outra harmonia, cara! Vai chocar a nota! Vou tocar uma terça menor em cima de um acorde maior?! Tá errado”! Mas ele: “Não, Bicho! Eu quero essa nota grave! Vai dar certo”! O show do Romulo é quase uma instalação! Uma hora o saxofone briga com a guitarra, outra hora a guitarra emula um cavaquinho. Acho que temos essa vontade de trabalhar de uma forma mais orgânica. Porque a técnica hoje já não interessa mais. Não é mais interessante que uma cantora seja extremamente afinada. Até porque o ProTools resolve tudo. Então, vale mais um desafinado com estilo, com personalidade, do que o perfeito forjado, "photoshopado". E existe também uma postura diferente em relação aos shows. Uma coisa que me deixava contrariado quando ia tocar choro era nêgo se vestir igual a contador, com sapato, calça social, camisa pra dentro e cinto! Não havia uma preocupação estética com a apresentação, de você também querer dizer algo com a roupa que está usando. Fui fantasiado de árabe no show do MarginalS, lá no Nublu Fest, porque também queria dar para o público um pouco da fantasia que só é possível de se encontrar através da arte, da música. Não quero fazer uma coisa chata, cheia de regras e muito estruturada. Para mim, a arte tem que ser cada vez mais fantasiosa. 

BD – Li que o "Etiópia" foi gravado em apenas um dia. Imagino que não tenha dado tempo nem de rever o trabalho. Você não ficou um pouco inseguro?

Thiago França – Cara, nós chegamos às onze da manhã, passamos o som, gravamos três músicas, paramos às duas pra comer feijoada, voltamos às quatro e gravamos mais quatro até às sete da noite. Foi isso. Mas o disco do Sambanzo ficou um tempinho guardado. Gravamos em julho do ano passado. Eu queria lançar primeiro o do MarginalS, no nosso aniversário de um ano, em setembro. E, na sequência, tinha o lançamento físico do Metá Metá em outubro e o "Passo Torto" em novembro... então achei melhor guardar o Sambanzo por um tempo, para não tumultuar demais. Ainda tinha a minha agenda de shows com o Criolo e o MarginalS! E, cara, eu precisava dar uma atençãozinha para este disco. Foi por isso que só lancei agora. 

BD – E nesse meio tempo você não teve vontade de rever as gravações? Acrescentar ou mudar alguma coisa? Deve ser tentador...

Thiago França – É que a nossa ideia era essa, sair tocando! O Sambanzo teve uma primeira formação que começou no final de 2008. Eu forçava uma barra, chamando o pessoal que tocava samba comigo pra fazer um negócio diferente. Estava nessa fissura de buscar coisas novas, mas no dia que comprei o EWI...

BD – EWI?!

Thiago França – O EWI é tipo um saxofone midi, gravei com ele no MarginalS, parece um pouco com um teclado. Eu comprei, experimentei e decidi levar para o show. Quando tirei o EWI da caixa, rolaram no chão de rir, achando que eu tinha enlouquecido! Aí pensei assim: “Bom, acho que preciso trocar de galera”. [Risos]. Chegamos a fazer uma experiência em estúdio, gravando o single. Cara, quando o disco ficou pronto e fui ouvir, percebi que não queria nada daquilo, que estava forçando a barra com aquelas pessoas. Então resolvi engavetar. Depois de um tempo, surgiu a oportunidade de um novo show. Pensei: “Pô, beleza! Vamos ganhar uma graninha”! Foi muito curioso porque justamente os músicos que participaram dessa primeira gravação não podiam, só o Cabral e o Samba [Ossalê]. Então resolvi chamar o Kiko. Ele faria as suas loucuras e no final daria tudo certo. E na batera eu chamei o Pimpa, que já tocava com a gente na gafieira. Só tinha visto o Pimpa tocando samba, então não fazia ideia do que poderia acontecer. Mas aí, cara, eu pensei: “Que se foda! Vai dar tudo errado e essa porra de projeto vai pro lixo!” [Risos]. Bicho, foi surreal! Eu saí de lá já com outra data marcada! A gente não fez ensaio, não fez nada, foi uma loucura. Recebi o convite na quinta-feira, falei com os caras na sexta e o show foi no sábado. Não passamos nada. Nada, nada, nada! Os caras chegaram lá sem saber o que iam tocar! Na passagem de som eu virei pro Pimpa e falei assim: “Ah, Pimpa, a gente faz uns sambas, umas coisas meio latinas e uns afrobeats também”... Aí ele falou: “Afro o quê”?! Eu falei: “Afrobeat! Fela Kuti, Tony Allen”! E ele: “Fela o quê?!” [Gargalhadas]. Caralho! Eu entrei na internet pelo celular e mostrei um vídeo. Ele ficou uns dois minutos ouvindo, sentou na bateria e disse: “É mais ou menos isso”? Era completamente diferente! [Gargalhadas]. Mas falei: “É, é isso mesmo”. Cara, o primeiro show do Sanbanzo foi assim, eu virava pro Samba e pro Pimpa e dizia: “Ó, essa é meio latina” e pro Kiko e pro Cabral: “É ré menor”. E a gente saia tocando!

BD – É incrível o vínculo desta geração com o afrobeat. Você, o Bixiga 70, o Abayomy Afrobeat Orquestra... De onde veio esta referência?

Thiago França – Veio do Youtube, cara! Ou você acha que alguém aqui foi à África?! E também não tem nenhum africano na gig [gíria: trabalho, geralmente relacionado à indústria do entretenimento] não! É coisa de rede social, de Facebook e Youtube. Um pôs ali e saíram compartilhando! E o afrobeat é muito foda mesmo! É um puta som louco! Todo mundo viu mais ou menos ao mesmo tempo e resolveu fazer também! E na verdade, acho que as pessoas notaram que o afrobeat é uma saída espetacular para o funk. Se você transformar o seu funkzinho bobinho em um afrobeat, fica do caralho! Ele tem um frescor. Acontece o mesmo com a cumbia, substituindo aquelas levadas prontas de salsa que neguinho faz por aí. E o mais legal é que eles chegam até nós como uma novidade sem formatação. Ninguém veio aqui cagar uma regra, falar o que é afrobeat ou cumbia. A gente põe na nossa panela, mistura e o tempero fica muito louco! Acho que uma das marcas desta geração é essa vontade de descobrir novos sons e compartilhar. A gente fica trocando discos, um manda vídeo pro outro... Nós temos muito mais referências do que todas as outras gerações. Temos um vocabulário musical muito mais amplo. Por isso a dificuldade de sermos classificados. Antigamente, aparecia o rock inglês e nêgo daqui começava a fazer rock inglês. Nos anos 70, nêgo descobriu a discoteca e apareceu um monte de gente fazendo discoteca. E hoje, o Rodrigo [Campos] descobre o Curtis Mayfield, eu o rap, o Cabral a cumbia e o Kiko volta a ouvir punk. E misturamos isso tudo! Vira uma enorme colcha de retalhos em que as partes não são fáceis de se identificar. 


BD – Falando em África, acho ótimo que você, o Kiko, a Juçara, a Fabiana e outros artistas abordem a religiosidade afro-brasileira em suas músicas, ainda mais em uma época de tantos conflitos religiosos no país.

Thiago França – Nós somos macumbeiros mesmo! [Risos]. A gente tem uma inspiração direta por estarmos fazendo aquilo, de mexermos com o santo. A nossa vivência vai influenciar de alguma forma a nossa música. Eu falo como amigo, colega e fã do Kiko: ele tem uma experiência tão verdadeira e tão profunda com a sua religiosidade que consegue falar sobre ela de forma natural. Acho que o samba vive um momento muito estranho. Eu não gosto nem de falar, cara, mas a maioria das coisas que escuto com essa temática parece mais macumba do Zé Carioca! Macumba Walt Disney! Um negócio meio Carmen Mirada! As pessoas têm medo da polêmica, de se expor! Acho que falamos sobre esse assunto com naturalidade porque enxergamos a música de uma forma espiritualizada, não dogmática, e sim como uma energia que conecta você com o outro. Nós buscamos isso. Os shows têm esse momento de extravasar, de por as coisas pra fora.

BD – De uma forma até muito mundana...

Thiago França – Exatamente! Porque gera algo que induz à dança, induz ao transe. Mas, ao mesmo tempo, todos os caras que conheço dos terreiros que frequento, têm um lance de culpa católica exalando pelos poros! Rola certo receio de mexer com isso. Uma ignorância, sabe?  Eu me lembro de uma vez que um cara me apresentou um samba lindo que fez para Obaluaiê, e usou aquela velha tática de fazer um refrãozinho com uma cantiga de santo. Tempo depois, ele gravou um disco e perguntei: “Putz, mano, cadê aquela música”? Sabe o que ele respondeu? “Meu pai de santo proibiu”. Isso é uma puta de uma ignorância! “Não, porque eu vou profanar”... Que profanar o caralho! Não tem nada a ver. Então também tem muito isso dentro do métier, o que acaba dificultando mais ainda as coisas. No início, eu, Kiko e Juçara buscávamos esses temas por conta de pesquisas. Só que fomos nos envolvendo, mas mantendo sempre o discernimento e o olhar crítico. A Juçara já vinha com a experiência de pesquisa que desenvolvia com A Barca... O Kiko se aproximou da religião por conta do documentário [“Dança das Cabaças”], quando começou a visitar os terreiros. Só eu que fui porque estava fudido mesmo! [Risos]. Um amigo que me levou. Aí foi da hora, me senti em casa. Depois comecei a ver a cerimônia por outro foco, mais musical...

BD – É. Porque não tem como separar...

Thiago França – É, não tem como! Se você pegar o ritual e o afrobeat, vai ver que é a mesma coisa! Você está no terreiro, começam a cantar, o pai de santo puxa outra cantiga, repete, às vezes fica meia hora só nela, com os ogans segurando o ritmo enquanto a gente vai e volta fazendo os trabalhos. No afrobeat também! Nas apresentações, o Fela Kuti deixava rolar um solo, ia dançar, depois chamava a mina para dançar com ele... Acho que a grande influência que o Sambanzo tem do afrobeat é essa criação de um ambiente, desse encontro, onde o tocar é apenas uma parte do evento. Queria isso há muito tempo! Estava achando um saco ser saxofonista. Para mim, já era algo do passado. Quando conheci o Kiko, a nossa conexão foi muito forte, as suas músicas abordando a temática dos orixás me permitiu dar outro enfoque ao meu trabalho de instrumentista, de ter um tema que me despertava mais questões estéticas do que técnicas. Então, quando fazemos uma música relacionada à Oxum, eu procuro ser mais fluido, quando falamos de Xangô, procuro ser mais rasgado, mais explosivo. E isso me interessou muito. Porque ficar só na escala é um saco! Foi um puta alívio. E deu muito certo, cara. Nós do Metá Metá fazemos muito bem uns aos outros. Hoje, pensando bem, analisando as nossas primeiras experiências há quatro ou cinco anos, dá para perceber como nós três crescemos! Um encoraja osoutro, um dá força ao outro. Instiga e desafia ao mesmo tempo. Aos poucos os meus improvisos foram ficando mais loucos, começou a ter noise, a não ter mais escala, nem nota! Começou a virar barulho. O Kiko foi mudando o jeito de tocar e aí a Juçara falou: “Mano, o cara tá porrando o violão e o outro tá dando uns puta berro aqui, eu não posso ficar também pra trás”! E começou a se colocar cada vez mais pra fora, sabe? Eu tô feliz pra caralho! As coisas estão acontecendo e eu admiro profundamente os meus amigos. Acho o Kiko, o Romulo e o Rodrigo os maiores compositores do mundo! Assim como a Juçara é a maior cantora do mundo e o Cabral é o maior baixista de todos os tempos! É por achar isso que a gente está fazendo tanta coisa. Estamos em lua de mel. Temos essa vontade de fazer, de produzir, de pôr as coisas na rua. De não se levar tanto a sério. Acho que temos isso, um entendimento espiritual, sabe? De estarmos pondo um monte de coisas pra fora. Não é simplesmente pagar de negão, de brasileiro e cantar pra Xangô: “Caô, Cabecilê”. Não! O Kiko é italiano de Guarulhos, veio do punk! Sou branco, de barba e careca! Saúdo ao meu orixá e quem quiser achar que tá tudo bem, tá tudo bem, e quem não quiser achar também tá tudo bem. Não tem forçação de barra.

BD – E é incrível, porque o resultado é extremamente contemporâneo.

Thiago França – Sim. Acho que o grande serviço que você presta à humanidade é dialogar com o seu tempo, com o que está acontecendo agora, em 2012. Nêgo fica falando dos afrosambas e tal, mas a gente não quer os afrosambas, a gente quer o agora! Eu quero o meu saxofone com pedal! Temos uma postura meio rock’n’roll de chegar lá e descer o cacete! O primeiro ensaio do Sambanzo foi segunda-feira agora. Cara, quando terminou, eu estava encharcado de suor! Não tem essa não! Vamos tocar! Se não for pra tocar pra caralho, volta pra casa! Instrumento é tipo espada de samurai, saiu da bainha, quer sangue! Sangue! Não tem essa! [Gargalhadas]

BD – E os shows? Como estão?
Thiago França – A gente fez uma sequência de shows na mesma semana, tocando com o MarginalS no SESC Pompeia para umas 800 pessoas, com o Criolo para não sei quantas mil e, fechando o domingo, novamente com o MarginalS na Casa do Mancha para 11 pessoas! Eu entendo que cada lugar é um lugar, cada público é um público, sendo grande ou sendo pequeno. O Metá Metá fazendo show para trinta pessoas e tão mágico quanto o Metá Metá na Choperia [do SESC Pompéia] lotada! São momentos diferentes, são situações e emoções diferentes. Às vezes tem um puta cachê, outras vezes não te dão nada! Nem a grana pra pagar a gasolina! Mas, cara, numa boa, cada momento é único e eu quero todos eles. 

comentários - samba tarja preta

  1. andre urso :

    Mais uma grande entrevista do banda desenhada! Ah, se as rolling stones e billboards da vida fossem assim....Parabéns aos dois: entrevistado e entrevistador.

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