filha de janaína com wolverine

fotos: daryan dornelles
Ainda que alguns puristas da música popular torçam o nariz, é fato que o rap há muito faz parte da cultura nacional. Sem ater a certas teorias que remetem a origem do rap brasileiro às cantorias dos repentistas do nordeste ou mesmo a uma ou outra produção do nosso cancioneiro (como a famosa música “Deixa Isso Pra Lá”, de Edson Menezes e Alberto Paz), foi somente na década de 80 que a cultura hip-hop chegou ao país. Importado das comunidades latinas e afro-americanas de Nova York, o rap encontrou nas periferias da cidade de São Paulo um local fértil para se desenvolver e, aos poucos, ganhar sua própria identidade. 
O primeiro disco de rap nacional, lançado pela gravadora Eldorado em 1988, tratava-se na verdade de uma coletânea. Produzido por Nasi e André Jung, então integrantes da banda Ira!, “Hip-Hop Cultura de Rua” contava com as participações de Thaíde & DJ Hum, MC Jack, Código 13 e O Credo. Ainda sofrendo grande discriminação, foi somente na década seguinte que o rap paulistano conseguiu sair de seu gueto e ganhar destaque nas mídias, graças ao trabalho de grupos como Racionais MCs, que obteve enorme repercussão com o seu quarto álbum, “Sobrevivendo no Inferno”, de 1997. Atrelada à dura realidade da periferia, suas letras abordavam temas como miséria, violência e preconceito racial. Neste mesmo período, Pavilhão 9, Face da Morte, Câmbio Negro e Detentos do Rap, entre outros, também conseguiram certa visibilidade nos veículos de comunicação. Entretanto, não foi somente na capital paulistana que o rap se difundiu e ganhou contornos, por assim dizer, mais regionais: no Rio, o Planet Hemp tratou de misturar o gênero com hardcore e funk, posteriormente adicionando até mesmo bossa nova e samba em seu caldeirão de influências; em Pernambuco, Chico Science & Nação Zumbi, ícones do movimento manguebeat, se apropriaram do gênero e o fizeram dialogar com maracatu, funk, rock e música eletrônica. Assim, durante toda a década, diversos artistas passaram a flertar com o rap, amalgamando-o aos mais diversos gêneros e fazendo jus à tão decantada permissividade que caracteriza a música popular brasileira. Assim, na década seguinte, já com seu espaço devidamente conquistado, surgiu uma nova leva de rappers paulistanos: Sabotage, Xis, Negra Li, SNJ, Rappin' Hood, Projota, C4bal, Flora Matos, Lurdez da Luz, Emicida, Criolo, entre outros tantos. Contudo, ainda que tenha dado continuidade à fusão de referências que tão bem caracterizou a década anterior, esta nova geração vem se diferenciando de sua antecessora graças à enorme variação temática de suas composições, excedendo a crítica social e incorporando elementos de nossa cultura popular. Com efeito, viu-se nos último ano a ascensão de Criolo, cujo último trabalho, o incensado “Nó na Orelha” (2010), transcendeu e muito o universo do rap tradicional, abarcando em seu espectro gêneros tão diversos quanto bolero, trip hop,  afrobeat, jazz e dub.
O mesmo pode-se dizer de Lurdez da Luz: conhecida por ter integrado - ao lado de Rodrigo Brandão, Prof. M. Stereo e Dj PG - o projeto Mamelo Sound System, a rapper lançou em 2010 seu disco de estréia, um EP cujo título leva seu próprio nome. Com forte influência de música brasileira, o álbum foi produzido por Daniel Bozzio e pelo baixista Marcelo Cabral, figura importantíssima nos trabalhos de Romulo Fróes, Kiko Dinucci, Rodrigo Campos, entre outros nomes da neoMPB. O disco ainda contou com a presença de Jorge du Peixe, vocalista da Nação Zumbi, e do trompete do jazzista norte-americano Rob Mazurek. Apropriando-se da iconografia pop e lançando-a em um peculiar sincretismo com elementos de nossa cultura, Lurdez da Luz extrapola as fronteiras do hip-hop, tornando-se uma nítida representante da pluralidade da atual música popular brasileira. Assim, versátil, a mc se faz presente em uma infinidade de projetos, como os álbuns “Na Confraria das Sedutoras”(2008), do 3 Na Massa"Na boca dos Outros" (2009), de Kiko Dinucci; e “Ekundayo” (2011), onde trabalhou ao lado de Naná Vasconcelos, Scotty Hard, M. Takara, Guilherme Granado, Rob Mazurek, Rodrigo Brandão e Mike Ladd.
Vindo ao Rio para o Festival Faro MPB, Lurdez foi convidada pelo Banda Desenhada para uma entrevista, onde nos falou sobre o rap paulistano, sua carreira, a neoMPB, políticas culturais  e seus novos projetos:

BD – Como você vê o atual diálogo entre o rap paulistano e a MPB? Você, Criolo e Emicida parecem não ver barreiras entre os dois gêneros...

Ludez da Luz – É um processo natural. Os outros ritmos também sempre dialogaram. Dentro da música brasileira você vê muito isto. Além do mais, esse negócio de classificar um artista como sendo da MPB já não existe mais. Hoje em dia, o que é MPB?! Desde que comecei a rimar, sempre tive contato com músicos de todos os tipos. Sempre trabalhei com pessoas que não eram só do rap. Somos pessoas criativas, fazemos arte, fazemos música e interagimos. O que percebo é que se alguém for conversar com o baixista da cantora x, o cara vai falar: “Você baixou o último do Mad Lib? Você gosta de Notorious B.I.G.”? É assim, gente! O rap já está por aí há muito tempo, na verdade. Só que agora ele firmou e expandiu, já não sofre mais com tantos altos e baixos... Muito mais gente passou a entender e houve um crescimento real. O rap se tornou uma vertente dentro da música brasileira. Ele está se igualando e chegando ao mesmo patamar dos outros gêneros. 

BD – Até porque o rap de São Paulo, mesmo que esteja inserido em um contexto de cultura globalizada, também é muito regional.

Lurdez da Luz – Eu acredito que ele seja uma música regional! Ele tem características locais próprias, tem tradição. É uma música típica de São Paulo, mesmo que tenha sido importada. Faz muito sentido fazer rap lá, saca?

BD – Ainda falando sobre MPB, assisti a alguns vídeos onde você aparece ao lado do Kiko Dinucci e do Thiago França. Os dois, inegavelmente, estão muito atrelados ao samba e à cultura afro-brasileira, assim como o Marcelo Cabral, que produziu o seu disco. Qual a sua relação com estes artistas e com os temas de seus trabalhos?

Lurdez da Luz – Tenho grande simpatia pela cultura afro-brasileira e sou fã do Kiko Dinucci. Foi por isto que nos aproximamos. E também tem a questão da cidade. São Paulo está muito presente tanto no trabalho dele quanto no meu. Ele entende não só da cultura do rap americano, mas também da cultura negra universal, do gueto. O Kiko toca kuduro na balada! Então o nosso encontro foi espontâneo. Já o Thiago, eu vi pela primeira vez no Ó do Borogodó, com o Bando Afromacarronico. Para  mim, ele é um monstro da música atual, toca possuído por forças do além! Não é possível... Fiz uma temporada com o MarginalS [projeto de Thiago França, Marcelo Cabral e Tony Gordin] e o Criolo na Casa de Francisca, eram sempre noites mágicas. E o Cabral, assim como os outros, também tem uma cultura de rua, ele anda de skate desde pequeno. Mesmo que as pessoas não vejam uma ligação tão clara, estes caras entendem e gostam de verdade da cultura hip hop. Além disto, se você reparar, muitos discos de rap são produzidos por músicos. Por exemplo, o primeiro do DJ Thaíde [e DJ Hum, “Pergunte a quem Conhece”, 1989] foi produzido pelo Nasi [ex-integrante do Ira!]

BD – Em um país onde as cantoras predominam, imagino que você já tenha sido aconselhada a se tornar uma cantora de MPB, deixando o rap um pouco de lado, não?

Lurdes da Luz – Já ouvi este tipo de comentário. Também me aconselham a estudar canto e hoje acredito que isto possa ser importante. Como as minhas letras têm muita influência da canção, já me inseriram algumas vezes na categoria das cantoras, mas, sinceramente, acho ruim tanto para elas quanto para mim. Por enquanto, me vejo como uma rapper mesmo.

BD – E como foi que você começou a rimar?

Lurdez da Luz – Eu ouvia rap desde criança, mas não me sentia à vontade em fazer. Para falar a verdade, nem passava pela minha cabeça. Mas, por volta de 98, quando vi que dava para misturar o rap com outras coisas e que já havia um monte de nerds fazendo, achei que também poderia. Além disso, sempre gostei de escrever. A minha ligação com o rap vem daí. Ainda demorei um pouco para assumir que o que escrevia era rap. Não me preocupava com a rima e estava em uma parada mais de declamar. Mas como escutava muito e conhecia bastante gente do meio, fui me sentindo mais a vontade para fazer, até que em 2000 entrei para o Mamelo Sound System. Que era um grupo totalmente louco de rap, mas, ainda assim, de rap. 

BD – As suas letras possuem um estilo muito peculiar, parecem uma grande colagem pop.

Lurdez da Luz – Sim. Esta é a minha grande influência. É tudo o que eu tenho: cinema, quadrinhos... este é o tipo de arte que sempre tive contato e me interessei. Não cheguei a ler os clássicos da literatura. E na verdade o som que eu ouço também tem muito disto. O hip hop é cheio de citações.



BD – No Brasil, o rap sempre teve sua temática atrelada às questões sociais. Entretanto, aos poucos, ele vem mudando e ampliando seu foco. Como você vê esta questão?

Lurdez da Luz – É que, na real, quando comecei a ouvir rap na rádio ele não era tão consciente assim. Isto só se tornou uma verdade após os Racionais e o surgimento de outros grupos que vinham com esta mesma pegada... Foi um momento muito importante para a história do rap nacional, mas, antes disso, você ouvia: “Pirulito! Não há nada igual, vem chupar legal” ["Rap do Pirulito", Geração Rap]! Ou então Ndee Naldinho: “A lagartixa, a lagartixa, a lagartixa na parede”... Não era uma coisa muito politicamente correta, né? O Thaíde, por exemplo, sempre gravava uma canção de amor nos discos. Não havia somente o discurso racial ou da quebrada. Mas realmente, com o tempo, os temas sociais se tornaram mais presentes, o que faz todo sentido. Na verdade o rap é isto. É um protesto. Mesmo. A voz ativa dos excluídos, dos que vêm da favela. É uma cultura de periferia. Atualmente, o rap pode ter mudado um pouco a forma, a abordagem, mas seus dois maiores expoentes, Emicida e Criolo, são de periferia e falam do tráfico de drogas, falam de tretas e quebradas, falam de exclusão social.

BD – Ao fazer a pesquisa para esta entrevista acabei encontrando um vídeo da última eleição presidencial em que você aparece dando apoio ao Zé Maria (PSTU). Poderia falar um pouco dessa sua militância? A sua geração não parece muito envolvida com questões partidárias...

Lurdez da Luz – Na verdade eu não sou militante. Minha mãe é que é. Mas o PSTU realmente é a minha opção política ao votar. Meu voto é destinado a eles. O partido me convidou para fazer um vídeo onde declarasse isto publicamente e eu aceitei. Mas é fato que hoje em dia quase ninguém se posiciona desta forma, porque é dureza você confiar em um partido. Eu não acredito que o PSTU vá chegar ao poder, mas a juventude deles é muito melhor do que a base de qualquer outro. Eu conheço os caras, sei que ali existe uma história de luta. Eles se posicionam de verdade em todas as questões. Hoje em dia, todo mundo prefere deixar de lado assuntos que envolvam partidos políticos, achando mais chique dizer: “Ah, vamos de bicicleta e usar ecobag”. Sendo que na verdade não é! Aquelas pessoas estão lutando de uma forma muito mais séria por um salário justo e melhorias das condições de trabalho e do transporte público. Sei que é um posicionamento complicado para alguém que tem uma carreira artística. Porque se você precisar se beneficiar de alguma política do governo, isto pode depor contra. Mas não me preocupei com a repercussão.

BD – Muitos artistas costumam reclamar das políticas de incentivo. E você?

Lurdez da Luz – Eu ainda não tenho o que reclamar porque nunca utilizei nenhuma destas políticas, mas acredito que sejam necessárias, embora não acredite muito no formato atual. Preferiria que não dependêssemos de dinheiro público, que a cultura se autossustentasse. Mas acho que ainda é necessário ter estas políticas do governo para que as coisas aconteçam. No mandato do Lula, as políticas culturais deram um upgrade, se tornaram mais democráticas, deixando de privilegiar quem já tinha uma carreira consolidada.

BD – Como foi fazer o primeiro álbum? Foi totalmente independente, não?

Lurdez da Luz – Sim. Fiz com os meus amigos, aos poucos. Gostaria de ter muito mais dinheiro para produzir o próximo disco, mas não pretendo me inscrever em nenhuma lei. Não é a minha ideia. Até porque demora muito. É um processo longo e se você depender disto para fazer música, está fudido! 

BD – E esteticamente como será o próximo? Será um single, certo?

Lurdez da Luz – Sim. Não quero fazer um álbum agora. Vou lançar as músicas aos poucos. Pretendo trabalhar com alguns produtores... Estou em uma fase de criação um pouco mais livre. Já tenho ideias de muitas músicas e vou trabalhá-las uma a uma. E também quero fazer uns vídeos. 

BD – Ouvi a música nova [“Levante”] no festival Faro MPB e ela me pareceu bem diferente das do primeiro álbum, inclusive em relação ao tema, mais social.

Lurdez da Luz – Ela dá continuidade às músicas do primeiro álbum, mas é bem diferente. É um passo além.  É uma evolução. Mas eu não sei se todas as pessoas vão enxergar desta forma. Ela realmente é bem diferente das minhas outras músicas, inclusive na produção. A timbragem é mais crua e privilegiei mais o ritmo. "Levante" é totalmente digital e mudei bastante o meu jeito de rimar. É mais um papo reto, sem muita poesia. Mas, ao mesmo tempo, ainda tem muito a ver com o modo como utilizo as palavras. Só acho que tem menos influências da canção e um foco maior no rap tradicional que sempre ouvi. Senti a necessidade de falar mais claramente, de me fazer entender por qualquer pessoa e não apenas por quem é iniciado ou pertence a uma cultura x. E foi um movimento bem verdadeiro, porque me sinto muito tocada quando ouço um som como esse: direto, sem rodeios. Desperta um sentimento diferente de uma canção mais poética. A poesia te dá um aconchego, sua mente vai para outro lado. Queria que "Levante" fosse um hino cantado por todos que buscam um mundo novo e que exaltasse a dignidade que vejo em nosso povo.

BD – E as outras músicas também estão neste caminho?

Lurdez da Luz – Esteticamente sim, mas não os temas. Quero que as novas músicas sejam bem eletrônicas e que as pessoas se divirtam. Algo um pouco mais para fora. É o que venho buscando. 

BD – As bases e os arranjos das suas músicas são muito elogiados. Como é a produção? O quanto você tem de controle sobre esta parte?

Lurdez da Luz – O primeiro disco tem bastante de mim. Eu escolhi cada base, cada beatmaker. Não teve um produtor me dizendo o que eu deveria ou não fazer. Todas as escolhas estéticas foram minhas. Mas precisei de pessoas que me ajudassem no acabamento. Jamais saberia fazer sozinha todas aquelas programações e arranjos. Foi um processo muito bacana. E agora, por desejo meu, estou nesta busca por outra sonoridade. Cada trabalho é feito a partir do que estou sentindo e ouvindo no momento. No primeiro disco tive muita influência da música brasileira das décadas de 60 e 70. Mesmo se tratando de rap, achei importante trazer essa atmosfera para o disco. Às vezes meu trabalho pode transcender um pouco o rap tradicional, mas tudo o que faço é baseado na cultura hip-hop.


BD – Li em uma entrevista que você pretendia gravar um álbum conceitual inspirado no espetáculo musical ''Nas Quebradas do Mundaréu'' [lançado em disco em 1974], do dramaturgo Plínio Marcos. Como anda este projeto?

Lurdez da Luz – Deixei de lado, mas fiz muitas músicas. Estou pensando em incluir uma ou outra em um próximo disco, mas sem necessariamente fazer um álbum temático. Na verdade, só foi uma ideia que tive e que gerou alguns textos. Pensei em transportar aquele universo do Plínio Marcos para um contexto mais atual, com a linguagem de hoje. Comecei a escrever algumas coisas e aí surgiram alguns personagens na minha cabeça. Mas já não sei se ainda estou tão interessada em fazer um disco assim. Provavelmente vou diluir este material em outros trabalhos. 

BD – O manguebeat é de grande importância para a sua geração, até mesmo por ser uma referência no cenário independente. Ao que parece, você também compartilha desta mesma ideia, pois contou com a participação do Jorge Du Peixe [Nação Zumbi] em seu primeiro disco. Como foi isto?

Lurdez da Luz – Eu fiquei bem abalada com a morte do Chico Science. Fico feliz por ter visto alguns shows do Nação Zumbi com a sua presença. Mas só fui conhecer os caras muito tempo depois, por causa do Mamelo Sound System. O Rodrigo [Brandão] era muito amigo deles e chegamos a abrir alguns shows do Nação Zumbi, no interior de São Paulo. Gosto muito do som deles, mesmo sem o Chico. Para mim o trabalho Nação Zumbi tem um valor muito grande. E aí, um dia, o Jorge foi ao estúdio em que eu estava gravando. Ele é amigo do Daniel [Bozzio], que também produziu meu disco. Então ele chegou lá, ouviu o som e disse: “Porra! Acho que vou escrever uma parte para isso aí”! Aí pedi para que ele cantasse e então gravamos o vocal. Eu realmente queria a sua participação, gosto muito do jeito que o Jorge canta. E aí foi. 





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