a dona da voz


fotos: daryan dornelles




Criolo, Tulipa Ruiz, Karina Bhur, Letuce, Cícero, Tono, Apanhador Só, Graveola e o Lixo Polifônico, Nevilton, A Banda Mais Bonita da Cidade, Márcia Castro, Siba, Mombojó, Lirinha, SILVA, Wado, Banda Uó, Felipe Cordeiro... Sim, a música independente brasileira vai muito bem, obrigado. Nos últimos anos, em meio às turbulências do mercado fonográfico e a ascensão das mídias alternativas, centenas de artistas de diferentes regiões do país finalmente conseguiram espaço para apresentarem seus trabalhos. Estes, em grande parte, revigoraram um cenário musical que há tempos se mostrava restrito e esteticamente saturado. Alguns nomes conseguiram até mesmo ultrapassar as barreiras de seu nicho, circulando em áreas exclusivas ao mainstream, consagrando-se em prêmios e obtendo visibilidade inimaginável para artistas deste porte. Contudo, paralelamente à democratização dos meios de produção e divulgação, se consolidou uma estrutura bastante peculiar que, com o passar do tempo, mostrou-se hierárquica e limitadora para a produção independente. Nesta nova engrenagem, assessorias de imprensa assumiram o papel que até bem pouco tempo era limitado às grandes gravadoras, exercendo um poder - ainda que bastante sutil - sobre os veículos de comunicação tradicionais e alternativos. Além disso, preocupados com a divulgação de seus trabalhos e a inserção em um mercado tão complexo, alguns artistas passaram a cumprir uma questionável rotina, onde discos são lançados visando as supervalorizadas listas dos melhores do ano elaboradas por revistas, sites e blogs. Estes últimos, dando pouco espaço para crítica e discussão, replicam releases e conteúdos previamente formatados por assessorias e outras mídias. Por fim, vem se observando uma clara preferência de alguns jornalistas e formadores de opinião por determinadas cenas ou tendência que, mais do que um recorte devidamente embasado, caracteriza-se pelo destaque às suas predileções. Assim, ainda que em sua essência resida uma rica pluralidade, a cena independente brasileira começa a exibir as suas primeiras fissuras, abrindo espaço para reflexões e críticas necessárias para o seu amadurecimento.
Inserida na cena mineira e ciente do árduo trabalho que desempenha um músico distante do foco midiático, a cantora e multi-instrumentista Juliana Perdigão é a entrevistada da semana no Banda Desenhada. Nascida em Belo Horizonte, Juliana iniciou sua carreira em 1996, participando do coral Voz e Companhia. Formou-se em licenciatura em música pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e, a partir de 2000, passou a colaborar com diversos músicos da sua geração, como Kristoff Silva, Pablo Castro, Flávio Henrique e Vitor Santana, integrando também os projetos Elefante Groove e Misturada Orquestra. Como clarinetista, participou do grupo de choro Corta Jaca, com quem lançou dois álbuns, “Corta Jaca” (2005) e “Mina de Choro” (2007), e um DVD, “Na Levada do Choro - Um Almanaque Musical” (2007). Em 2010, ingressou na banda Graveola e o Lixo Polifônico, uma das mais importantes da cena independente mineira. No ano seguinte, patrocinada pela Natura Musical, lançou seu primeiro disco solo, o “Álbum Desconhecido”, onde deu destaque aos compositores contemporâneos de Minas e São Paulo.
Atualmente dividia entre o Graveola, a carreira solo e a participação na banda de Tulipa Ruiz, Juliana Perdigão concedeu esta entrevista em meio à pequena temporada que realizou em agosto, no Oi Futuro, no Rio de Janeiro. Recebendo o Banda Desenhada em um hostel no Bairro Peixoto, a musicista nos falou de sua carreira, da influência do choro e as dificuldades por que passa a cena independente mineira.

BD – Você tem uma relação intensa com a cena paulistana: gravou Tulipa Ruiz e Romulo Fróes, que também participou do álbum, assim como Carlos Careqa e André Abujamra; fez uma parceria com Gustavo Ruiz e, além disso, está integrando a banda da Tulipa. Como se deu esse contato?

Juliana Perdigão – A aproximação foi bem natural. Eu já possuía algum elo de amizade com todos. Conheci a Tulipa através do MySpace, antes mesmo dela lançar o “Efêmera”. Começamos a trocar ideias a partir dali e nos tornamos amigas. A primeira vez em que ela se apresentou em Belo Horizonte foi através de um convite que fiz para tocarmos juntas. E, em consequência, conheci o Gustavo, que é seu irmão. O Benjamim Taubkin [instrumentista, arranjador, compositor e produtor paulistano, tocou piano no álbum de Juliana] é um cara que amo, um mestre. Sou superfã. Eu o conheço há alguns anos, nos tornamos amigos quando ele passou uma temporada em Belo Horizonte produzindo um disco de colegas meus. O Carlos Careqa, por sua vez, conheci pela internet, nos tornamos amigos após vários chopes nos Bar Balcão [SP] e acabei participando de seu disco,“Tudo Que Respira Quer Comer”, onde gravei “Feltro no Ferro”. Quanto ao Romulo, fui apresentada em BH. Eu já era sua fã quando o conheci. Ele conhece bem a cidade e temos alguns amigos em comum. Pirei quando ouvi o “No Chão Sem O Chão” [disco de 2009 de Romulo Fróes]. E o Abujamra foi por conta de uma apresentação que fez no FIT [Festival Internacional de Teatro], em Belo Horizonte. O espetáculo se chamava “Retransformafrikando”. Foi demais! Já gostava de seu trabalho no Karnak e em Os Mulheres Negras. O Abu acabou me dando um norte, sabe? Foi um grande estímulo para que fizesse o “Álbum Desconhecido”. Porque até então, nesse tempo com a música, sempre me vi envolvida em diferentes projetos, com diversas formações, mas nunca havia tomado a frente de um trabalho. Isso ainda é muito recente para mim e o Abujamra me serviu de referência. Até mais pela relação que ele tem com o seu ofício do que por afinidades musicais. Ele é um cara muito verdadeiro. A sua presença de palco, a forma como passa o seu recado para o público... O Abu é demais. O disco é dedicado a ele. Na verdade, todas essas participações se deram muito mais por uma questão afetiva, sabe? Além, é claro, da minha admiração musical por estes artistas.


BD – Deve existir grandes diferenças entre a cena paulistana e a de Belo Horizonte, não?

Juliana Perdigão – São Paulo é um dos centros, né? É interessante ver isso. O Rio tem a Rede Globo, o mainstream... o que acontece aqui é impulsionado para o cenário nacional através da televisão. Já em São Paulo você tem os veículos de lá: a Folha de São Paulo, os jornalistas, os formadores de opinião que elegem quais serão os nomes do momento... é um pouco assim. Existem essas duas forças. E, de fato, a música independente é muito centrada em São Paulo. Eu conheço vários artistas cariocas com trabalho autoral que têm que correr atrás de espaço. Aqui eles não têm uma grande abertura para divulgar a sua produção e formar público. E Belo Horizonte... [Risos]. É a outra cidade! Não tem uma coisa nem outra. É o limbo mesmo! [Risos]. Ainda estamos na primeira infância. É difícil romper o limite municipal e estadual. O mercado ainda é muito restrito e poucos conseguem uma maior projeção fora de lá. Não temos veículos formadores de opinião. Se você não pagar uma boa grana para uma assessoria de imprensa "bala" e montar seu esquema, será muito difícil seu trabalho chegar a outros lugares e ser inserido nos veículos de comunicação. Se for observar, é realmente muito maior a porcentagem de artistas de São Paulo com projeção. Minas está bem atrás nisso. 

BD – A impressão que tinha é que a cena musical de Belo Horizonte era bem forte...

Juliana Perdigão – Mas é barra pesada! Tem muita gente fazendo música boa. A cena é muito colaborativa, todo mundo participa dos trabalhos dos colegas. É bem interessante e muito diversificada... Nesse viés da música independente e autoral, vejo que há uma unidade, um pensamento estético que norteia a cena paulistana. Claro que há variações, como em todos os lugares, mas sinto que a produção de lá tem uma sonoridade própria. Em Minas não. Lá é bem freak, bem esquizofrênica. [Risos]. E isso me atrai muito. Acho que o meu disco é um pouco assim. Ele tem arestas, sabe? Não recorri apenas a um gênero e gravei vários compositores de diferentes vertentes. Acho isso bem positivo. Mesmo existindo uma unidade por conta da banda e dos arranjos.

BD – Mas acredito que internamente a cena mineira consiga ter seu espaço e sobreviver sem grandes problemas, não?

Juliana Perdigão – Sim, temos um público crescente, nota-se. Os shows do Graveola em BH estão sempre cheios. As pessoas vão e sabem a letra de cor. Mas é meio que a mesma galera sempre. É tudo no boca a boca, sabe? Grão em grão. Temos acesso à mídia local, o que é de grande ajuda, mas não é como em São Paulo que um jornalista chega e fala que o fulano é o cara. Não mesmo. Lá, a imprensa comenta sobre o seu show e tudo o mais, mas não fomenta a cena ou elabora um pensamento a cerca dela. Existe essa diferença. Belo Horizonte tem poucos jornalistas que se predispõem a fazer isso. Mas acho que tende a melhorar. Eu converso muito com a Tulipa a respeito dessa questão. Quando eu a conheci, ela estava começando a cantar, tinha gravado umas quatro ou cinco músicas disponibilizadas no MySpace. Não havia uma trajetória anterior, apesar de sempre ter acompanhado os trabalhos do irmão e ser filha do [Luiz] Chagas, que é músico e escreve sobre música. Acho que muito da sua projeção se deve ao fato dela estar em São Paulo. Todos os olhos estão voltados para aquela cena. É lógico que a Tulipa é uma artista incrível. Sou apaixonada por ela e pelo seu trabalho, mas realmente existe essa predisposição dos meios de lá. Em Minas, temos muitas coisas a favor, mas é na enxada, saca? [Risos]. O Graveola mesmo tem mais de sete anos de estrada e demorou bastante para ter algum reconhecimento fora de lá. 

BD – O Graveola e o Lixo Polifônico parece ter uma acento mais pop do que o seu trabalho solo...

Juliana Perdigão – A maioria das composições do Graveola é do Luiz Gabriel e do Zé Luiz, fundadores do grupo. Isso já cria uma identidade. Cheguei a tocar no primeiro disco da banda, apenas como colaboradora. Mas sempre achei muito interessante a forma como eles se comunicam com o público. Esse formato pop de você chegar e todos saberem cantar as músicas, de seduzir a plateia. Os meninos são muito bons de palco. Isso me acrescenta muito. Porque eu não tinha essa experiência. Estudei em escola de música, meu referencial é voltado para um som mais cabeçudo, harmonia, melodia, "blábláblá". [Risos]. Acaba tendo um alcance reduzido, entende? É mais hermético e nem todo mundo tem disposição para prestar atenção em detalhes harmônicos e refinamentos de arranjo. Quando entrei pro Graveola... cara, eu estou aprendendo muito! É uma vivência absolutamente nova. Como fazemos muitos shows, temos um grande domínio do repertório e isso me permite desenvolver personagens no palco. Isso me atrai. Antes da banda, praticamente não tocava sem partitura. Acho que no meu disco eu procuro um meio termo, entre o pop do Graveola e as minhas referências anteriores.


BD – A começar pelo título, “Álbum Desconhecido”, seu disco passa bem longe do lugar comum. Você sentiu essa necessidade de experimentação?

Juliana Perdigão – A ideia era fazer um disco de canções inéditas de compositores com quem eu já tinha contato. Esse era o mote. Eu mesma fui a produtora do disco, junto com o Mauricio Ribeiro, mas a banda foi muito presente em todo o processo. Tenho uma imensa identificação com os meninos, o Matheus [Bahiense, bateria e percussão], o Pablo [Castro, guitarra], o Maurício [Ribeiro, teclado] e o Thiago [Mundim, baixo]... Somos amigos há anos, temos influências musicais semelhantes e estamos abertos ao novo. No disco, não ficamos presos a um gênero ou a uma sonoridade apenas. Os arranjos de base foram feitos de forma totalmente coletiva. Gravei uma música do baixista, duas do guitarrista e uma do pianista... então o “Álbum Desconhecido” pode ser encarado um pouco como um disco de banda. Mas é evidente que opinei e direcionei os arranjos. Eu chegava lá e dizia: “aqui ficaria legal uma marimba e ali um cavaquinho com delay”. Por exemplo, eu queria que o arranjo da música do Romulo, “Cidade Baixa”, soasse como uma banda de coreto. Então chamei o [Nailor] Proveta para fazer esse arranjo, que é a praia dele. Já “Gangorra”, me remetia ao Júlio Medaglia em “Construção” [Chico Buarque], com aquele samba circular. O Maurício captou essa ideia e criou um belo arranjo para a  música. Então, eu sabia o que queria. Mas a colaboração dos músicos foi importantíssima para o resultado final. Apesar de ser variado, o disco tem uma unidade. E foi algo que realmente busquei. Já o título, “Álbum Desconhecido”, é uma brincadeira. Ninguém me conhece, as músicas são todas inéditas e a maioria dos compositores são igualmente desconhecidos. O título também remete ao limbo que é Belo Horizonte. Tem um disco que eu gosto muito chamado “A Outra Cidade”, do  Kristoff Silva, Pablo Castro e Makely Ka. Eles são referências para mim e esse nome, “A Outra Cidade”, remete a essa história de BH ser uma cidade à parte, um pouco oculta. Percebo que habitamos aquele imaginário caricato que se tem do mineiro. Quando você sai de lá e fala que é de Minas, o primeiro signo que vem é o pão de queijo!  [Risos]. Além de trenzinho, montanha e Clube da Esquina. E aí surge aquele personagem do “minerim”, “quietim”... Então quis brincar um pouco com isso através do título.

BD – E a experiência com o choro? O que te atrai nesse universo?

Juliana Perdigão – Eu toquei em um grupo de choro chamado Corta Jaca, gravamos dois discos. Um em 2005 e outro em 2007. Eles foram produzidos pelo Maurício Carrilho e pelo Paulo Aragão. São músicos geniais e têm um projeto lindo que é a Escola Portátil de Música, que funciona aqui no Rio. No choro, eu comecei tocando clarinete. Sempre gostei do gênero. Minha bisavó ouvia e me aplicava. Mas no meu trabalho solo eu tenho que confessar que fiquei um pouco tímida em convidar esses meus colegas para irem ao show. [Risos]. Até relutei um pouco em dar o disco, porque é muito diferente do que eles estão habituados a ouvir. São outras influências. E, apesar de serem músicos formidáveis, estão ligados a outro universo. Não sei se eles iriam identificar algo de choro nesse meu trabalho e nem sei se gostariam de ouvi-lo. [Risos]. Mas, o choro faz parte da minha formação musical e é um gênero que ouço constantemente. Sempre que posso vou a rodas de choro. Ultimamente, estou um pouco distante delas, por conta do meu disco e do Graveola. Mas é um tipo de música que vai estar sempre em mim, que compõe a minha base musical e afetiva. 


BD – No Brasil existe uma grande valorização das cantoras, em detrimento dos instrumentistas. Você já deve estar sentindo essa pressão, não? Como lida com isso?

Juliana Perdigão – Você acha mesmo? No meu caso, o meu trabalho solo já nasceu assim, focado na canção e no canto. Então não ouve nenhuma pressão... na verdade, comecei cantando em um grupo vocal. Só depois é que passei a tocar. O canto faz parte da minha busca pela palavra. Fico seduzida pela ideia de me comunicar utilizando um texto. Há uma troca, uma resposta do público, que é concreta. As pessoas entendem, sabe? Você está ali falando. É muito diferente da música instrumental. Ainda tenho bastante a aprender. A maior diferença entre tocar e cantar é que o instrumento pode criar uma barreira que te protege um pouquinho. Já no canto não tem jeito, você tem que incorporar um caboclo belzebu, ir lá e [grita]: “Aaaaaah”! [Gargalhadas]. E eu gosto. Está sendo um ótimo aprendizado.  

10 Responses to a dona da voz

  1. Anônimo :

    Os mineirinhos quebram tudo !
    Tem que levar os jornalistas paulistanos para BH, quem sabe assim descobrem a "mina de som" ?

  2. que belezura de pessoa, que belezura de entrevista!

  3. opa! cheguei, cheguei. jornalista paulistano na área!
    parabéns, jujuba! sucesso de entrevista!

  4. Parabéns, Juliana, muito bacana a entrevista e sobretudo, a sua carreira. Sou sua fãnzona!

  5. Entrevista excelente, belíssimas fotos!

  6. Juju Fogueteira ficou bonitona na foto e deu o papo reto da cena. Foi topo Barra!

  7. Muito boa a introdução da entrevista, alertando sobre as primeiras "fissuras da cena independente brasileira" e de sua necessidade de amadurecimento.
    Ótimo também o bate-papo (deve mesmo ter sido muito divertido) com uma das agentes mais importantes da cena mineira atual, tanto pela qualidade de sua música quanto pelo seu potencial de interlocução entre diferentes estilos e cenários. Juliana tem um perfil que, por diversificado, é também agregador, e pode ser considerada realmente um retrato falado da cena musical belorizontina nos últimos anos. Vida longa, Jubiruba!!

  8. Augusto Barros :

    Uau! Legal demais essa entrevista. Faço das palavras do Maurício as minhas. Tanto no que diz respeito à super lúcida introdução quanto à importância da Ju no clima quente de BH. Que bom ser contemporâneo seus

  9. Sensacional esse bate-papo!
    Vi Juliana Perdigão no show 'Danado de bom', no Auditório Ibirapuera e fiquei impressionado com a moça.. Espero vê-la novamente!

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