pela orla dos novos tempos

fotos: daryan dornelles
Lucas Santtana (43), Mallu Magalhães (23), Romulo Fróes (42), Tim Bernardes (22), Karina Buhr (39), Karol Conka (26), Criolo (38)... Eis uma geração, no mínimo, atípica. Não bastasse a flexibilidade em torno da idade dos artistas que a integram, ela também se destaca por ser a primeira a se desenvolver fora das grandes gravadoras e mídias tradicionais. Sua origem também é bastante difusa, tanto pela diversidade de cenas (que descentralizou a produção do eixo Rio-São Paulo), quanto por, esteticamente, dar continuidade a uma linguagem que já vinha sendo trabalhada por artistas e bandas da década de 90 como, por exemplo, Chico Science & Nação Zumbi, Adriana Calcanhotto, Paulinho Moska, Acabou La Tequila e Planet Hemp. Tornando o seu mapeamento ainda mais difícil, boa parte desta nova geração só ganhou certa visibilidade no início desta década, ao suprir o vácuo deixado pela forte retração do mercado fonográfico.
Entretanto, mesmo que haja dificuldades em encontrar a origem desta geração, é certo que, no final dos anos 90 e no início dos 2000, alguns músicos começaram a fomentar um cenário que, mais tarde, possibilitou o aparecimento de inúmeros jovens artistas. Lucas Santtana, Wado, Fernando Catatau, Otto, Kassin e Domenico Lancellotti, entre outros, não só foram responsáveis por esta configuração como também se tornaram referência para a atual produção musical independente brasileira.
Nascido em Salvador e radicado no Rio de Janeiro desde 1993, o cantor e multiinstrumentista Lucas Santtana chegou a colaborar, em início de carreira, com Chico Science & Nação Zumbi, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Marisa Monte. Em 2000, lançou seu primeiro disco, “Eletro Ben Dodô” (Natasha Records). Três anos depois, inspirado na obra do geógrafo e sociólogo Milton Santos, lançou “Parada de Lucas” (Diginois Records). Em seu álbum seguinte, “3 Sessions in a Greenhouse” (Diginois Records, 2006), Lucas foi acompanhado pela banda Seleção Natural e contou com a colaboração especial de Tom Zé. Nesta época, criou o blog Diginois, onde passou a escrever sobre os mais diversos assuntos: música, literatura, cinema, esportes, comportamento, etc. Em 2009, lançou seu quarto disco, “Sem Nostalgia” (Diginois Records/Yb), contando com a participação de Curumin e Do Amor. O álbum também foi lançado na Europa, em 2011, pela gravadora Mais Um Discos. “Sem Nostalgia” foi eleito melhor disco estrangeiro de 2011 pelo jornal francês Libération e o sexto melhor disco do ano pela revista francesa Les Inrockuptibles. No Brasil, foi incluído na lista de 10 melhores do ano da revista Rolling Stone e dos jornais Folha de S.Paulo, O Estado de S. Paulo e O Globo. Três anos depois, o disco ainda rendeu uma nova versão, “Remix Nostalgia”, onde nomes como Tosca, Deerhoof, Burnt Friedman, JD Twitch, M. Takara e Rodrigo Brandão reconstruíram faixas do álbum. Em 2012, Lucas também lançou “O Deus que Devasta mas Também Cura” (Diginois Records), contando com a participação de CéU, Letieres Leite, Curumin, Gui e Rica Amabis, Guizado, Kassin, entre outros. Ainda nesse ano, gravou “Amor, Meu Grande Amor” (Ângela Rô Rô/Ana Terra), para o CD “Coitadinha Bem Feito – As canções de Ângela Rô Rô” (Jóia Moderna) .
Um dos nomes mais importantes de sua geração, Lucas foi convidado para uma entrevista pelo Banda Desenhada. Em meio a uma série de shows e envolvido na produção de seu próximo disco, o músico nos encontrou em um bar do Baixo Gávea (RJ), onde conversou a respeito de sua carreira, influências, tropicalismo e mercado fonográfico, entre outros assuntos.

BD – Além de ser uma referência muito forte em seu primeiro disco, a tropicália vem sendo constantemente citada como a peça-chave para se entender o atual cenário musical brasileiro. Essa constante ratificação do movimento tropicalista não pode, algumas vezes, soar um pouco opressora para as novas gerações?

Lucas Santtana  Eu acho que devemos utilizar nossas referências de forma saudável. Fui influenciado pelo tropicalismo, assim como o tropicalismo foi influenciado por outros sons que o antecederam. A questão é cíclica. Provavelmente, eu deverei influenciar alguém no futuro. Este sempre foi o ciclo da música popular. Por exemplo: o Prince tem muito do James Brown e o Beck já demonstrou em alguns discos ter influência do James Brown e do Prince. Isso é muito normal. Todos nós sofremos influências, mas elas são múltiplas e vêm de todos os lugares. No meu primeiro disco, eu morava em Salvador. Então, nada mais natural do que eu ser influenciado pelos sons de lá. Mas não só de Caetano [Veloso] e [Gilberto] Gil. A Timbalada também foi muito importante para mim. Eu ia direto ao Candeal para ver os seus ensaios. Ainda nem haviam colocado asfalto naquela região. Era tudo muito precário. Mas os ensaios eram lindos, no chão de barro, com 100 percussionistas tocando. A Timbalada tem um lance muito interessante: ela mistura vários ritmos diferentes em células de música pop com uma influência muito forte do candomblé. São células rítmicas muito potentes. Na época, eu percebi isso e utilizei bastante essa ideia no “Eletro Bem Dodô”. O disco é muito percussivo. Todos os instrumentos são tratados de forma percussiva. Era o que eu vivia na época. Já no meu segundo álbum, por exemplo, havia muita influência dos bailes funks cariocas. No “3 Sessions...”, fui influenciado pela música dub jamaicana e o afrobeat. Produzi o disco em uma época em que ia a muitas festas de dub, aqui no Rio... Comigo as coisas sempre foram assim, entende? Vou vivendo, vou experimentando e isso vai refletindo em meus discos. Mas enfim, não podemos ter somente o tropicalismo como referência. E se esse for o caso de algum artista, que ele consiga ter um filtro que o permita a partir daí criar outras coisas. Um artista não pode viver de covers ou apenas reverenciando o passado. Espero, sinceramente, estar bem longe disso... Mas você tem razão. A questão é complicada... Parece que tudo que é feito hoje no Brasil precisa referenciar os anos 60 e setenta. Tudo remete a essa época! Inclusive algumas discussões muito atuais! Veja a história das biografias não autorizadas! Tem um monte de gente aí que está reclamando, sendo que, no Brasil, esse tipo de literatura é praticamente inexistente! Nos Estados Unidos, qualquer artista tem pelo menos umas quinze biografias! Qualquer um pode escrever a respeito! É importante que haja essa diversidade e esse volume de informações. É enriquecedor! Nos Estados Unidos há material sobre tudo. Você encontra livros, fotos, vídeos...  Aquele país tem o registro de toda a sua história. Já o Brasil sofre muito com isso. Quando o Lírio Ferreira fez um filme sobre o Cartola [“Cartola – Música para os Olhos”, 2007], o [jornalista] João Máximo, d’O Globo, caiu de pau, dizendo que ele não estava sendo fiel à história de Cartola. O que parece que o jornalista não entendeu é que o Lírio estava dando a sua impressão, algo bastante particular, pessoal. Então, é importante que haja mais material sobre a música popular brasileira, inclusive com vozes dissonantes, e que elas não se restrinjam ao tropicalismo ou a um único período de nossa história. Assim, parece que paramos no tempo! Como se nada de relevante tivesse surgido após os anos 70. E tanta coisa já aconteceu de lá pra cá...  Não tem ninguém falando ou escrevendo a respeito da minha geração, por exemplo. E ela é muito importante para entender o que está sendo feito hoje, por conta das inovações que trouxemos e do cenário que construímos. Então, ao mesmo tempo em que reconheço que o meu som tenha influência do tropicalismo e de outros tantos movimentos e gêneros que me antecederam, quero, por vontade própria, estar distante deles. Eu, como artista, preciso apontar para novas direções. Não posso passar o tempo todo celebrando o passado. Eu não gosto disso. Afinal, não fiz um disco chamado “Sem Nostalgia” à toa. [Risos].


BD – Você tem uma relação muito próxima com a música eletrônica, não?

Lucas Santtana – Sim, eu gosto bastante. Ouço de tudo em se tratando de música eletrônica. Ultimamente, tenho ouvindo muito ghettotech, que é um som eletrônico, digital, com referências locais, mas estritamente urbanas, como o tecnobrega e o funk carioca. Sempre gostei muito dessas misturas e tenho o hábito de ir às festas para dançar. Fico alucinado nas pistas. Existe um tipo de música que pertence somente à cultura de pista, que não funciona muito bem para você ouvir em casa ou com headphone, mas que, nas pistas, com o som bem alto, fica incrível. Procuro extrair dessa cultura alguns elementos para a música que faço. Crio um link, mas não é minha intenção fazer música para as pistas. Gosto de um som com várias camadas. Em “Pela Orla Dos Velhos Tempos” [do álbum “3 Sessions in a Greenhouse”], por exemplo, há uma batida, mas adicionei uns batás cubanos, sample de Kraftwerk e naipe de metais... Já fiz muitas festas com o Chico Dub e com o Afonso [Serpa], do Confronto Soundsystem, de Brasília. Também montei com o David Cole o Sensorial Som Sistema, onde só tocávamos dub e sons jamaicanos. Mas há muito tempo que não discoteco. Teve uma época em que eu e o Plínio Profeta tínhamos uma festa na Melt [bar localizado no Leblon, RJ] onde tocávamos de tudo: pop, hip hop, música brasileira... Sempre gostei de discotecar, principalmente porque, nesse momento, consigo apresentar músicas novas para as pessoas. O DJ tem essa tarefa, né? De levar uma informação, de fazer as pessoas ouvirem novos sons em um momento em que estão totalmente abertas e entregues. Acho essa tarefa superimportante. 

BD  Você chegou a lançar um álbum de remixes... 

Lucas Santtana – No “Parada de Lucas”, o DJ Marlboro fez um remix de uma música [“Tática de Machine”] . Já no “3 Sessions...”, eu disponibilizei as faixas abertas, permitindo às pessoas fazerem remixes e postarem no site. Após o lançamento de “Sem Nostalgia”, a gravadora da Europa chamou vários produtores e DJs para fazerem um disco de remixes, o “Remix Nostalgia” [2012]. Mas, neste caso, quase não foram criados remixes para a pista de dança. 

BD – “O Deus Que Devasta Mas Também Cura” provavelmente é o seu álbum mais climático, inclusive por conta da utilização de cordas e samples de música clássica. Porque você escolheu este caminho?

Lucas Santtana  Algumas coisas surgem de forma muito espontânea. Quando comecei a utilizar esses elementos, eu não sabia que eles acabariam dando uma unidade ao disco. Pintou em uma música, pintou em outra e, quando percebi, senti que essa seria a onda de “O Deus...”. Não foi muito racional, sabe? As ideias dos arranjos foram surgindo aos poucos. Inicialmente, eu chamei o Letieres Leite para fazer um dos arranjos com os músicos da Orkestra Rumpilezz e da Orquestra Sinfônica da Bahia. Depois, enquanto produzia as outras canções com o Rica Amabis, senti necessidade de colocar algumas cordas. E aí sampleamos alguns trechos da “Nona Sinfonia” de Beethoven e do “Quarteto para Cordas em Sol Menor” de Debussy. Foi assim que os instrumentos orquestrais entraram no disco. Na verdade, eles sempre foram muitos presentes na minha vida, na minha história musical. Estudei música clássica dos 15 aos 19 anos, sabe? Então achei massa essa retomada. Mas ela acabou sendo feita de forma diferente, através dos samples. Por uma questão de preferência mesmo. Gosto de capturar a sonoridade das gravações, da época e dos meios em que aquele som foi gravado. Esse registro antigo me atrai muito e acho ótimo poder utilizá-lo em algo novo, contemporâneo. Quando você sampleia não são só as notas que você captura, mas também a textura musical e, às vezes, isso me interessa mais do que gravar os instrumentos com os métodos atuais.

BD – O Arto Lindsay é um dos artistas que mais está envolvido com a sua geração e, principalmente, com a cena carioca. Além disso, ele é um de seus parceiros mais constantes...

Lucas Santtana – O Arto, além de meu parceiro, é um artista muito importante e influente. Outro dia, o King Krule, um inglesinho de 20 anos que está fazendo um barulho bom na Europa, selecionou uma música do Arto para uma mixtape que produziu para uma rádio. No programa, King disse que havia sido muito influenciado por ele. Quando viajo para a Europa, é comum os DJs tocarem algum disco do Arto antes dos meus shows. A revista The New Yorker fez uma lista dos 50 músicos mais influentes de Nova York e o Arto estava lá. O cara influenciou o Sonic Youth! Você sabe, a banda meio que nasceu por causa dele e do DNA [dupla nova-iorquina composta por Arto e Robin Crutchfield]. Quando me perguntam em entrevistas a respeito das minhas referências, eu sempre respondo: “Arto Lindsay”. E é verdade. Ele me ensinou tudo sobre textura. Se você ouvir “Prize“ [1999], “Invoke” [2002] ou “Salt” [2004], vai achar que esses discos foram feitos hoje! É impressionante como eles soam atuais. São verdadeiras obras-primas! Arto sempre esteve muito à frente de seu tempo. Para ele, música transcende essa questão de melodia e harmonia. Eu fico chocado! Porque mesmo que você tenha falado dessa influência, a minha geração conhece ainda muito pouco do seu trabalho, da sua relevância. Conheci o Arto nos anos 90, na época do “Mundo Civilizado” [1996]. Foi o seu primeiro disco solo e ele me convidou para participar. A partir daí, começamos a fazer parcerias: “Into Shade”, “Hold Me In”, “Uma”, “I Can’t Live Far From My Music”, “Nighttime In The Backyard”... Ele é o meu parceiro mais prolixo. E é engraçado, porque tenho muita dificuldade em sentar com alguém para compor. Normalmente, eu faço tudo por e-mail. Mas com o Arto não! Hoje mesmo a gente vai se encontrar para fazer algumas paradas. 

BD – Você começou sua carreira bem no início da crise das grandes gravadoras. Como foi viver este processo de transformação do mercado?

Lucas Santtana – Lancei o “Eletro Bem Dodô” na mesma época em que o Cidadão Instigado e outras bandas estrearam. Nessa época a cena independente era muito mais difícil. Havia pouquíssimos festivais, pouquíssimas oportunidades de shows, além dos cachês serem muito baixos. A gente realmente teve de abrir um caminho na base do facão e acho que, com isso, ajudamos a criar uma estrutura melhor para os artistas que vieram depois, como a Tulipa [Ruiz] e o [Marcelo] Jeneci. Quando eles surgiram, já havia mais festivais, mais lugares para tocar e os cachês eram um pouco melhores. Mas a minha história é meio engraçada, porque o meu primeiro disco saiu pela Natacha Records e foi distribuído pela BMG, uma major que hoje nem existe mais... Já o meu segundo disco, “Parada de Lucas”, foi lançado pelo meu selo, o Diginois, que eu criei só para lançar meus trabalhos e que eram distribuídos pela Trama, uma gravadora independente que tinha uma estrutura bem interessante. A partir do “3 Sessions...”, eu mesmo passei a fazer a distribuição. Foi a partir daí que as vendas dos meus discos aumentaram! Entendi como as coisas funcionavam e fui à luta. Então, na verdade, estar fora do mainstream foi muito mais lucrativo. O “3 Sessions...” foi um divisor de águas. Com ele, eu consegui consolidar uma identidade artística que possibilitou às pessoas se identificarem com as minhas músicas. Foi ali que se deu a liga. Nessa época, eu também havia criado um blog, o Diginois, onde escrevia sobre tudo. Talvez por causa disso, as pessoas passaram a entender melhor quem eu era e o que pensava. Antes, eu me sentia um organismo estranho dentro daquele mundo. Mesmo na Trama havia algum incômodo. Quando criei meu próprio ecossistema, quando passei a fazer a minha própria distribuição, tudo passou a funcionar de forma mais fluida. As coisas começaram a rolar: aumentaram a quantidade de shows, os cachês e os convites...

BD – Ser um organismo estranho parece ser a sina da cena atual, seja por não ser absorvida pelas antiga indústria, seja por, em sua maioria, ter um som avesso a qualquer tipo de classificação ou catalogação...

Lucas Santtana – Mas quem fazia essas catalogações eram as gravadoras e o mercado... Eles precisavam rotular o seu som para poder vender. As majors pagavam jabá, tinham assessorias de imprensa gigantescas... Até mesmo Caetano e Gil referem-se à MPB como uma sigla de uma produção relacionada a um período e a um mercado específicos. Nem eles mais se reconhecem como tal! Para ser franco, eu acho realmente impossível de catalogar a minha geração. Sou diferente da CéU, que é muito diferente do Cidadão Instigado, que é completamente diferente do Hurtmold. Apesar de termos interseções, fazemos sons muito distintos. Aí eu te pergunto: como é que você vai catalogar? Eu não vou chamar o que faço de MPB. Não acredito que seja MPB. Você vai chamar o Curumin de quê?! A única coisa que talvez seja possível dizer é que tal som é um crossover de tais e tais coisas. Todos esses artistas têm uma liberdade enorme de criação, podendo fazer seus discos do seu jeito, sem nenhuma pressão de quem quer que seja. Podemos lançar um disco de punk rock e o outro ser de bossa nova! Todos desenvolveram seus trabalhos em uma época que já não havia mais a possibilidade de pertencer a uma gravadora, de pagar jabá... tivemos que criar nossa própria estrutura, nossos próprios esquemas... E muitas vezes o que funciona para um artista não funciona para outro. Cada um tem seu público e uma maneira própria de gerir o seu business... Não é que eu não queira que cataloguem meu som, é que simplesmente eu não acredito nisso. Não é uma marra. Sinceramente, se alguém chegar até mim e falar “a sua música é isso”, e eu concordar, vou achar o máximo! Acho que todos nós vamos gostar disso! Mas até hoje isso não aconteceu. Não vejo problemas em chamar o meu som de pop, para mim está bom. Eu realmente acho que faço música pop, mas não concordo quando tentam classificá-lo de MPB. Não acho que o que eu faço é MPB. 

BD  Ao que parece, chamá-los de independentes é o que menos gera problemas...

Lucas Santtana  Eu também questiono um pouco esse termo, “independente”. Porque, se você for pensar bem, Ivete Sangalo e Ana Carolina gerem seus trabalhos da mesma forma que nós. As gravadoras meramente distribuem os seus discos. Elas são donas de seus fonogramas, pagam a produção do disco, pagam a assessoria de imprensa, pagam o jabá, ou melhor, o espaço publicitário...

BD –  Hã? Como assim?

Lucas Santtana  Hoje em dia o jabá é chamado de espaço publicitário. Você tem direito até a nota fiscal e tudo mais.  É só pagar uma grana que você ganha um espaço de tantos minutos ao dia para divulgar a sua música, como se fosse um anúncio de sabonete! Todo mundo sabe disso. E, mesmo assim, esses artistas supermainstream também são independentes! Eles não pertencem a nenhuma gravadora. A gravadora não faz mais nada! Ela não tem mais dinheiro pra pagar uma megadivulgação. Então, na realidade, o business desses artistas é igual ao nosso. A diferença é que eles tem mais grana e, com isso, conseguem divulgar melhor o seu trabalho. Ou seja, essa definição, “artista independente” também está errada, porque hoje todo mundo é independente.

BD – Mas afinal, é só o dinheiro que diferencia vocês de artistas como Ivete e Ana Carolina? Não há nenhuma intenção ou objetivo que os tornem diferenciáveis?

Lucas Santtana  Na verdade, somos bem diferentes. A Ana e a Ivete são artistas populares. Elas acreditam e trabalham para isso. Suas músicas têm um viés realmente popular. O que é bem diferente da proposta da CéU, por exemplo, que faz uma música totalmente voltada para o seu gosto, para as suas referências, e que está longe de ser tão popular assim. A música da CéU não é povão, sabe? Não é! Há uma sofisticação ali. Assim como a minha. Mas tanto eu quanto ela somos músicos populares, fazemos música popular. As pessoas vão aos nossos shows e cantam. Nossas músicas são assoviáveis. Podemos até fazer algumas experimentações sonoras, mas ainda assim continuamos fazendo canções. Não se trata de música experimental.

BD  Sim, mas ao mesmo tempo em que existe essa sofisticação, parece que boa parte de vocês não se preocupa em delimitar uma fronteira, inclusive não se isentando de dialogar com os artistas superpopulares...

Lucas Santtana – Não vejo problema nenhum nesse diálogo. E acho que isso só demonstra como essa geração que eu faço parte está crescendo e chamando a atenção. Um amigo que trabalha com artistas do mainstream chegou a falar comigo: “Cara, em termos de mercado, vocês estão numa ascendente, estão crescendo, já o popular deu uma estagnada”. Isso não aparece na mídia, mas artistas populares que levavam 15 mil pessoas para os seus shows, hoje em dia estão levando quatro mil com esforço. Este mercado saturou. Enquanto isso, nós crescemos com uma estrutura menor, mais enxuta. Eu não tenho uma infraestrutura enorme, não tenho um cenário que custa seiscentos mil reais. Isso facilita o meu crescimento. Quem é do mainstream, para gravar um disco, tem que gastar uma puta grana. Porque ninguém vai gravar de graça. No meu caso, quando vou fazer um disco, chamo o Metá Metá, chamo a CéU, e tudo mundo vai amarradão. E, lógico, quando chamado, também vou. A gente tem esse espírito cooperativo.

BD – Você também direcionou seu trabalho para o mercado externo. Como foi isso?

Lucas Santtana – Foi totalmente ao acaso. Eu prospectei muito antes de lançar o “3 Sessions...”: fiz pesquisas e mandei e-mails com o material para algumas gravadoras lá de fora, mas ninguém me respondeu. Então, acabei desistindo de tentar lançá-lo no exterior. Achei que não iria rolar nada e deixei quieto. Daí, fui fazer um show em Belo Horizonte e apareceu o Lewis Robinson, que é o dono da gravadora inglesa Mais Um Discos. Ele assistiu ao show, ouviu o “3 Sessions...” e disse: “Cara, eu já trabalhei anos na indústria fonográfica europeia e estou montando agora meu próprio negócio. Ouvi seu disco e gostaria muito de lançar seu próximo trabalho na Europa, como estreia do meu selo”. É claro que eu aceitei. Mas também conversei com a gravadora e os produtores, dizendo que não me interessava ser vendido como artista brasileiro, de world music, com cota em festival. Queria ser visto como artista internacional. Quando “Sem Nostalgia” foi lançado, ficamos espantados com a receptividade. O disco obteve críticas excelentes em diversas publicações, entrando na lista dos dez melhores discos do ano na Les Inrockuptibles. Ninguém esperava aquilo! Imediatamente conseguimos uma agência [Bacana], uma das maiores da Europa, que se interessou pelo meu trabalho e passou a vender meus shows. Então, por conta disso, nos últimos dois anos, já fiz quatro turnês pela Europa. Foram mais de cinquenta apresentações. E é interessante porque, como não sou tão famoso assim no Brasil, eu acabo tocando para um público majoritariamente europeu. Não toco para brasileiro na Europa que está com saudade de casa, entende? E isso é muito bom. Porque é outro tipo de público, é outro tipo de escuta. As rádios na Europa, principalmente as rádios públicas, têm muita força. Há muitos anos que elas tocam de tudo. Então, o ouvido da classe média europeia é muito mais aberto que o nosso. Os europeus ouvem uma variedade enorme de sons e, para eles, aquilo é absolutamente normal. Já a música popular que toca nas rádios brasileiras é tão simples, mas tão simples, que ela tem sido auditivamente deseducadora. E isso vem ocorrendo há tempos. Os instrumentos são baixos, a voz é alta e a mixagem é a coisa mais Lexotan possível. É horrível, cara! Hoje em dia, até os mais jovens estranham quando surge alguma sonoridadezinha diferente! É uma pena. E é por essas e outras que é sempre muito instigante tocar na Europa. Este ano vou começar uma nova turnê, com o disco novo... 

BD – Disco novo? Você pode falar um pouco sobre ele?

Lucas Santtana – Ainda está bem no começo. A ideia é lançar o CD em agosto, no Brasil, e em setembro no exterior. Vamos ver... às vezes o disco nos surpreende e trai nossos planejamentos. [Risos]. Porque só dá pra lançar quando ele estiver bom. Mas já comecei as gravações e estou tentando acelerar um pouco o processo, para que haja tempo de escutá-lo e maturá-lo. Convidei o Thiago França e o Kiko Dinucci para participarem. Eu havia dirigido um projeto em São Paulo, o “Dub 40”, no qual o Thiago França tocou. Foi muito legal e acabei aproveitando a oportunidade para convidá-lo para o disco. Gosto muito desses projetos paralelos, eles são ótimos para que eu possa entrar em contato com músicos que sempre admirei e que não tocam regularmente comigo. Acho muito importante essas trocas.

BD – Você falou do seu blog, o Diginois... Como é a sua relação com a internet? 

Lucas Santtana – Tenho uma vivência online diária. Sou viciado mesmo. [Risos]. Uso a internet não só para a divulgação de meu trabalho, mas também para pesquisa. Várias ideias que tenho vêm daí, de alguma informação que eu li e que não necessariamente está relacionada à música. Quando lancei o “3 Sessions...”, lancei pelo meu blog, o Diginois. Durante muitos anos eu o atualizava diariamente. Mas a empresa que o hospedava faliu e aí migrei para [o portal] O Esquema. Depois de algum tempo, senti a necessidade de separar meu blog da minha página oficial e criei o lucassanttana.com.br e o lucassanttana.com. A versão brasileira tem todos os discos para baixar, mas só pode ser acessada no Brasil, por cauda da Mais Um. No exterior não há permissão para download...  

BD – Como é a questão de download gratuito na Europa?

Lucas Santtana – Lá fora, se você der, eles baixam. Mas é o que o Lewis falou: “Cara, eu estou investindo em seu trabalho, pago assessoria de imprensa, prenso o disco... eu gasto uma grana! Se você botar de graça, vai quebrar a minha perna!”. Ele nunca irá receber de volta o dinheiro que investiu. Isso é totalmente compreensível. É como deveria ser no Brasil também. Só que vivemos em um país continental, onde a logística de distribuição europeia é inaplicável. Aqui, o download gratuito ajuda bastante a você ser ouvido e, consequentemente, a ser chamado para fazer shows. No Brasil, os artistas ganham assim, com shows. Por enquanto, este modelo está funcionando. Está ajudando a minha geração a crescer. Mas todos nós, no fundo, não gostaríamos de distribuir o nosso trabalho de graça. Porque ele custa dinheiro! As pessoas às vezes se esquecem disso. [Risos]. Mas aqui já virou uma coisa comportamental: “Se todo mundo disponibilizou gratuitamente, você também tem que disponibilizar, senão eu não vou te ouvir”. Mas, pelo menos, estamos conseguindo crescer dessa maneira, ganhando mais visibilidade. O “Deus...”, no primeiro mês, teve 15 mil downloads! Eu jamais vendi 15 mil discos em um período tão curto de tempo! Hoje em dia, nem um disco de um artista do mainstream vende 15 mil! Nem com uma puta assessoria! Então o que fazer? Você vai esperar que as pessoas comprem? A quantidade será ínfima! No máximo umas mil pessoas terão acesso ao seu disco no primeiro mês. É ridículo! Não tem comparação. Não tem como você não botar para baixar de graça. Aqui meus CDs vendem basicamente em shows. Até porque a venda digital no Brasil é péssima! Inclusive para quem é muito popular. Ainda não temos essa cultura, entende? Mas lá fora, ainda existe um mercado que faz com que a venda de discos seja viável, mesmo que haja uma crise ou outra. Você deve ter ficado sabendo dos problemas com os serviços de streaming... O Tom Yorke e o produtor Nigel Godrich retiraram alguns discos do Spotify, alegando que recebiam muito pouco. Eles chegaram a comentar que esse esquema de streaming só está reproduzindo o que as antigas gravadoras faziam, servindo de intermediária e ficando com a maior parte da grana. Então, essa questão digital ainda é um problema, até mesmo para o mercado externo.

3 Responses to pela orla dos novos tempos

  1. Ei Márcio, ei Lucas, que foda! Obrigada! Curti muito.

  2. Muito legal mesmo, parabéns e obrigado!!
    Joanatan Richard

  3. Não conhecia o trabalho dele, li a entrevista ouvindo e curti tanto o som quanto a entrevista!!

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