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Deixando de lado a Lapa, com os bambas e os seus sambas geniais, o atual cenário da música independente carioca começou a ganhar forma por volta de 2002, quando, em um total improviso, alguns músicos se uniram para criar uma inusitada big band. As divertidas apresentações e o repertório singular, misturando clássicos da gafieira com rock, jingles, heavy metal, funk e o que por ventura passasse por suas cabeças, tornou a Orquestra Imperial uma das maiores sensações da noite carioca. Já nos primeiros bailes, podia-se ver alguns dos músicos que pouco tempo depois se tornariam referências na música contemporânea brasileira: Rodrigo Amarante, Moreno Veloso, Domenico, Kassin, Thalma de Freitas, Rubinho Jacobina, Pedro Sá e Nina Becker.
Amiga dos meninos da banda e ainda trabalhando com direção de arte e cenografia, Nina entrou para a Orquestra substituindo Thalma de Freitas, que havia deixado seu lugar vago ao viajar para a Espanha. Com o seu retorno, a big band acabaria optando, sabiamente, em deixar as duas crooners dividirem os vocais e os palcos nas apresentações. Ainda envolvida em muitos projetos, incluindo aí a criação de uma grife, Nina lançou em 2007 seu primeiro trabalho solo, o EP Superluxo, e participou do álbum “Carnaval Só No Ano Que Vem”, da Orquestra Imperial. Dois anos depois, seria premiada pela APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte), como melhor cantora. Mesmo com alguns problemas e com a saúde abalada, em 2010 Nina gravou dois álbuns, “Azul” e “Vermelho”, que acabariam figurando entre os melhores discos do ano em diversas revistas, sites e blogs.
Entre um show e outro e após algumas rápidas conversas, Nina Becker aceitou participar do Banda Desenhada. A entrevista, que transcorreu em um inicialmente tranquilo café no bairro do Humaitá (RJ), acabou tendo indevidas participações especiais: talheres, bandejas caindo, chícaras tilintanto e as garçonetes de vozes estridentes que, depois de certo tempo, mais pareciam pastoras de velha guarda. Então, para não encher de onomatopéias o texto, sugerimos que entre no clima, pegue um bom chá de hortelã, erva cidreira ou camomila e curta a entrevista:
BD - O Vermelho e o Azul foram lançados em um momento de grande retração do mercado fonográfico. Você e a sua gravadora sabiam do risco que estavam correndo?
Nina Becker – Viver já é um risco. Na verdade, quando comecei a gravar as primeiras músicas, eu nem sabia que elas se tornariam um álbum. E também não havia tanto perigo assim... O meu maior investimento foi me deslocar para São Paulo, pois moro no Rio e o estúdio da YB Music é lá. Durante um ano eu fiquei indo e voltando. Não havia prazo, não havia cliente, não havia a menor obrigação em lançar aquele material em uma data específica. As gravações foram adaptadas à minha vida, ao meu tempo, à minha agenda. Então foi muito tranqüilo. E se desse tudo errado, tudo bem, pois não precisava de um retorno imediato. Nestes últimos anos a YB conseguiu colocar em prática uma das muitas tentativas que a gente está vendo por aí de se adaptar ao novo mercado fonográfico. E obteve sucesso de um jeito superinteressante: Como ela também é uma produtora de trilhas sonoras, os horários vagos no estúdio são utilizados pelos músicos da gravadora. Ela também disponibiliza a mixagem e a masterização, deixando a prensangem e a produção aos cuidados do artista. Este se torna o dono do disco e o responsável pela sua comercialização. O esquema funciona muito bem para um artista independente que tem uma tiragem pequena e está priorizando suas vendas junto ao público que vai aos seus shows. Financeiramente falando, eu tive sim que gastar com idas à São Paulo, mas isso nem se compara com a verba que seria gasta se fosse fazer um disco nos moldes antigos, como as gravadoras faziam. Então, realmente, meu maior investimento foi a minha inspiração, o trabalho de arranjo, a parte de produção musical... E os músicos todos foram parceiros, sabe? Hoje em dia as coisas estão sendo resolvidas desta forma, na parceria, e funciona.
BD - Você mantém um forte elo com o trabalho de Romulo Fróes, o “guru” da chamada Neo MPB paulistana. Como começou esse relacionamento e qual a sua ligação com o universo poético do Romulo?
Nina Becker – O Romulo e a sua paciência foram os grandes responsáveis por nossa amizade. [Risos]. Eu ainda não o conhecia e ele me ligou, convidando para fazer uma participação em seu disco, “No chão sem o chão”. Como estava super enrolada, trabalhando pra caramba, demorei meses para conseguir gravar. Ele foi um fofo, me ligou várias vezes e, no final, acabei cantando duas músicas: “O que todo mundo quer – ninguém liga” que é tipo um frevo, e “Astronauta”, que acho linda, com o André Mehmari ao piano. Era um álbum duplo e o Romulo demorou muito tempo para terminá-lo. E aí, logo em seguida, tive uma baita crise de hérnia. Estava em um momento difícil, triste. Também havia fechado o ateliê... Tomei um cano de uma cliente, tive que pagar os funcionários e acabei endividada sem saber o que fazer da minha vida e morrendo de dor! Passei seis meses sem conseguir trabalhar. Aí o [Eduardo] Miranda, que é um dos produtores do disco, ficou colocando pilha para que eu gravasse na YB, nem que fosse para botar as músicas no MySpace. Eu fiquei na dúvida, não estava bem, mas ele me ofereceu a casa dele para ficar e acabei indo. O Romulo ainda estava finalizando o disco e eu o encontrei várias vezes nos corredores do estúdio. Até então eu não o havia conhecido pessoalmente, porque gravei as duas músicas aqui no Rio. Daí, em nosso primeiro encontro, tomamos um porre e passamos a tarde inteira falando sobre os caminhos e os descaminhos da música brasileira, junto com o Mauricio [Tagliari] e o Miranda. Descobrimos que compartilhávamos das mesmas opiniões em vários pontos e saímos daquele porre muito amigos! [Risos]. Fizemos até uma música juntos, que estará no meu próximo álbum. Ele se tornou meu amigão assim. Sempre peço sua opinião, sabe? E é engraçado, porque ele realmente é muito paulista, mas, de alguma forma louca, eu me identifico muito com isso. Talvez tenha a ver com o fato de em São Paulo a receptividade do meu trabalho ser muito maior e melhor do que no Rio. Aqui o pessoal gosta mais é da balada, de sair pra se divertir, dançar, se animar. Se você sai um pouco desse espectro fica mais difícil. E eu não tenho muito a ver com essa animação toda. Eu sou um pouco intimista e isso agrada mais ao público de lá.
BD – Em contrapartida, “Flor Vermelha” [música de Romulo Fróes e Nuno Ramos, gravada por Nina] remete e muito a Nelson Cavaquinho e Cartola, invariavelmente associados ao Rio e a toda uma tradição musical carioca.
Nina Becker - Mas acho que rola esse diálogo entre mim e o Romulo. Nós procuramos o que um tem em comum com o outro. Há também uma nostalgia do Rio Antigo que é muito recorrente no trabalho dele. E eu adoro samba, eu comecei no samba, fazendo backing vocal pro Zeca Pagodinho!
BD – eu li a respeito, mas, como assim?!
Nina Becker – eu sou o samba! [Risos]. Eu sempre cantei, estudei música desde pequena, meu interesse nessa área sempre foi grande. Já estudava na faculdade de Desenho Industrial, mas estava na dúvida se ia trancar ou fazer Cinema... Ao mesmo tempo, estava gostando de ir às rodas de samba, de conhecer todos aqueles sambistas antigos... Foi nessa época que eu construí todo o meu repertório de música popular. E acabei esbarrando com um produtor que estava lançando o “Samba pras moças” [1995] do Zeca [Pagodinho]. Ele precisava de duas backings para a turnê e aí me chamou. E lá fui eu fazer o teste! Só que, quando cheguei , vi que não era teste nada, já era o ensaio! E pra viajar uma semana depois! [Risos]. Eu entrei no estúdio e o Zeca não entendeu nada: “Quem é essa menina branquela”? [Risos]. Ele ficou preocupadíssimo: “Mas você conhece as músicas”? Porque o Zeca é loucão, às vezes sai do palco, deixa o pessoal do coro cantando, muda a ordem do set list e a preocupação dele era se eu ia conseguir acompanhar. Foi uma experiência maravilhosa. Só que depois de uns meses, a minha vontade de trabalhar com cinema foi maior. Eu queria fazer cenários, sempre gostei, já tinha trabalhado nas escolas de samba durante três anos seguidos, confeccionando alegorias. Enquanto as minhas amiguinhas ficavam de férias indo à praia, eu ia pro barracão. Aí, um dia eu estava na Bienal de São Paulo e vi o Gringo Cardia. Eu era superfã, ele estava numa época muito boa, fazendo vários clipes e peças legais. Olhei lá longe e pensei: “Eu ainda vou trabalhar com esse cara”! Não deu um mês, ligaram para minha casa: “Então, eu estou ligando porque o Gringo Cardia está precisando de uma assistente e me indicaram você”. Era para fazer um curta do Flávio Colker, se chamava “Metal guru”. Nunca tinha entrado num set de filmagem na minha vida, foi uma loucura! O Gringo estava sem tempo e eu segurei todas as ondas. Fui aprendendo na marra. Encontrei com ele apenas duas vezes ao longo da produção, normalmente resolvíamos tudo pelo telefone. No último dia de filmagem, o Gringo apareceu, viu aquilo tudo, gostou e me chamou pra trabalhar com ele. Por conta disso, acabei saindo da banda do Zeca. Mas era o maior barato, o Dudu Nobre tocava cavaquinho e tinha o Paulão Sete Cordas, que eu já conhecia das rodas de samba. Foi maravilhoso!
BD - Ouvindo seus álbuns, não tem como não se lembrar, em determinados momentos, de Gal Costa e Nara Leão. Elas são referências para você?
Nina Becker – Eu sempre falo que existem dois tipos de referências: as que são eletivas e as que são inerentes. A Gal e a Nara são as duas, porque faziam parte do som que rolava lá em casa quando era pequena e que toda a geração de amigos do meu pai ouvia. Eu as absorvi muito. É interessante a maneira como a Nara se relacionava com o samba, colocando o seu canto de uma forma tão diferente e original. Com certeza foi uma influência, mas não pensada. Ela já fazia parte do meu universo e foi muito importante no momento em que construí meu jeito de cantar. Eu sempre fui uma pessoa muito tímida, falo e canto baixo. Entrar para Orquestra Imperial foi um desafio. Tive que aprender a me colocar, a cantar mais alto para poder vencer aquela parede sonora e conseguir me ouvir. Foi um aprendizado de anos e anos. Mas quando comecei a fazer um trabalho mais pessoal, percebi que a minha parada não era essa. Eu não me sinto uma cantora do bel-canto, tecnicamente perfeita. Eu sou muito mais intimista. Na realidade, sinto como se fizesse uma curadoria de canções. Deveria ter feito um disco só de regravações de músicas que adoro, mas aí eu comecei a compor. Eu me sinto assim, sabe? Uma artista que quer mostrar algumas canções e que, no caso, precisa cantar para fazer isso.
BD – Mas a sua interpretação de “Luz negra” de Nelson Cavaquinho é linda.
Nina Becker – Pois é, acho que acabei encontrando um jeito próprio, que não é o bel-canto e que também não é o samba. O Kassin me ajudou muito nisso, porque, quando entrei para Orquestra, eu me via tendo que cantar muito alto, forçava demais. E ele dizia: “Não precisa de tanto esforço. Canta mais relax”. Mas eu não me ouvia! Aí ele me disse para correr atrás, falar com o cara do monitor, pedir para aumentar a voz... Não vou dizer que é fácil, é difícil pra caralho, todas essas questões técnicas que envolvem monitoração, palco e etc. A gente se fode muito. Muitas vezes as pessoas cantam mal porque simplesmente não estão se ouvindo. E eu sofri muuuuito até entender isso tudo.
Nina Becker - A primeira música que eu compus foi “Janela”, que é uma parceria com o Domenico. Eu já escrevia, gostava de tocar, só que me auto-reprimia, porque achava que nunca iria fazer algo à altura dos artistas que eu admirava. Sempre fui super rigorosa, mas depois que tive esse problema na coluna e fui obrigada a ficar seis meses em casa vendo televisão, voltei a pegar o violão e naturalmente começaram a surgir algumas canções. Era uma fase em que estava muito introspectiva, melancólica... Isso te ajuda muito, quando você está triste sempre saem umas coisas incríveis! [Risos]. Quando estou feliz também, mas quando você está triste... Huuum... Estava precisando colocar essas coisas para fora. Foi um momento delicado para mim e ao mesmo tempo de "foda-se"! Foda-se que não é genial, tudo bem, eu me contento em ser apenas uma pessoa com algum talento. Isso também foi fruto muito da convivência com os meninos, com o Domenico, o Kassin, o Rodrigo [Amarante], o Moreno [Veloso]... Eles compõem de uma forma tão leve, tão livre... Isso me ajudou muito: Perceber que a criação não é uma coisa do outro mundo, que não há uma musa ou um deus que lançará um raio sobre sua cabeça e lhe trará inspiração... Não, você vai lá, põe uma harmonia gostosa, vai construindo, sussa, entendeu? Virou brincadeira. Eu gostei e passei a mostrar o que estava produzindo. Mostrei uma melodia pro Domenico e ele falou: “Pô, beleza, maneiro, vou fazer uma letra”! Aí mostrei uma música pro Kassin e ele disse: “Pô, é linda, cara! Você vai gravar”? Fui me animando. Às vezes, pelo Skype, eu ligava de madrugada pro Miranda, ficava tocando uma música que tinha acabado de fazer e ele falava: “Cara, tá lindo, vou chorar”. [Risos]. Aí me animei mais ainda e acabei indo pra São Paulo. Chegando lá, o Mauricio [Tagliari] me perguntou quais músicas eu vinha tocando em meus shows. Mostrei “Lágrimas negras”, “Samba jambo”, “Lá e cá”, “Janela”... E começamos a gravar! Então as coisas surgiram desse modo, eu não parei para pensar: “Ah, eu vou fazer um disco com esse repertório, com um conceito”... Não! Saí gravando! E como o Miranda viaja muito e eu ficava noites e mais noites sozinha na casa dele, chegava no outro dia no estúdio e gravava o que havia composto na noite anterior. O Azul foi todo assim. Já o Vermelho foi mais louco ainda! Vou te contar essa história, se bem que eu já contei várias vezes...
BD – Parte da sua banda estava acompanhando o Caetano na turnê do “Cê” e, ao retornar, vocês gravaram tudo ao vivo, não é?
Nina Becker – Sim. Eu já tocava com essa banda desde 2004. Aí tive hérnia e o Caetano pegou o Marcelo [Callado] e o Ricardo [Dias Gomes]. Mas quando acabou a turnê do "Cê", eu os chamei para fazer uma participação especial no disco. Queria muito que estivessem lá, porque, afinal de contas, eram parte da minha banda e não tê-los no álbum era um absurdo. Foi o maior susto! Eles nem sabiam que eu estava gravando! Agitei um show em São Paulo, no Studio SP, para pagar as passagens e os meninos foram para lá. Gravamos uma música nova que eu tinha feito em parceria com [Gustavo] Benjão e que ainda não tinha arranjo. Ficamos o dia inteiro no estúdio, fizemos dois takes e valeu o primeiro. E eu amando aquilo tudo! Eu amo esses caras como se fossem meus irmãos! No final do dia, quando encontrei com o Miranda e o Maurício, acabei falando: “Muito maneiro essa parada de gravar ao vivo com todo mundo junto. É isso que eu quero para a minha vida! Chega de solidão”! [Risos]. “Se pudesse gravar um disco inteiro assim”... Eles me disseram: “Ué?! Pode, é só marcar”! Aí beleza, nós marcamos um ensaio e começamos a tocar as coisas que já fazíamos juntos. Chegamos lá e gravamos, não houve muita preocupação em criar um conceito. Eu mesma nem sabia que os discos iam se chamar Azul e Vermelho. Eu nem sabia que seriam dois discos! Sabia nada! Foi tudo assim.
BD - Você e o restante da Orquestra, mesmo estando a mais tempo na estrada, acabam sendo vistos como parte da cena carioca que engloba nomes mais novos, como Qinho, Letuce e Tono. Qual a sua relação com essa nova geração? Você vê alguma diferença entre vocês e eles?
Nina Becker – Acho que a minha geração, que é a geração do Kassin, do Moreno, do Domenico, que são as pessoas que estão com 30 e muitos, é uma geração de transição mesmo. Tem a cena anterior, com a Marisa [Monte], a Cássia Eller, a Adriana [Calcanhotto], que ainda estavam inseridas no mercado fonográfico e tem a atual, com o Qinho, a Letuce e o Tono, já independentes. No entanto, eu me sinto muito mais pertencente a esta geração. O nosso modus operandi é muito parecido. E eu adoro eles! Sou super divulgadora do trabalho da Letuce! Eu obrigo várias pessoas a ouvirem! [Risos]. Obriguei o Romulo: “Você tem que ouvir! Você tem que ouvir”! [Risos]. Essa geração é muito bacana, ela não tem mais a necessidade de se prender a um estilo ou de negar uma tradição. Tornou-se mais livre. O Romulo fala muito isso. E acho que tanto nós da Orquestra Imperial quanto a Letuce fazemos parte dela. Sinto que compartilhamos o mesmo momento. Com certeza.
BD – sim, mas é claro que, mesmo assim existem algumas diferenças, até mesmo de tempo de estrada.
Nina Becker - O fato de ter lançado o disco já tendo feito parte da Orquestra durante tantos anos, ajudou muito a divulgar meu trabalho. Eu já tinha uma carreira e várias pessoas me conheciam por conta disso. Mas, na verdade, ninguém sabia do meu trabalho autoral. O disco serviu como um marco, como um cartão de visitas, um produto para se apresentar. Então, eu poderia dizer que, embora tenha começado a tocar em 2004 e "tananananã", a minha carreira só se consolidou em 2010, quando lancei o “Azul” e “Vermelho”, sendo que o Qinho e a Letuce já estavam nesta época por aí. Acho que a Orquestra serviu como um impulso, um primeiro passo, sabe? Com certeza me ajudou muito na hora da divulgação e ao atrair parte do público para os shows.
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