de papel crepom e prata


thalma touro e tigre | foto de yuri pinheiro

O primeiro contato com o trabalho do ilustrador Gabriel Mar foi enigmático: poucos meses atrás, durante a entrevista com a cantora e compositora Iara Rennó, uma imagem colada à parade, bem acima de sua cabeça, me chamava a atenção. Tratava-se de uma espécie de colagem, quase uma mandala, repleta de animais e plantas selvagens que emolduravam um retrato. Multicolorido e de forte referência ssessentista, a figura era magnetizante. Algum tempo se passou e novamente fui ao Miradouro, local de encontro de diversos artistas e morada não só de Iara Rennó, mas também da então entrevistada Thalma de Freitas. Não resisti e a indaguei sobre o autor do trabalho. Por sorte, Thalma me contou que o menino prodígio era mais um habitante da casa e que possuía um portfólio repleto de ilustrações, pôsters e capas de CDs de artistas da nova música brasileira. Por certo, suas colagens caíam como uma luva nas experimentações estéticas desta nova geração, marcada tanto por sua pluralidade quanto por sua inquietude. 
Não pensei duas vezes e logo convidei Gabriel para uma entrevista ao Banda Desenhada. Como de hábito, não faltaram participações especiais: Thalma e Felipe Benoliel, do coletivo carioca Apavoramento Sound System e também morador do Miradouro, fizeram pequenas intervenções na conversa que tive com o designer/ilustrador. Confiram agora o nosso colóquio: 

BD – O seu trabalho de ilustrador está extremamente associado à música. Qual o motivo desta ligação?

Gabriel Mar - Sempre tive um contato muito forte com a música, minha mãe foi cantora e meu pai é muito fã de rock 'n' roll e jazz.  Ele possuía vários discos. Passei a infância escutando Djavan, Rolling Stones, The Stooges, Adriana Calcanhotto, Earth Wind & Fire e outros tantos. Na adolescência, costumava criar cartazes, capas e encartes de CDs para coletâneas de shoegaze e brit pop. Fazia tudo e imprimia. Era muito divertido. Cheguei a criar um selo fictício, “Dreamland”, e uma logo que era a cabeça de um gato com o nome em helvética minúscula. Lembro-me de duas dessas coletâneas: "Dreaming on the beach" e "Golden mushroom", só com o lado B da cena inglesa de 85/95. Fiz também muitos flyers de festinhas de indie rock, gótico e anos 80 que rolavam no ABC [SP]. Foi aí que comecei mesmo a trabalhar. Deveria ter uns 15/16 anos. Eu também criei um fanzine com meu primo, o [jornalista] Leandro Melito. Ele escrevia sobre a Bossa Nova e eu fazia a diagramação, baseada na estética dos anos 60. Foi um mergulho nas obras de Tom [Jobim], Vinicius [de Moraes], Sylvia Telles, Maysa, Johnny Alf, Tamba Trio...

70's
BD – E você já fazia as suas colagens? 

Gabriel Mar - Fazia muitas quando era criança, depois parei. Só retomei a colagem no fim da adolescência. Era tudo muito intuitivo. Poucos anos depois, montei o meu Flickr, com o pseudônimo de Cualquiercosa58, e postei tudo lá. Costumava dar nomes de músicas aos desenhos. Nessa época, escutava muita MPB dos anos 70, por estar trabalhando em um sebo. O meu salário era em discos e livros. Era esse o trato e eu peguei várias coisas bacanas. Havia o “Tropicália” original! Comecei então a colecionar vinis e a escutar o Caetano [Veloso] com mais frequencia. Ele foi um dos caras que mais me influenciou esteticamente. Muito do que acontece hoje na cena musical e artística do país se deve à ele.

Felipe Benoliel - É maneiro, cara. Pena que “entiozou”! [Risos]

Gabriel Mar – Ah, eu sempre acho o Caetano foda!

BD – Mas em certo ponto de vista, ele assume posturas bem retrógradas, como no caso do Creative Commons [projeto sem fins lucrativos, presente em mais de 40 países, que disponibiliza licenças flexíveis para obras intelectuais]. Nesse sentido, [Gilberto] Gil parece bem mais interessante e vanguardista...

Gabriel Mar – Na verdade, o Gil acaba sendo mais interessante por ter exercido inicialmente uma enorme influência sobre Caetano. Tem aquela velha história... Sabe aquela música que a Daniela Mercury gravou? A Dona Canô [mãe de Caetano Veloso] chamando o filho: “Venha ver aquele preto que você gosta”. O Gil foi o grande mentor da parada.

BD – E por falar em Tropicalismo, a Tulipa (Ruiz) me contou que você fez uma ilustração para ela com essa referência... Uma colagem que remetia à Carmen Miranda.

Gabriel Mar – Lembro que mandei pra ela no dia do show de lançamento do “Efêmera”, no auditório Ibirapuera. Estava muito emocionado depois de ter escutado o disco a semana toda. A ilustração era cheia de frutas, flores "e outras mumunhas mais". 

BD – O que reforça a influência desse período em seu trabalho.

Gabriel Mar – Sim, é verdade. O Tropicalismo é a base de tudo o que está acontecendo neste momento na cena cultural brasileira. Aquelas idéias repercutem até hoje. Os designers, cineastas, músicos... Todos eram fantásticos! O meu trio mais que favorito é o Rogério Sganzerla [cineasta], Caetano e Rogério Duarte [desenhista, músico e escritor].

cartaz para juliana r
DB – Mas voltando à sua carreira: Inicialmente, as suas ilustrações eram digitais? Porque há essa referência forte dos processos analógicos, além da estética sessentista.

Gabriel Mar – A maioria das minhas colagens é digital. Às vezes eu posso fotografar ou scanear, mas na grande maioria dos casos eu capturo as imagens da Internet mesmo. Essa pegada de anos 60/70 também se deve muito ao meu pai e à minha mãe. Eu cresci escutando histórias e vendo imagens desse período... O Festival de Águas Claras [evento musical que contou com importantes músicos brasileiros e teve quatro edições, em 1975, 1981, 1983 e 1984], por exemplo. Moraes Moreira, Gilberto Gil, Hermeto Paschoal, Raul Seixas... Foi o Woodstock brasileiro! Três dias no interior, em uma fazenda [o festival foi feito na Fazenda Santa Virgínia, na cidade de Iacanga, interior de São Paulo]. Eu piro quando vejo fotos dessa época, mas tenho também outras referências. No momento estou adotando uma estética mais minimalista e sóbria. Não quero ser rotulado de “neotropicalista” a vida toda. [Risos].

BD – Você tem formação em artes plásticas ou design?

Gabriel Mar – Não. Eu comecei a fazer Publicidade, mas não terminei. Depois tentei Design, mas acabei largando. Achei o curso sacal. Boa parte do que eu sei aprendi sozinho. Alguns cursos livres que eu fiz apuraram meu conhecimento, mas não foram tão relevantes. Este ano acabei fazendo um curso de web design, o que me ajudou bastante na criação de layouts... Eu gosto de estudar e desejo me aprofundar em certas questões teóricas, mas tenho certos problemas com os ditames acadêmicos. Mesmo assim, no próximo ano, prestarei vestibular aqui no Rio para Cinema e Desenho Industrial.

BD – Além dos tropicalistas, o que mais você costuma ouvir?

Gabriel Mar - Na adolescência eu ouvia muito rock dos anos 70/80 e indie rock. Atualmente, tenho escutado bastante o novo disco do Danilo Caymmi, "Alvear" [com previsão de lançamento para setembro 2011, o álbum tem projeto gárfico assinado por Gabriel]. O disco é incrível, cool. Também tenho ouvido muito [Maria] Bethânia, Djavan, Maysa, o álbum “Fábrica de poemas” da Adriana Calcanhotto, os baianos Magary Lord e Silas Giron... E Alice Caymmi, cantora e compositora maravilhosa por quem me apaixonei [Gabriel é namorado de Alice].

alice caymmi | foto de demian jacob
BD – E como você conheceu essa geração de músicos de São Paulo?

Gabriel Mar – Tudo começou com o Leo [Cavalcanti]. Como eu havia dito, eu tinha o Flickr com vários desenhos. Eu ainda morava na casa dos meus pais, em São Bernardo do Campo [SP]. A maioria das minhas ilustrações eu fiz lá. Nessa mesma época me tornei amigo virtual do Filipe Catto [cantor e compositor gaúcho]. Eu havia escutado o seu EP, “Saga”, e me surpreendi. Fui atrás e nos tornamos amigos. Quando o Leo foi para Porto Alegre fazer show, o Filipe, que já o conhecia, mostrou meus trabalhos para ele. O Leo achou bacana e me adicionou no Orkut. Ainda nem usávamos o Facebook! [Risos]. Trocamos telefones, nos encontramos e depois de um tempo fiz um pôster para a turnê dele pela Europa, antes do lançamento do “Religar” [disco de estréia do cantor/compositor]. Daí, o Thiago Pethit viu meu trabalho e também me pediu um cartaz.  Fiz uns três ou quatro para ele. Depois criei a capa do EP do Flávio Tris, que é amigo do Leo. Junto à isso, tive algumas ilustrações publicadas em revistas e comecei a ter maior visibilidade. Fiz uns jobs pra Galileu, Vida Simples, TPM e, por fim, a Unilever. Convidaram-me para fazer a capa e a contracapa da sua revista interna. Foi o maior trabalho que eu havia feito até então. O resultado foi ótimo e o pessoal curtiu bastante. Depois disso comecei a divulgar minhas ilustrações pelo Facebook. Postava um trabalho novo, saía marcando todo mundo e ficava ali aguardando, vendo quem curtia e os comentários. Foi desta forma que o Dudu Bertholini [estilista] entrou em contato comigo para fazer uma estampa para a Neon. Tudo foi muito rápido, todos esses contatos e propostas ocorreram um mês depois de ter publicado o pôster do Leo. 

religar europe kosmik tour 2010
BD – E a Thalma (de Freitas) e a sua vinda para o Rio de Janeiro?

 Gabriel Mar – Rolou no ano passado a festa de um ano do programa de rádio da Roberta Martinelli , o “Cultura Livre”, e ela me convidou para fazer o convite. Claro que topei. Nessa festa eu conheci o [fotógrafo] Yuri [Pinheiro], nos tornamos amigos e ele me convidou para trabalhar com ele. Três dias depois ele me ligou chamando para conhecer a Thalma, que estava produzindo o Circus Serendiptus [espetáculo/laboratório de composição espontânea apresentado no SESC Pompeia em 2010]. Ela havia feito um macarrão excelente, com cogumelos. Ficamos o sábado inteiro conversando e trocando ideias...

Thalma de Freitas – Havia pedido ao Yuri para te chamar, pois ele me mostrou as suas ilustrações e eu estava buscando justamente uma identidade visual para o projeto...
  
Gabriel Mar – Gabriel Mar – E aí, meses depois, vim para o Rio, para a casa da Thalma. Quando cheguei, a Cibelle, a Iara Rennó e a Andreia Dias também estavam morando aqui. Foi uma grande troca, além de ter sido extremamente divertido e prazeroso, aprendi muito com essas mulheres fantásticas. Comecei então a trabalhar com a Thalma, criando o seu site, que estará em breve no ar, e, paralelamente, fiz o projeto gráfico do novo álbum do Danilo Caymmi. Passo os dias criando postêrs, ilustrações, diagramações, desenhos. Estou gostando... Não sei o que vai ser daqui pra frente, mas eu não vim à toa pra esta cidade e é aqui que quero viver.

ilustração para flavio tris

flyer para thiago pethit | studio sp

cibelle | festival sonoridades

thalma estampa pôster | fotos yuri pinheiro

estudos | intuição e improvisação | danilo caymmi | alvear

http://gabrielmar.tumblr.com






3 Responses to de papel crepom e prata

  1. Anônimo :

    maravilhoso esse trabalho. adorei

  2. Anônimo :

    Gabriel manda muito !!!

  3. O Gabriel tem uma sensibilidade muito peculiar e um olhar certeiro, fui me apaixonando pelo trabalho dele dentro da cena musical e "fashionista" paulistana, o "Circus Serendipitus" era um laboratório de criação e de descoberta de talentos paulistanos capazes de criar uma atmosféra nova, a vanguarda paulistana sempre teve uma tradição mais "dura", estruturalmente intelectual e cosmopolita. O Gabriel se encaixava perfeitamente, ele tinha um trabalho orgânico muito fluido e ao mesmo tempo algumas ilustrações com dados de simetria harmonica que me remetiam a Bauhaus.
    Como ele mesmo diz aqui, tudo era sempre muito intuitivo e acredito que essas conexões de linguagens profundas se davam pelo gosto apurado que foi desenvolvendo por onde passou. O Gabriel é uma esponja, tudo que é visto por ele se torna forma e cor idealizada, logo em seguida vira obra de arte. No período que convivemos nesse "pré-miradouro" eu ficava extremamente impressionado com a rapidez que ele criava a partir dos temas, o pouco alí se tornava muito e exuberante hipnose. Os olhos quando pousam nas imagens do Gabriel tem muita dificuldade de sair daquele quadro. Antes de conhece-lo e posteriormente apresenta-lo para Thalma, passava horas (mesmo, de fato) observando a distribuição de cores, a disposição das formas, toda atmosféra que ele propunha me lembrava grandes nomes da pintura como Mucha e muitos da vanguarda alemã e russa da década de 60, por sinal o convite do "Cultura Livre" foi a gota d'água pra mim, ele postou no facebook no dia da festa e decidi que dali não passaria, ia atrás dele trocar uma idéia com aqueles olhos que expressavam um amontoado de referencias muito profundas. De fato muita coisa potencializou em nossas vidas a partir daquele 1 de setembro de 2010.
    Gabriel já é um artista contundente dentro do meio musical e a tendencia é o crescimento astronomico, as vezes penso nele aqui de São Paulo imaginando-o dono de uma grande agencia de design para o ramo do intretenimento como um todo.
    Tenho muito carinho e respeito pelo trabalho dele e desejo que ele continue nesse caminho promissor. Pro Gabriel se tornar um grande empreendedor da arte é só uma questão de tempo afinal, grande artista ele já é !!!!!

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