moleque maravilhoso


fotos: daryan dornelles

A partir dos anos 70, ao estabelecer um severo pragmatismo, a indústria fonográfica passou a ignorar uma representativa leva de artistas. Tendo em comum o acentuado experimentalismo de seus trabalhos, Jards Macalé, Sérgio Sampaio, Tom Zé, Jorge Mautner, Walter Franco, Luiz Melodia, Itamar Assumpção, Arrigo Barnabé e outros tantos músicos foram denominados pela imprensa como “malditos”, sendo taxados de anticomerciais e, muitas vezes, vistos como excêntricos ou mesmo problemáticos para as gravadoras. Alguns, no intuito de dar continuidade às suas carreiras e não cair no ostracismo, tentaram se manter em um mercado alternativo ainda em formação. Décadas depois, já em meio a um cenário bem mais propício, uma geração de músicos independentes passou a ocupar um espaço inimaginável para os “malditos” de outrora. Influenciados muitas vezes por estes, Kiko Dinucci, Romulo Fróes, Tulipa Ruiz, Anelis Assumpção, Andreia Dias, Tatá Aeroplano, Rafael Castro, Fernando Catatau, Trupe Chá de Boldo, entre outros, puseram em cheque antigos dogmas ao fugirem dos padrões de uma MPB institucionalizada.
Nascido em São Paulo e criado em Lençóis Paulista, a 280 km da capital, Rafael Castro representa como ninguém a atual cena independente brasileira. Compositor, produtor e multi-instrumentista, lançou, sozinho, nada menos que 10 trabalhos: “Fazendo Tricot” (2006), “40 dias em Hong Kong” (2007), “A Serenata do Capeta” (2007), “Combustão Espontânea” (2007), “Amor, Amor, Amor” (2008) “Maldito” (2008), “Raiz” (2009) e “O Estatuto do Tabagista” (2009), “RC canta RC” (2011) e “Lembra?” (2012). Gravados na casa de seus pais, Rafael disponibilizou gratuitamente os nove primeiros sem jamais tê-los lançado em formato físico. Em 2010, após comprar um gerador, partiu para a estrada ao lado de sua banda de apoio, Os Monumentais, para realizar uma série de apresentações gratuitas em locais abertos, na tentativa de criar um novo público e conquistar um espaço distinto do já habitual circuito de casas de shows. Conhecido por seu senso crítico e por suas canções politicamente incorretas e mordazes, Rafael, em seu mais recente álbum, “Lembra?”, reiterou parte de suas convicções, tomando para si todo o processo de produção e dando continuidade a sua verve de cronista em  músicas como “Surdo-Mudo” e “A Menina Careca”. Como diferencial, investiu no lançamento físico do álbum, empenhando-se em sua divulgação e convocando alguns colegas de cena, como Leo Cavalcanti, Tulipa Ruiz e Pélico para colaborarem em algumas faixas.
Aproveitando a sua vinda ao Rio, onde gravou o programa “Experimente”, do canal a cabo Multishow, convidamos Rafael Castro para uma entrevista ao Banda Desenhada. Após a sessão de fotos no estúdio Fotonauta, o músico nos falou de suas músicas, processo de criação, carreira e a cena independente.

BD – Você é extremamente representativo da cena independente atual: lançou dois EPs e oito discos em apenas cinco anos, sendo apenas o último físico. Além disso, tocou todos os instrumentos e gravou tudo de forma caseira. De certo modo, você acabou agregando à sua carreira as principais características dessa geração...

Rafael Castro – Cara, quando comecei a gravar minhas músicas, em 2004, 2005, ainda não tinha esse papo de geração. Lancei meu primeiro disquinho em 2006. O Leo [Cavalcanti], a Tulipa [Ruiz], esse pessoal todo, não havia surgido ainda. Então, essa ideia de geração só passou a fazer sentido mais tarde, quando a galera começou a circular por aí e entrou na mesma onda. Inclusive compartilhando o mesmo público.
  
BD – Sim, mas a sua história é um bom exemplo de como a sua geração conseguiu produzir e conquistar seu espaço de forma totalmente independente, não?

Rafael Castro – É... A minha carreira começou de um jeito bem diferente. Eu gravava em casa. Lancei os primeiros quatro álbuns sem ter banda e sem fazer shows. Só na pilha de fazer disco! [Risos]. Sempre gostei de tocar e pirei quando descobri como gravar! Fiquei uns anos só fazendo música, gravando os discos em casa. Não fiz um show sequer. É totalmente diferente do modelo antigo de mercado. Quando você gravava um disco, já tinha a turnê toda preparada e agendada. E nos meus primeiros discos não havia nada! [Risos]. Na época, eu nem tinha a intenção de trabalhar com isso. Só depois é que virou um projeto de verdade. Aí comecei a tocar e agora estou lançando este disco físico.

BD – E a questão dos equipamentos? Li que você chegou a utilizar aqueles microfones bem precários de computador...

Rafael Castro – Eu comecei a fazer música com o que tinha em casa, né? Não comprei absolutamente nada. Era o computador de casa com aquela plaquinha de som bem vagabunda. Aí comecei a fuçar, testar e pensei: “Por que não fazer um disco assim”? Até hoje acredito que as diferenças entre uma gravação caseira e uma feita em um grande estúdio são muito poucas. Apesar de gostar de testar equipamentos e até ter adquirido alguns mais convencionais para gravar, ainda acho do caralho o negócio do low-fi, do microfoninho... [Risos]. Pode não ficar com aquela qualidade que a gente está acostumada, mas você consegue criar um som bem diferente daquele chato e insosso que se ouve por aí, que utiliza sempre os mesmos recursos e formatos de gravação e mixagens.A mix tem que ser desse jeito, com PAN [panorama do som] desse jeito, a master tem que responder em tal frequência... Fica aquele som igual, né? E eu tenho um puta tesão em ouvir sons diferentes. Porra, faça seu disco do jeito que der ou quiser! De repente até pode ficar com uma textura interessante que dará todo um encanto ao seu som.


BD – Além desse espírito “do it yourself”, as suas músicas têm a peculiaridade dos temas. Boa parte delas é politicamente incorreta. Imagino que você tenha noção do quando isso inviabiliza um diálogo com as mídias tradicionais, não?

Rafael Castro – Acho que por ter começado a fazer música para mostrar pros amigos, pra cantar no churrasco ou na calçada tomando umas cervejas, elas acabaram saindo muito livres, fora dos padrões do que se ouve nas rádios. No interior, a gente fica o tempo todo tocando violão e tomando breja! [Risos]. Não estava compondo aquelas músicas para vender. Não tinha essa pretensão. Elas nasciam dessa forma estranha basicamente para dialogar com o meu grupo, a minha turma, a minha cidade. Elas tinham a obrigação de ser fora dos padrões, sabe? Pô, essa era a nossa cultura, a cultura da nossa gangue. A gente se juntava e cantava. Eu estava escrevendo para essas pessoas. As nossas piadas eram essas. As músicas representavam as nossas conversas. Como se fossem as canções de guerra de uma tribo! [Risos]. E, afinal, todo mundo conversa sobre assuntos estranhos na maioria do tempo! [Risos].

BD – E você manteve esse viés no “Lembra?”...

Rafael Castro – Eu estava envolvido em várias coisas quando resolvi lançar esse disco. Inclusive ele era pra ser um disco duplo, com 28 músicas. Também tinha feito um bem pop antes desse e que não lancei. É um negócio rock’n’rollzinho, com músicas chicletonas, refrão e tal. E estava começado a fazer outro... Aí, quando pintou a ideia de lançar um disco físico, não sei se por puro masoquismo ou por ser um desafio, pensei: “Vou fazer o mais complicado, o mais difícil”. Tive essa curiosidade, saca? Estava com um disco pop prontinho, começando a fazer outro pop e no meio tinha esse com músicas freak out. Aí falei: “Vou começar por esse e depois vejo no que vai dar”. As pessoas não fazem essa opção, têm medo de fugir dos padrões, de soar meio freak. Mas não quero dizer com isso que as minhas músicas são escrachadas, de humor escrachado. Algumas são até sombrias e tristes.

BD – Não se preocupou com a receptividade do disco? Imagino que haja um preço por ter uma imagem freak...

Rafael Castro – A gente tem que conquistar os espaços, né? E se eu conquistar com esse trabalho que é mais difícil, aí estou feito e vou poder fazer qualquer coisa! [Risos]. Não vou conseguir fazer um disco mais dark do que esse, cara. Pelo menos não nos próximos anos. Pode ser que ele não toque em uma ou outra grande rádio. Mas pode tocar em outras. Ou não! Tanta coisa que se faz aí sem tocar na rádio e funciona. Estamos distribuindo esse disco para músicos, jornalistas, blogueiros, pesquisadores musicais... E todo mundo que ouve gosta disso, dessa coisa humana, muito sincera, desse papo de bar onde rola de tudo. O Rodolfo [Pelegrin, produtor] chegou a falar assim: “Meu, por que você pôs essa música? Uma mulher com câncer! Isso aí vai dar polêmica! O que é que vão falar?!”. O pessoal ficou com o cu na mão. Mas o que acontece é que até agora ninguém tem falado nada! Ninguém disse: “Ah, meu, minha mãe tem câncer”. Aliás, a música chegou a uma pessoa que tem uma tia com câncer. Elas estavam numa rotina de ir ao hospital direto, por conta da quimioterapia, e ouviram a música e acharam do caralho! “Ela ainda pega quem inventou esse câncer e enche de paulada, cospe na cara”. Acho que a pessoa se sente um pouco mais forte com isso, porque é meio raivoso, mas também tenta levantar o ânimo. 

BD – E como é ser músico independente em Lençóis Paulista? Você mora lá ainda?

Rafael Castro – Eu tô casado com a Tulipa, né, cara? Eu moro mais na nossa casa do que em Lençóis. Fico muito em São Paulo, com ela. Mas a cada quinze dias passo um tempo em Lençóis. Ou então quando ela sai em turnê e fica muitos dias fora. Aí dou uma passada na casa dos meus pais e fico gravando. Lá tem os instrumentos, os equipamentos e tudo mais. Estou sempre assim, indo e voltando. 

BD – Deve ser difícil viver somente de música morando no interior... 

Rafael Castro – É. Não dá. Você tem que sair. Tem que ir pra todo lugar que der. No começo é muito louco. A gente está aí tocando faz uns quatro anos. E era só barzinho, barzinho, barzinho... São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul... Já viemos pro Rio também. Mas nessas circuladas você acaba criando uma reputação. As pessoas gostam do seu trabalho, divulgam e você vai crescendo, vai sendo valorizando. Ficando em casa não dá, né? Não importa se em Lençóis, São Paulo ou em qualquer outro lugar.


BD – Parece que você está mais empenhado na divulgação desse novo álbum do que dos anteriores, inclusive com uma postura, vamos dizer assim, menos lúdica em relação ao seu trabalho...

Rafael Castro – Pois é, esse disco é até mais difícil que os outros. Mas a ideia é trabalhar, né cara? Antes, o que a gente tinha? Uma banda que tocava pouco, em lugares pequenos e pra pouca gente. Mas, pô, a gente gosta de tocar e quer fazer isso, tá ligado? A gente está ficando velho, tem que ganhar uma grana! Não dava mais pra ficar nessas aí. E as ideias foram surgindo aos poucos. Pensamos em finalmente lançar um CD. E queremos que ele circule pra valer. Então, pesquisamos e resolvemos pagar uma assessoria. Disparamos com a imprensa. Queremos fazer a coisa do jeito certo, saca? Vamos fazer igual a todo mundo. E vamos procurar agora fazer shows só em lugares com estrutura decente. E finalmente ganhar! [Gargalhadas]. Se não der certo, não vai dar mais pra fazer isso. Vou ter que trabalhar em outra coisa e aí não vai mais sobrar tempo pra fazer porcaria nenhuma.

BD – Imagino que fazer netwoking para você não seja fácil...

Rafael Castro – É, tem esse negócio... você tem que tomar uma breja com as pessoas, né? Não dá pra mandar só e-mail. Em todos os setores da vida rola brodagem. Por exemplo, eu fui a uma festa de um canal de TV em que um fulano de tal ganhou um prêmio, sendo que o diretor do canal é o empresário do cara! É brother, meu. Tomou cerveja, "tamo junto". Tudo festinha, tá ligado? Você toma uma breja e pronto! Fica tudo certo. A gente precisa estar na rua, trombando com a galera que mexe o doce, que faz a coisa acontecer...

BD –Falando em mercado, antes do “Lembra?”, você lançou um EP interpretando canções de Roberto Carlos. Como foi isso? Ele liberou as músicas para você? Chegou a acontecer algum incidente?

Rafael Castro – Não. Ninguém falou nada. Lancei sem autorização. Não estou vendendo, né? Não estou ganhando nada. É uma versão que fiz e está aí para quem quiser ouvir. É público. E se tocar na rádio, acho que ele ganha. Eu não sei. Aliás, tocou na rádio! A Patrícia Palumbo [jornalista e apresentadora do programa Vozes do Brasil] tocou! Eu pirateei então! [Gargalhadas]. Na hora eu pensei o seguinte: “Me processa! Quanto você quer? 20 milhões? Pega então minha guitarra porque não tenho mais nada, cara”! [Risos]. Eu não gosto do Roberto, pô! [Gargalhadas]. Foi um projeto [do festival Outras Noites] que participei e aí falaram: “Ah, tem não sei quem e não sei quem lá”. Escolhi o Roberto. Não conhecia muito, fui dar uma olhada. Até passei a gostar um pouco depois que me envolvi. Mas ele é muito careta, muito coxinha. O Roberto Carlos é o responsável por uma caretice que está aí até hoje. Esse cara é o culpado. Ou um dos culpados. [Risos]. No início ele deu um puta gás para a juventude, mas depois ficou perpetuando um papo católico que já deu. 

BD - Os críticos e jornalistas costumam falar bastante da influência do rock 70 em suas músicas. O que te atrai nessa estética?

Rafael Castro – Sim, sim. Então, cara, na real, eu acho que a minha cabeça era muito “raulseixística” quando comecei a compor. Gosto da forma como ele criava... havia uma versatilidade maior nas canções dos anos 60 e 70. Às vezes você conseguia uma estrutura de canção muito louca que hoje não se vê mais. Não é nem questão de timbre. Não gosto de coisas vintage. Não priorizo nem tento fazer isso. Acho que meu som acaba ficando assim por causa da forma como gravo, por causa da minha tosqueira. [Risos]. Deve ser por isso que falam dessa influência setentista. Mas tenho uma onda totalmente contra coisa velha. Há um tempo, eu não conseguia nem mais ouvir discos antigas. Não gostava mesmo. Queria que esses medalhões fossem enterrados! [Risos]. Deixem os novos aparecerem e ganhar seu ECAD, pô! [Gargalhadas]. Os caras já são consagrados e ficam ganhando milhões aí. E nêgo não para de falar deles. Tenho raiva disso! O negócio dos Beatles me dá náuseas! Há pouco tempo, lançaram todos os seus discos em vinil. Sabe, meu? Aí, vão faturar de novo! Que canseira! Ficar promovendo aquilo que todo mundo já ouve. Bonequinho, vinil... Daqui a pouco vão lançar a obra completa em cassete! [Gargalhadas].

BD – É a necrofilia da arte! [Risos].

Rafael Castro – Dá uma preguiça desses caras... Mas a minha referência de anos setenta vem de criança, quando ficava ouvindo os discos do meu pai. Acho que acabei ficando com essa pegada. Mas tenho um pé em várias outras coisas. Não gosto muito quando leio uma matéria sobre mim em que alguém já começa assim: “Rafael Castro com suas referências setentistas”... Pô, desculpa, foi um problema técnico! [Risos].


BD – Mas todo mundo tem uma genealogia, não? Os LPs que ouvimos quando somos crianças ou adolescentes acabam influenciado bastante...

Rafael Castro – Sim. E às vezes você fica viciado, incapaz de se renovar totalmente. E não tem como você mudar do dia pra noite. Não tem como acordar amanhã gostando de outra coisa. Mas acho que venho mudando bastante. Esses dois discos que escolhi não lançar são bem diferentes. Meu objetivo é sempre fazer um negócio que não seja nada, saca? É o ponto de partida. Tô compondo, tô gravando, faço uma coisa que parece não sei o quê, vai pra lixeira, tá ligado? Porque aí não está certo. Volto pro zero e começo de novo. Não gosto de parecer alguma coisa que já conheça. Não é assim que se brinca. Se for pra fazer isso, monto outro projeto. O projeto Rafael Castro é tentar inventar o máximo que puder. Posso usar qualquer coisa como referência, mas não pode ser um negócio repetido, sabe? Pô, você é um artista e vai pintar um quadro igual ao do Picasso?! O Picasso é melhor que você, meu! [Risos].


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