fotos: daryan dornelles |
Cunhado na década de 1960 durante o período dos grandes festivais de música popular, o termo MPB já nasceu vago e pouco esclarecedor. O vocábulo, fruto do cenário pós-Bossa Novista e originalmente de forte teor político, foi se esgarçado ao longo das décadas seguintes, abrigando artistas influenciados pelos mais diversos gêneros: rock, samba, soul, reagge, pop, música latina, baião, forró, etc... Até pouco tempo atrás, mesmo que de forma totalmente arbitrária e com pouquíssima nitidez, ainda era possível utilizar o rótulo MPB para designar certos músicos e seus respectivos trabalhos. Entretanto, com o surgimento e a consolidação de uma nova cena musical - construída a partir da primeira década deste século e em meio à forte crise do mercado fonográfico - o termo MPB, por fim, tornou-se anacrônico. CéU, Rômulo Fróes, Karina Buhr, Marcelo Jeneci, Tulipa Ruiz, Leo Cavalcanti, Kiko Dinucci e dezenas de outros nomes conseguiram, mesmo que não intencionalmente, decretar o fim do que até então se convencionou chamar de música popular brasileira. Sem saber como designar esta nova safra, estudiosos, críticos, jornalistas, blogueiros e tantos outros, tentam como podem criar um novo rótulo: Neo-MPB, Neotropicalistas, Geração SP, Geração BR-00, Nova MPB, Novos Paulistas, e por aí vai. A tarefa é árdua e, na maioria das vezes, infrutífera, pois qual termo seria capaz de abrigar estes jovens músicos que, se em sua esmagadora maioria sofrem influência do Tropicalismo, também não temem em transitar pelos samba, bossa nova, baião, ciranda, música latina, pop, Jovem Guarda, afrobeat, vanguarda paulista, música indiana, rap, indie rock, música eletrônica, jazz, tecnobrega e sabe lá deus o que mais?!
E é em meio a este caos que surge “Canções de apartamento”, álbum de estreia do entrevistado desta semana: Cícero. Oriundo de um tênue movimento “indie rock” que surgiu no Rio de Janeiro no início da última década, o músico fez parte da banda Alice, com a qual lançou dois álbuns: “Anteluz”, de 2005, e “Ruído”, de 2007. Trabalhando paralelamente como DJ e produtor das festas Mambembe, Benflogin e Yellow Submarine, Cícero iniciou a sua carreira solo três anos após o término na banda, lançando em junho de 2011 seu primeiro álbum solo. O disco foi gravado em seu próprio quarto e se encontra, por enquanto, disponível apenas virtualmente, podendo ser baixado de forma gratuita em seu site oficial. Entretanto, mesmo com as dificuldades de divulgação próprias de um trabalho independente, “Canções de apartamento” já vem sendo considerado um dos melhores discos do ano. A acolhida foi insuspeitável e Cícero logo se tornou foco de atenção dos sites e blogs de música de todo o país. Com fortes influências de Radiohead, Chico Buarque e Tom Jobim, “Canções de apartamento” foi comparado à exaustão com obras dos “hermanos” Marcelo Camelo e Rodrigo Amarante, influências estas não desmentidas, mas que passam à certa distância do seu trabalho. Somado a isso, o jovem cantor/compositor viu, inesperadamente, seu nome ser incluído no hall do que se convencionou chamar de “Neo-MPB”, dividindo o espaço com Tiê, Nina Becker, Thiago Pethit e outros tantos. Ainda tentando compreender melhor o momento por que passa a sua carreira, Cícero aceitou o convite do Banda Desenhada e, acompanhado de seu colega acordeonista/pianista Bruno Schulz, concedeu esta entrevista:
BD - Em pouquíssimas semanas o seu álbum “Canções de Apartamento" foi citado nos mais diversos blogs, sites e até mesmo na grande imprensa. Você esperava esta repercussão?
Cícero – Não mesmo. Disponibilizei o disco para download e só. Não fiz nenhuma grande divulgação e ainda não havia clipe nem nada. Realmente eu não sabia que a Internet estava tão dinâmica. A última vez que a utilizei para divulgar um trabalho foi ainda com a Alice, há muito tempo atrás. Não esperava mesmo. Na verdade, ainda não tenho total consciência do que está acontecendo. Faço certa ideia, porque as pessoas escrevem, comentam, mas ainda não sei até onde o álbum irá chegar. A divulgação na Internet não depende tanto do esforço do artista. Hoje em dia, você lança o disco, alguém ouve, gosta e, imediatamente, divulga no twitter para, sei lá, milhares de pessoas! Como músico independente nunca conseguiria difundir o “Canção de Apartamento” para tanta gente assim, mas as pessoas que gostam do álbum conseguem. Então, esta responsabilidade acabou sendo passada para as mãos dos anônimos, das pessoas que realmente admiram a sua música.
BD - Muito se fala da influência do indie rock em sua geração. Entretanto, poucos músicos citam-no como uma referência relevante. Este também seria o seu caso?
Cícero – O “Canções de apartamento” tem bastante influência de indie rock. Em se tratando de influências, ouvi mais rock do que MPB. Sonic Youth, Pixies, Radiohead, Pavement... Essas bandas são tão presentes na minha formação quanto a música brasileira. Talvez por conta do violão, dos arranjos das canções, por valorizar mais a voz, as pessoas tenham associado o meu trabalho à MPB. Eu ouvia muito Caetano [Veloso], Mutantes e Chico [Buarque] na infância, por conta dos meus pais... Mas na fase de formação mesmo, de adolescência, era só rock. Comecei com Nirvana, depois passei a ouvir Pixies, Interpol, Radiohead e, mais no final da adolescência, Pedro The Lion, Mogwai e Longwave. Dentro do disco, estas influências são tão fortes quanto Caetano Veloso ou a bossa nova.
BD – Mas, inegavelmente, o “Canção de apartamento” flerta muito mais com a MPB do que a Alice. Como foi essa transição? Sair de uma banda de indie rock e iniciar a carreira solo com um leque de referências mais amplo?
Cícero - A gente montou a Alice em 2003. Eu tinha uns 16/17 anos. Muitas bandas cariocas nasceram nessa época e também havia na cidade um pessoal interessado em nos ouvir. Não sei se poderíamos chamar de cena, mas, com certeza, havia muitas bandas e público. Só que eu não sei o que aconteceu que tudo aquilo acabou muito rápido. Acho que no início ocorreu uma retração após os lugares em que tocávamos terem fechado. Depois as pessoas foram se cansando. Nós formávamos a última geração de bandas que ainda tinha alguma esperança em entrar para uma gravadora. Quando vimos que a realidade era outra, muitos acabaram perdendo o gás, porque tinham que arrumar trabalho, resolver seus problemas... E foi assim com a Alice. Nós começamos com a banda no final da adolescência, com o grande sonho de viver de música, e quando vimos que não dava mais, precisamos arrumar outros trabalhos, acabar a faculdade, fazer outras coisas... Foi por conta disso que a banda chegou ao fim. Ao decidir continuar fazendo música, toda a minha dinâmica mudou. Quando você tem uma banda, existem cinco pessoas com pontos de vista e sonoridades diferentes. O álbum é o resultado dos cinco. No “Canções de apartamento”, eu não queria fazer um “disco de banda”, não fazia sentido. É um álbum meu, que tem a guitarra e bateria, porque é algo que realmente gosto, mas que também tem todo o resto que não aparecia na Alice. Então não houve a intenção de se construir uma nova sonoridade, mas sim uma tentativa de me expressar individualmente. Eu ouvia MPB muito antes da formação da Alice e, se por acaso não havia essa influência, era porque nós éramos um grupo e nem todos gostavam deste gênero. Realmente não foi algo pensado: “agora vou para a MPB porque é o que está dando certo”. Eu realmente não achei que “Canções de apartamento” fosse ter essa repercussão toda. Mas aconteceu, e pra mim está sendo ótimo, porque está me mostrando que realmente existe uma galera que quer ouvir novas sonoridades, novos trabalhos autorais. Não há mais a necessidade de você ter que se parecer com algo que já tenha dado certo. Isso te dá uma liberdade enorme para criar.
BD – Por falar nisso, alguns críticos já o inseriram na “Neo-MPB”, ao lado de artistas como Tulipa Ruiz, Marcelo Jeneci e Nina Becker. Você vê alguma semelhança ou ligação?
Cícero - Eu particularmente não ouvia tanto a “Nova MPB”. No meu álbum, não há nenhuma influência estética/ideológica que remeta à ela. Também não quero dizer com isso que eu torço o nariz para esta geração, nada disso. Basicamente, a minha identificação maior é com o rock. O “Canções de apartamento” acabou sendo mais MPB porque eu costumo ouvir bastante música brasileira dos anos 60 e anos 70. E, embora eu goste muito desta nova geração, eu não sei se ela está tão próxima assim do “Canções de apartamento” quanto parece ou vem sendo dito. Pelo menos não foi minha intenção. Eu até pretendia, inicialmente, fazer um disco mais pesado, mas acabou que havia tantas idéias, que o álbum saiu assim. Mas não há nenhuma garantia que o próximo não vá sair mais “garageiro”. Eu não sei até que ponto o rótulo “Nova MPB” é certo para este álbum, sabe? Quando te inserem em um nicho tão específico como este, pressupõe-se que você conheça e dialogue com os seus colegas e eu realmente não tenho contato com eles, conheço muito pouco. É claro que eu já ouvi a CéU, a Tulia Ruiz, a Tiê, o Thiago Pethit e o (Marcelo) Jeneci, por exemplo. Esses eu conheço, gosto e acho muito legal. Mas tem muito mais nomes e álbuns fantásticos sendo lançados nesta área. É tudo muito novo para mim. Ainda estou engatinhando, procurando, conhecendo, tentando me interar. Para você ter noção, eu descobri o Romulo Fróes há pouco tempo! Putz! E ele é praticamente o guru desta cena! [Risos].
BD - As letras e o som de “Canções de Apartamento” trazem, além de delicadeza e solidão, certo amargor, certa desesperança. Além disso, todas as críticas e matérias sobre você tocam invariavelmente nesta questão e muitos tratam seu álbum como se fosse uma espécie de “sessão de terapia” musicada. Você não tem medo de ser rotulado por conta disso?
Cícero – O disco foi lançado à apenas três semanas, é tudo muito novo. Qualquer coisa que venha a me incomodar ou envaidecer ainda está no esboço. Acredito que essa questão de rótulo talvez apareça por conta da temática do “Canções de apartamento”. Mas acho importante que o disco tenha essa abordagem, que tenha um tema. E isso já vem acontecendo desde o tempo da Alice. Fizemos um álbum [“Ruído”, de 2007] em que todas as músicas eram horas do dia. O disco fechava um ciclo de 24 horas. É um modo de você pensar o seu trabalho. Eu acho muito interessante. O “Canções de apartamento” também teve um conceito, é um disco temático, só que mais pessoal. E realmente ele é fruto de uma fase em que eu não estava muito bem. Mas todo mundo é muita coisa! [Risos]. Ninguém é só triste ou só alegre, nem só introspectivo ou só “porra louca”. Você acaba expressando na arte aquilo que está mais latente em você em determinado momento, aquilo que esteticamente é mais significativo. Mas eu não sou só isso, entende? O álbum é uma espécie de retrato, um instantâneo, ele reflete certas circunstâncias da minha vida. Mas, de um modo geral, toda essa situação ainda não chegou a me incomodar. Ainda estou curtindo muito a resposta das pessoas. Mas você tem razão, realmente pode ocorrer, mais tarde, uma cobrança do personagem... Vou ter que andar pelas ruas todo deprimido e cabisbaixo! [Gargalhadas].
BD – A questão é que o álbum, as letras, tudo é muito pessoal. É quase uma invasão de privacidade...
Cícero – Bem, até agora só tenho recebido carinho. Se a resposta fosse muito negativa, com as pessoas me ofendendo, teria sentido bastante, ficaria magoado, porque eu expus aquilo que realmente estava sentindo. Mas por enquanto está tranqüilo, não está incomodando em nada.
BD - Há referências a Tom Jobim e Caetano Veloso em suas canções. Qual a importância destes dois músicos em sua obra?
Cícero – Cara, bastante! O Caetano eu acho um dos maiores artistas brasileiros em atividade. Ele já passou pelos mais diversos gêneros: rock, samba, bossa nova... E o Tom Jobim, durante muito tempo, foi uma obsessão. Eu ouvia muito, por conta da forma como ele compunha a melodia, fazia os arranjos e, principalmente, por incrível que pareça, pela forma como ele cantava. Nem todos gostam da sua voz, preferem que outros interpretem as suas canções. E eu sou apaixonado pela forma como ele canta. Acho que a música do Tom Jobim tinha mais é que ser cantada por ele! Eu só a ouço assim.
BD – É lindo ouvir Tom cantando “Sabiá”.
Cícero - É! Aquela voz que falha, que some, que é rouca, que acaba o ar. É incrível. E na verdade, nas citações das músicas, Caetano e Tom não surgiram apenas para serem homenageados ou como referências, mas também por estarem inseridos dentro do contexto daquelas histórias de que tratam as canções. Aquelas situações realmente aconteceram, sabe? Discutir Caetano e ter uma ex-namorada com o apelido Dindi foram situações reais. Achei interessante colocá-los nestes dois contextos, simultaneamente.
BD – Para finalizar, como você vê a cena musical carioca? De um modo geral, todos costumam reclamar da falta de público, de local para tocar e infraestrutura...
Cícero – É incomparável a cena de São Paulo com a cena do Rio de Janeiro. A sensação que dá é que em São Paulo já está instituída uma cultura de se ouvir trabalhos de artistas novos, com músicas autorais. Eu acho que o carioca não tem esse hábito. Até existe uma galera que quer ouvir um som diferente e se predispõem a sair de casa para ver o seu show, mas que não faz disso um hábito. Por quê? Por conta da desorganização da cidade. A cidade é grande e o transporte público é muito ruim. Se você mora na Zona Oeste e quer ver um show na Zona Sul, vai ter um trabalho fudido! É muito difícil você fazer qualquer coisa aqui. Não existem muitos lugares legais para se tocar. Não há um circuito. E, diferente de São Paulo, não nos organizamos para viabilizar novos espaços ou criar uma cena. A grande maioria dos lugares que mais ou menos tinha esse viés, que abrigava a nova geração do Rio, fechou. O que você mais tem hoje são casas de shows imensas que não comportam espetáculos de menor porte. Você não pode chegar na cara de pau com o seu disco e dizer: “Tô querendo tocar aqui com uma galera”. Então, realmente não tem como fomentar a cena. E as pessoas estão cansadas. Uma andorinha só não faz verão... Temos que nos movimentar! A gente tem que ter um pouco mais de foco. Foi o que São Paulo fez, entendeu?
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Abundância de percepções não consomem tudo o que esta obra do Cícero Lins me repõe para ouvir, derramar, não compreender para jamais cessar. Apenas ressentir e inteiramente. Lírico ainda simples. Lindamente fanatizar-me!
Refletir a crise urbana e tirar o lençol do sentimento puro sem medo de se rotular,caro amigo, quem sabe faz a hora. a transparência loucura e paralelos estará sempre,mesmo que não se queiramos olhas de quem escuta...parabéns...
....mesmo que não queiramos está no olhar de quem escuta
j.Lins
Na minha opinião o Canções de Apartamento é indiscutivelmente um disco de rock.