NO EMBALO DO AMOR V.1

do amor (da esq. para a dir.): gabriel mayall, gustavo benjão, ricardo dias gomes e marcelo callado | fotos: daryan dornelles
Caetano Veloso, Nina Becker, Canastra, Lafayette & Os Tremendões, Silvia Machete, Jonas Sá, Los Hermanos, Lucas Santtana, Nervoso e os Calmantes, Alice Caymmi, Totonho & Os Cabra, Rubinho Jacobina, Zumbi do Mato, Brasov, Tulipa Ruiz, +2, Quito Ribeiro, Jorge Mautner, Branco Mello, Iara Rennó... A lista de artistas e projetos que contam ou contaram com a colaboração dos integrantes da banda Do Amor é bastante longa e serve para demonstrar a importância de Marcelo Callado (bateria e voz), Gabriel Mayall (guitarra e voz), Gustavo Benjão (guitarra e voz) e Ricardo Dias Gomes (baixo e voz) na atual produção musical brasileira.

O grupo carioca é formado por amigos de longa data que, há mais de uma década, atuam no cenário musical da cidade. Entretanto, Do Amor só tomou forma com o lançamento do EP homônimo, em 2007. Sob a produção de Chico Neves, o primeiro álbum, Do Amor, foi lançado três anos depois, em parceria com os selos + Brasil Música e Estúdio 304. A banda se apresentou em diversas regiões do país, além da Europa e América Latina. No final de 2011, Marcelo, Gabriel, Gustavo e Ricardo se isolaram em uma fazenda no município de Três Rios (RJ), no interior do estado, para elaborar seu trabalho seguinte, Piracema (Disco Maravilha). Produzido por Daniel Carvalho, o álbum contou com a participação de Arto Lindsay, Moreno Veloso, Alice Caymmi, Donatinho, Pedro Sá, Rodrigo Amarante, entre outros. Piracema foi lançado em 2012 e recebeu bastante elogios da imprensa especializada, entrando nas listas de melhores do ano em diversas publicações. Nesse mesmo período, Do Amor também participou de dois tributos: Coletânea Re-Trato (Musicoteca, 2012) e Agenor (Joia Moderna, 2013), em homenagem a Los Hermanos e Cazuza, respectivamente.

Após convidar os integrantes do grupo para a entrevista, o Banda Desenhada foi encontrá-los em um restaurante no bairro do Humaitá, onde conversamos a respeito de sua trajetória, processo criativo e influências.

BANDA DESENHADA — Como surgiu o Do Amor? Cheguei a ler que vocês se reuniram pela primeira vez para formar a banda de apoio da Nina Becker...

MARCELO CALLADO — Não, quem escreveu isso está enganado. Deve ter sido alguma interpretação equivocada. Não surgimos para acompanhar nada de ninguém. Antes da Nina, nos anos 90, nós já éramos amigos e tocávamos com o Jonas [Sá].

RICARDO DIAS GOMES — Rolou de a gente se reunir várias vezes para tocar com outros artistas...

MARCELO — Muitas vezes! Mas nunca tivemos como objetivo sermos uma banda de acompanhamento.

RICARDO — Sim. O Do Amor cresceu e passou a fazer mais shows enquanto prosseguíamos com outros trabalhos, inclusive com a Nina... Na verdade, nossa história começa muito antes disso tudo.


BD — Então como foi?

GABRIEL MAYALL — A gente estudava em colégios próximos. Estudei com o Marcelo do jardim de infância à quarta série, mais ou menos... de oitenta e tantos até 1990. Depois, estudei com o Ricardo, de 91 até o final do colégio. Nessa época, o Marcelo conheceu o Gustavo.

MARCELO — Conheci o Gustavo em 92, no Colégio Andrews. Estudamos juntos por pouco tempo, mas começamos logo a tocar. A primeira banda que tive foi com ele. Chamava-se Manda-Chuva. Era composta por mim, o Gustavo e o Filipe, que hoje em dia é historiador.

RICARDO — Nós começamos a nos reunir na casa do Marcelo para fazermos umas levadas...

GUSTAVO BENJÃO — Tinha um quartinho com uma bateria e a gente levava um amplificador.

RICARDO — Rolavam uns encontros. Tem umas fitas cassete gravadas em que a gente fica caotizando bonito! [risos] Mas também tocávamos umas musiquinhas... acho que esse foi o embrião do Do Amor.

GABRIEL — Eu, Marcelo e Gustavo também tivemos outra banda, a Carne de Segunda. Tocamos por um tempo, mas nunca fizemos muita coisa. Chegamos a gravar um disco, mas não lançamos. Paralelamente, continuávamos tocando em outros projetos. E isso até, mais ou menos, 2005, quando sentimos que havia chegado a hora de nos unirmos novamente e fazermos as nossas próprias músicas.

MARCELO — Nós já vínhamos compondo há um bom tempo, mas não havia nenhum projeto em que pudéssemos apresentar nossas músicas. De vez em quando uma delas entrava no repertório da Nina ou do Brasov, mas ali não era o melhor espaço para colocarmos as nossa idéias mais autorias, de banda, de sermos só nós quatro..

RICARDO — Foi um momento de pura libertação quando decidimos criar a banda.

GUSTAVO — Foi quase uma volta à adolescência! [risos]

RICARDO — A gente fez um showzinho em Botafogo e pouco tempo depois estávamos indo para Salvador!

GUSTAVO — O nosso segundo show foi em Salvador. Foi algo muito animador. Porque, com a Carne de Segunda, o lugar mais distante que conseguimos ir foi ao centro da cidade, sabe? [risos]. Tocar na [festa] LOUD! ou no Garage [Rock]. Mas, com o Do Amor, nós rodamos o país.

MARCELO — Íamos a São Paulo quase toda semana.

GUSTAVO — Fizemos muitos shows no Studio SP...

MARCELO — Uma coisa que contribuiu muito para que isso acontecesse foi a nossa experiência profissional. Nós já tínhamos uma noção do que deveríamos fazer e como fazer. Não queríamos ficar só tocando para os outros, ganhando uma graninha, quitando as contas e, entre um projeto e outro, ficar coçando o saco.  Não queríamos isso para nossas vidas, sabe? Então tivemos que correr atrás. E como é que se corre atrás? Foi aí que toda essa nossa experiência veio a calhar. Começamos a mexer a bunda tendo uma noção muito clara do que deveríamos fazer.

GABRIEL — Também decidimos investir na banda. Antes, costumávamos esperar até aparecer um convite bacana com uma infra legal para podermos tocar. Com o Do Amor, não. Gravamos e prensamos um EP que serviu de cartão de visitas para divulgarmos a banda e vender nossos shows.

GUSTAVO — Quando a gente gravou o EP, a banda não tinha nem nome ainda! [risos] Não fazíamos a mínima ideia do que escrever na capa do disco! [risos]

MARCELO — A gente definiu o nome naquele prédio ali! [aponta para um prédio ao lado]

GUSTAVO — No apartamento da minha mãe! A gente se encontrou ali para definir o nome. A banda já existia, mas não havia feito shows ainda. Queríamos colocar logo o disco na rua. Saímos gravando, passamos três dias no Ponto de Cultura, o estúdio do Chico Neves, em Vargem Grande [bairro da Zona Oeste do Rio de Janeiro]. Depois, fizemos o show de lançamento na Baratos da Ribeiro. Essas gravações foram as primeiras coisas que rolaram... Nossa história é bem atípica, porque não fizemos shows para amadurecer o repertório ou o som da banda. Começamos com as músicas prontas! Não havia muito que amadurecer. [risos] Ensaiamos para ver como iríamos tocá-las e partimos para a gravação.

GABRIEL — Apesar de sermos muito amigos, tivemos que nos esforçar para que as coisas engrenassem. Se ficássemos só com os nossos  encontros, levando um som, não teríamos conseguido fazer nem metade do que fizemos. Tivemos que nos agitar, mostrar que a parada era séria. Aí, em 2008, coincidiu de ninguém estar com a agenda fervendo. Conseguimos nos dedicar à banda e fazer vários shows.

GUSTAVO — Fizemos quase 50 shows!

GABRIEL — E o perfil dessas apresentações foi mudando. No início de 2008, a gente ainda estava naquele período de investimento, mas já no meio do ano começamos a ganhar um cachezinho e conseguimos nos apresentar em vários lugares. No ano seguinte, começamos a gravar o primeiro disco, junto com o Chico Neves. Lançamos em 2010 e saímos tocando. Fizemos muitos shows...


BD  Vocês fazem muitos shows fora do Rio, mas e aqui? 

RICARDO — É meio foda, né?... Essa minha reclamação também serve como uma autocrítica. Porque nós realmente não forçamos a barra para formarmos público nem criar espaços na cidade.

MARCELO — O Ricardo tem razão. Reclamamos muito do Rio, mas, por outro lado, acho que ficamos um pouco deslumbrados com as viagens e com a facilidade de agendar shows em um esquema bacana em outros lugares. Acabamos por deixar o Rio um pouco de lado, porque teríamos que cavoucar espaços por aqui. Essa dificuldade em se apresentar no Rio, junto com a nossa incapacidade de lutar contra isso, é realmente muito ruim. Porque nada melhor do que você ter um bom público na sua cidade. E a gente não tem muito. O Do Amor tem mais público em São Paulo e em BH do que aqui. E aqui a gente chegaria ao local do show sem gastar nada! Não precisaríamos de muita infra, sabe?

GABRIEL — Na verdade, costumamos passar uns tempos sem tocar nos lugares, sem fazer shows, para que haja uma procura. Mas, aqui, a gente não consegue fazer uma temporada contando somente com a bilheteria. Se não houver uma estrutura por trás, vai ser complicado. Mas, para desmitificar um pouco essa história, nós já fomos tocar em São Paulo acreditando que iríamos fazer bilheteria e nos ferramos! [risos]

MARCELO — A sensação que eu tenho é que em São Paulo há um interesse maior por novidades. Não que o Do Amor seja uma novidade, mas... o pessoal se esforça mais em sair de casa para ver um show: “Pô... os caras vão lançar disco novo, vou lá.” Mesmo sendo longe. O lance também é que São Paulo é uma cidade maior e com mais dinheiro.

GABRIEL — Em São Paulo, há o costume de você ir a um show para se divertir. No Rio, as pessoas se divertem tomando chopp! Gastam uma fortuna bebendo chopp!

MARCELO — Às vezes bebem na porta da casa de show! E não entram!

GABRIEL — É bizarro. E muito frustrante... Quando a  gente começou com o Do Amor, por volta de 2008, o momento era muito bom para bandas iniciantes. Os festivais estavam interessados em artistas novos. Não que fosse algo muito fácil. Tivemos que investir do nosso próprio bolso. Tivemos que pagar algumas passagens para tocar em certos lugares... mas, com isso, conseguimos criar um público interessado em nosso som.

GUSTAVO — Acho que ficamos mal acostumados. Porque começamos a rodar na época desses festivais. Fizemos o Goiânia Noise Festival, Bananada, Grito Rock, Calango, Se Rasgum... Era um público incrível! Chegamos a tocar para duas mil pessoas! E a molecada com uma puta vontade de ver! Não importando qual era a banda ou se ela vinha do Rio ou de Macapá!

GABRIEL — Eu lembro que, nessa época, fomos tocar aqui, na Cinemathèque, junto com Os Telepatas, de São Paulo. Eles vieram pra cá na raça. Demos uma força: fomos buscá-los na rodoviária e chamamos uma galera para ir ao show... só que eu me lembro dos meus amigos perguntado: “Mas que horas você vai tocar? Tu acha que vou ver essa porra antes?! Tá de sacanagem!” Foi uma coisa superagressiva. E eram meus amigos!

GUSTAVO — Uma galera da zona sul, sabe?

GABRIEL — E são esses mesmos caras que volta e meia dizem que o público no Rio de Janeiro é difícil e complicado! É difícil porque você mesmo faz por onde! Se as pessoas não mudarem de comportamento, a coisa vai continuar desse jeito! A Cinemathèque nem existe mais, virou um prédio comercial... E ainda tem mais esse drama! Não há muitos lugares para tocar. Mas acredito que, quando você quer realmente fazer uma parada, você inventa, vai atrás e dá um jeito.

GUSTAVO — E aí, como já estamos na estrada há um tempo e não somos mais tão novinhos assim, começamos a ter demanda de outros trabalhos, além das demandas familiares. Não temos mais saco pra tocar no Rio e ganhar, sei lá, 40% da bilheteria porque a casa vai ficar com 60%! Não queremos esse esquema. Preferimos esperar um pouco mais e fazer um show no Sesc, em um esquema bacana, com uma boa estrutura...

GABRIEL — Mas, ao mesmo tempo, acho importante que a gente faça shows dependendo de público e bilheteria. Você acaba sendo estimulado a divulgar, a tentar fazer com que as pessoas compareçam. Isso também dá um gás. Você acabada mantendo um diálogo mais direto com seu público. E isso é muito bacana.

RICARDO — Também há outro problema: faltam bons produtores e bons empresários no mercado. É muito desgastante para uma banda ter que agitar um esquema desses, marcar shows, fazer divulgação... então, quando rola um convite bacana, a gente vai lá e toca. É muito mais tranquilo. Tudo é organizado sem nosso esforço.


BD  A quantidade de projetos que vocês integram é impressionante. Como fica o Do Amor nessa história? Imagino que a agenda seja bem caótica...

GABRIEL — Não temos tantos compromissos assim. Nossas agendas não são tão frenéticas quanto as pessoas imaginam...

GUSTAVO — Mas, ainda assim, atrapalha. Porque não tem como...

RICARDO — Eu adoro tudo o que faço, tenho o maior prazer em tocar em todos os projetos em que participo, mas é claro que no Do Amor o envolvimento é maior. Por mais que eu possa me divertir à beça ao lado de outros artistas, é aqui que a coisa se aprofunda. Para mim, a banda é o meu trabalho mais importante, onde me envolvo mais.

GABRIEL — Como nos conhecemos há muito tempo, quando fomos montar a banda, nós já sabíamos de antemão dos trabalhos paralelos de cada um. Todos aqui já trabalhavam e viviam de música. Então, essa parada de agenda não foi algo inesperado. Pode parecer um perrengue, mas, ao mesmo tempo, traz certo alívio. Porque, assim, o trabalho com a banda nunca fica claustrofóbico, entende? Sempre temos outras coisas para fazer, para dar uma aliviada. Às vezes, podemos ficar um pouco angustiados das agendas não baterem, mas sabíamos que isso iria acontecer desde o início. Mas o nosso compromisso com o Do Amor é real. Até por conta do estágio em que a banda está.

BD  O primeiro disco de vocês lembra muito a cena do pop rock dos anos 90 . Essa sonoridade foi intencional? 

MARCELO — É, ele tem essa pegada. Acho que isso se deve muito à produção do Chico. Ele tem um pouco dessa referência e acho que acabou imprimindo essa sonoridade às músicas. Engraçado você falar isso, porque, outro dia, tornei a ouvir o disco e também tive essa impressão.

GUSTAVO — O primeiro álbum tem essa coisa de ter muitos ritmos diferentes...

GABRIEL — A gente não pensou muito a respeito de como seria o som, mas...

MARCELO — [Interrompendo e virando-se para o entrevistador] Mas você acha que o Piracema também tem essa pegada anos 90?!

BD  [Um pouco espantando] Hã... não... [risos] Na verdade, o Piracema parece estar bastante sintonizado com o que é feito atualmente na cena carioca...

MARCELO — Ah, pois é! Eu também acho! [gargalhadas] Estava até conversando com o Pedro [Sá] sobre isso, outro dia, das diferenças do primeiro para o segundo. O Pedro também ressaltou essa parada e eu concordei. O primeiro disco foi para um lugar muito bacana, que remete aos anos 90, mas que não é muito natural para a banda. Nosso diálogo com o Chico foi maneiro pra caralho, mas acabou levando a gente para esse lugar que, a princípio, jamais iríamos. Diferente do Piracema. Nesse, a gente sentou, discutiu e vislumbrou um lugar que era mais a nossa cara.

GUSTAVO — Mas talvez o primeiro disco tenha uma cara anos 90 porque nós realmente gravamos algumas músicas daquela época.

MARCELO — Exatamente!

GABRIEL — “Pepeu baixou em mim”...

GUSTAVO — É! O Marcelo já tinha o riff antes de gravarmos!

GABRIEL — Esse maluco faz vários riffs de guitarra sinistros! [risos]

GUSTAVO — “Perdizes” também foi assim!

GABRIEL — No disco novo também. Ele ficava só na bateria mandando pra gente [cantarola]: taranananá!

MARCELO — É verdade, é verdade! [risos]

BD  E quanto a vocês terem uma sonoridade que lembra a de outras bandas do Rio?

RICARDO — Estamos inseridos nesta cidade, neste contexto, tendo as mesmas experiências, inclusive artísticas, que outras pessoas que vivem aqui. É natural.

GUSTAVO — Mais ou menos, né? [risos] Acho que a gente vive mais fora da cidade do que aqui! [risos]

MARCELO — Mas existe certo deboche, certo tipo de humor nas bandas cariocas que é bastante recorrente. Você vê isso no Tono, no Letuce... É uma parada nitidamente carioca, diferente das outras coisas que estão sendo feitas no resto do país.

GUSTAVO — Não só o humor, mas a maneira de fazer e pensar a música... A forma como encaramos tudo isso é diferente da forma dos paulistanos que, por sua vez, também é diferente da forma do pessoal de Recife.

RICARDO — Também há algumas coincidências... todas essas bandas circulam pelos mesmos estúdios, gravando com os mesmos técnicos e produtores. E a maneira como o equipamento é utilizado imprime algumas particularidades ao som.

GUSTAVO — Se bem que Piracema não é um disco carioca, né? Ele é fluminense! [gargalhadas] Mas é verdade! Foi um disco que não foi feito na cidade do Rio de Janeiro! É fluminense, pô! [gargalhadas] Ele foi feito no interior do estado!

GABRIEL — Aliás, quando fomos à Europa, em 2011, para divulgar nosso primeiro disco, ficamos muito impactados com a viagem. Tocamos bastante na Espanha, em festivais muito legais, ao lado de bandas importantes. Fomos também para a Argentina, tocamos umas sete vezes por lá... e isso tudo influenciou Piracema. Então, apesar de a gente ser daqui, o disco também é um retrato, mesmo que sutil, desses giros.

RICARDO — Fora que, desde a adolescência, a gente sempre escutou música do mundo inteiro.

MARCELO — No primeiro disco, estávamos muito fechados aqui no Rio, na cidade do Rio. A gente saía de nossas casas e ia para o estúdio. Ficávamos sempre nesse vai e vem. E só. O disco ficou muito ambientado na zona sul do Rio. Já o Piracema teve esse negócio de irmos para uma fazenda em Três Rios...

RICARDO — Além de termos viajado bastante e conhecido outras pessoas, outras bandas...

MARCELO — O som ficou mais cosmopolita. Embora a gente sempre tenha ouvido de tudo...


BD  A geração de vocês já recebeu diversos nomes, sendo inclusive chamada de neotropicalista, o que remete diretamente a Caetano Veloso e a banda Cê [da qual Marcelo e Ricardo fazem parte]. Isso chega a ser um incômodo?

MARCELO — Mas tudo hoje em dia é neotropicalista ou pós-tropicalista! [risos]

GUSTAVO — Esse termo, “neotropicalismo”, é muito genérico. Claudinho & Buchecha é neotropicalista assim como a gente é neotropicalista! Todo mundo é fruto desse diálogo que a tropicália teve com o rock e a música de vanguarda. Seria leviano dizer que a gente não é neotropicalista! A gente é, pô! Até a minha mãe é neotropicalista! [gargalhadas]

RICARDO — Não tem jeito, né? Se o Caetano for a um show e falar que se identificou muito com o espírito da banda, que o remeteu à época da tropicália, ele não estará mentindo. O problema é quando se cria um termo como esse para identificar um grupo específico. Aí, as particularidades de cada banda são esquecidas.

GABRIEL — Um dia desses, eu estava vendo uma entrevista com os integrantes do Godflesh, uma banda de industrial que eu me amarro. Eles já estão meio coroas e tal, e estavam falando justamente dessa parada, do momento em que foram taxados de metal industrial. A banda estava apenas levando um som, mas aí algum jornalista escreveu que aquilo se tratava de “metal industrial”. Eles até entenderam o que o cara queria dizer com aquilo, mas não se identificaram com o termo, entende?

GUSTAVO — Às vezes, esses rótulos são apenas uma forma de agrupar, de agregar... Acho que eles ajudam muito quando você é jovem e etá despertando para a música. Você precisa se situar, achar a sua turma, se encaixar em algum grupo... Todo mundo já passou por isso. Então, essas denominações não deixam de ser um modo de você se achar nesse mundo e também de socializar. Só que a música não tem somente essa função, sabe? E, quer queira, quer não, essas classificações estão muito associadas ao mercado fonográfico...

GABRIEL — E, hoje em dia, o mercado já era! Pelo menos no sentido mais tradicional. Então, para que inventar um rótulo novo?!

GUSTAVO — Pois é! Mas também, se quiserem enquadrar o Do Amor, beleza, só que vai ser meio complicado, porque a gente pode estar em qualquer prateleira: de rock, de carimbó, de pop, de reggae, de MPB...

RICARDO — Nunca nos preocupamos com isso. Temos uma visão muito descompromissada, não pensamos em um disco como se fosse um produto. O nosso processo de trabalho é muito genuíno, vem das nossas experiências, tanto individuais quanto coletivas. Nunca entramos para gravar um disco tendo definido qual será o resultado final.  E isso também vale para os shows. Não temos um roteiro definido. Nossa performance  no palco não segue nenhum padrão predeterminado...

GUSTAVO — Quando fizemos o segundo disco, não nos preocupamos com a expectativa do público...

RICARDO — A gente chutou o balde!

GUSTAVO — Porque havíamos passado por um processo de amadurecimento e tínhamos que encarar isso. Precisávamos andar pra frente. Não queríamos repetir a fórmula do primeiro disco. Se bem que ali não houve fórmula alguma! [risos]

GUSTAVO — É. Nós fizemos as coisas do nosso jeito.

RICARDO — Na época de gravação do primeiro disco, um amigo nosso levou um inglês de uma grande gravadora para conhecer o nosso som. Ele foi ao estúdio do Chico e escutou “Vem me dar”. É uma música com compasso 5/4. Ela tem uma coisa meio africana, um refrão animado e tal. O cara ficou superempolgado! Mas depois, ele ouviu “Chalé”, que é um rock arena. E a faixa seguinte era um samba [“Morena russa”]! O cara achou uma merda! [risos] Perdeu totalmente o interesse, porque ele esperava um disco com todas as faixas parecidas.

GUSTAVO — E ele falou isso: “Eu não sei em que prateleira poderei colocar vocês.”

BD  E isso não causa nenhuma frustração?

RICARDO — Eu até visualizo a possibilidade de um dia a gente chegar e falar: vamos gravar um disco de punk ou um disco de sei lá o quê. Até podemos fazer isso. Mas não é algo natural. Durante os ensaios e as gravações, cada um de nós traz referências e ideias muito diferentes. Seria muito leviano da nossa parte fazer um disco só de reggae, por exemplo.

MARCELO — Enquanto isso, a gente vai fazendo esse som neotropicalista! [gargalhadas]

GABRIEL — É difícil pra gente seguir uma linha tão definida. Porque nós quatro compomos. E a motivação para fazer uma música ou uma letra é algo muito particular. O tema que você vai abordar... as canções têm disso. E aí o estilo mais adequado para cada uma delas dependerá de um monte de fatores.

RICARDO — As canções dependem muito do nosso estado de humor.

GUSTAVO — Quando faço uma música, não crio muita expectativa. Foi algo que estabelecemos em nossa relação. Não posso chegar ao estúdio e dizer que o baixo será assim ou assado e pronto. Não é assim que funciona. A minha ideia original pode se transformar em uma parada totalmente diferente.

MARCELO — E, de uma forma ou de outra, a gente sempre se entende.

RICARDO — É um exercício de não se levar tão a sério. E de respeitar o outro.

GABRIEL — E o fruto dessa experiência acaba se tornando algo único. Isso é muito importante para nós.

BD  Vocês tocam com muitos músicos. Isso deve acabar influenciando bastante o som de vocês...

GUSTAVO — É uma via de mão dupla. Assim como os artistas com quem tocamos pode nos influenciar, nós também podemos influenciá-los.

GABRIEL — É algo espontâneo que surge durante o processo...

RICARDO — Também fazemos um exercício de pesquisa que, certamente, acaba influenciado a banda. A gente sai à caça de músicas bem diferentes, não importando se atuais ou do passado. É aí cada um de nós tem que selecionar três delas para mostrar aos outros...

GABRIEL — A gente faz uma mixtape [Fita-mistura Do Amor] com essas misturas...

GUSTAVO — Há 40 meses!

GABRIEL — Nós mandamos as músicas para um amigo nosso que monta a playlist, colocando na ordem que ele achar melhor, fazemos a capa como se fosse uma coletânea e a disponibilizamos no Facebook.

RICARDO — Isso é do caralho. Eu acho essas fitas incríveis. E elas não deixam de ser parte do nosso trabalho. Todos nós paramos para ouvir... é necessário tempo, concentração...

GUSTAVO — Nós fazemos como exercício, mas o pessoal que é fã, vai à página e baixa... é uma coisa que a gente gosta de fazer e que é pra ser desafiadora mesmo. O pessoal vai ter que sentar, ouvir e tentar compreender. Não dá pra ter preguiça.


BD  E como o carimbó entrou no som da banda? Ele está presente desde o primeiro disco...

Marcelo — A nossa relação com a música do Pará vem de bem antes. Eu me lembro de ter ouvido pela primeira vez um carimbó em um show do Acabou La Tequila, em 1995. Eles tocaram uma música do Pinduca, “Sinhá Pureza”. Depois de ter ouvido, fui perguntar ao Kassin que som era aquele. No dia seguinte, fui à caça do disco e, quando comprei, chamei o pessoal pra ouvir. Então, vem daí essa nossa referência.

Ricardo — Mas temos influências de várias outras coisas...

BD  Falando em influências, Arto Lindsay colaborou com vocês em Piracema. É interessante perceber que, apesar de ele estar participando ativamente de diversos projetos, poucas pessoas falam da sua atuação...

GUSTAVO — O Arto é a eminência parda da boa música brasileira! [risos]

RICARDO — A participação dele foi muito importante para nós. Além de ser musicalmente muito aberto, o Arto tem uma postura avant-garde que nos interessa bastante. Ele é um artista incrível.

GABRIEL — E ele está por aqui! É muito bom poder vê-lo dialogando com a cena de improvisação carioca.

MARCELO — Acho que houve uma feliz coincidência. O Arto estava fora do Rio havia um tempo. Ele voltou para cá na mesma época em que essa cena começou a crescer, por causa da Comuna e da Audio Rebel. Esses dois lugares começaram a fomentar uma cena experimental na zona sul. Houve essa coincidência. E, não sei bem como, o pessoal pegou o Arto como padrinho, como uma fonte de referência.

GABRIEL — A galera foi meio atrás dele. Mas o próprio Arto também estava curioso em saber o que estava acontecendo por aqui.

RICARDO — E ele foi muito receptivo. Houve uma identificação com essa cena do Rio.

MARCELO — O Arto também estava precisando disso, sacou? De uma galera mais nova que dialogasse com ele diretamente. Eu o assisti pela primeira vez no Sesc Pompeia. Foi o Kassin quem me levou. Depois, ele se apresentou no Sesc Copacabana.

GABRIEL — Eu vi! Com o Melvin [Gibbs]! Eu sou muito fã dessa cena no wave, do DNA, que era a banda do Arto naquela época. Quando era moleque, ouvia direto. Íamos à casa do Pedro [Sá] e sempre havia uns discos espalhados por lá. Ficávamos curiosos e ouvíamos. Conhecemos um monte de bandas assim, ao acaso. Gravávamos tudo em fitas cassete para poder levar. Foi assim que conheci o Arto e o John Zorn... Eu me lembro que havia um disco dos anos 90, Aggregates 1-26 [1995], do Arto Lindsay, que eu me amarrava. A gente até tocou com ele uma música desse álbum [“Absurd children”], no show de lançamento do Piracema. O Arto é um cara histórico. Tipo uma Velha Guarda da Portela. [risos] É uma figura superimportante. O seu trabalho influenciou não só brasileiros, mas uma galera do mundo todo!

GUSTAVO — Boa! Arto Lindsay, a Velha Guarda da No Wave! [gargalhadas]


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