à flor da pele


O samba é mãe. Surgido no início do século XX no Rio de Janeiro, o samba deve o seu nascimento às quituteiras baianas que ao fixarem residência na zona portuária da cidade – conhecida na época como Pequena África – trouxeram para a região os ritos e festejos do candomblé. Tia Ciata, tia Amélia, tia Prisciliana, tia Veridiana, tia Mônica e outras tantas baianas foram as grandes responsáveis por gerar os primeiros bambas do gênero que se tornou a mais significativa identidade do país. Feminino em sua origem, o samba trouxe desde seu berço a mistura de estilos que permearia boa parte da produção musical brasileira, como a bossa nova e a própria MPB.
Quase um século depois, ao findar uma década onde o samba e outros estilos considerados regionais foram deixados de lado, viu-se o retorno gradativo do gênero às rádios e TV, coincidentemente através das vozes femininas. Encabeçado no primeiro momento por Marisa Monte, que abarcou em seu repertório canções de grandes mestres como Candeia e Paulinho da Viola, o samba ganhou vigor na virada do século, quando uma nova cena surgiu na região boêmia e então decadente da Lapa. Sua principal artista, Teresa Cristina, acabou por encarnar, mesmo à sua revelia, este renascimento, tendo seu nome até hoje associado ao samba e ao bairro da Lapa. De origem humilde, criada no subúrbio carioca da Vila da Penha, Teresa começou a cantar tardiamente, aos 30 anos, tendo antes trabalhado como manicure, vendedora e secretária. Apresentou-se exaustivamente durante anos em bares como Semente, Carioca da Gema e Centro Cultural Carioca, até que, em 2002, gravou, acompanhada do Grupo Semente, seu primeiro disco, o duplo “A música de Paulinho da Viola” (Deckdisc). Com ele, ganhou os prêmios TIM de Música como “Cantora Revelação” e o Rival BR, além de ser indicada ao Grammy Latino de “Melhor Disco de Samba”. Dois anos mais tarde, foi a vez de lançar-se também como compositora no álbum “A Vida me Fez Assim” (Deckdisc). Em 2005, dedicou-se ao primeiro CD e DVD ao vivo, “O Mundo é meu Lugar” (Deckdisc), gravado no Teatro Municipal de Niterói. Dois anos depois, Teresa lançou “Delicada” (EMI), onde já dava sinais de certa inquietação artística ao gravar “Gema”, de Caetano Veloso. Em 2010, acentuou esta faceta, ao promover seu segundo CD e DVD ao vivo, “Melhor Assim” (EMI), onde cantou composições de autores até então não associados ao seu universo musical, como Lula Queiroga, Edu Lobo, Chico Buarque, Adriana Calcanhotto, Vinicius de Moraes e Tom Jobim. Nesta mesma época, passou a estreitar laços com a nova geração da MPB, fazendo parceira com Karina Buhr, apresentando-se ao lado da banda Os Outros e, mais recentemente, iniciando um diálogo com Romulo Fróes, Kiko Dinucci e Juçara Marçal.
Ainda que pouco ou nada se fale da relevância do samba da Lapa na construção do  cenário musical brasileiro contemporâneo, o Banda Desenhada viu em Teresa Cristina uma excelente oportunidade de agregar um novo olhar neste mapeamento que vem fazendo ao longo deste um ano e meio de existência. Assim, convidamos a cantora para esta entrevista, realizada no estúdio da Deckdisc, na Barra da Tijuca, em meio às gravações de seu novo álbum, em que canta sucessos de Roberto Carlos acompanhada da banda Os Outros. Teresa, de forma genuína e apaixonada, nos falou de sua carreira, do samba e da sua relação com os  artistas da neoMPB.

BD – Alguns críticos comentam que mesmo sendo importantes para a revitalização do samba, os artistas da Lapa acabaram não trazendo nada de novo ao gênero. Imagino que você já tenha ouvido algo a respeito...

Teresa Cristina – Na verdade eu já ouvi e li de tudo à respeito da Lapa. As pessoas falavam muito. E mesmo que não fosse ao meu respeito, eu sentia que, ao tocarem no nome Lapa, estavam falando de mim. Sempre tomei as críticas para mim. Artisticamente falando, foi ali que nasci, sabe? Então, quando começaram com esse papo de que não estávamos fazendo nada demais e só cantávamos música velha, fiquei muito chateada. Muito chateada mesmo. Até porque algumas críticas não partiram de jornalistas e sim de outros artistas. Achei muito indelicado. Não falo mal do trabalho de nenhum colega de profissão. Realmente não gosto disso. É antiético. Até porque música é algo muito complexo... Não existe só a que você faz. Tem a música que você ouve, que você corre atrás para comprar ou baixar; tem a música que você não quer ouvir, mas acaba ouvindo; tem a música que você ouve sem querer e ela acaba te ganhado; tem aquela que você ouve sem querer, não gosta, mas daqui a pouco já está cantando... e todas elas acabam fazendo parte da sua história. A música é muito poderosa. Você pode contar a sua vida através dela, fazer uma lista com canções onde poderá facilmente dizer: “Aqui eu tinha seis anos, aqui eu tinha 15, aqui eu tive um grande amor, aqui eu estava muito triste...”. Elas vão mapeando a nossa vida de um jeito que acabam tendo uma importância mais afetiva do que qualquer outra coisa. Então, quando as pessoas começaram a falar mal da Lapa, fiquei aborrecida. Porque ela não veio a reboque de ninguém. Ela não foi inventada, sabe? Não era o “samba universitário do Rio de Janeiro”, nem tínhamos a intenção de fazer algo para ganhar muito dinheiro, ficar famosos e aparecer em jornais e televisão. Sinceramente, não conheci ninguém que pensasse assim! Acho que cada um tem a sua história e devemos respeitá-la. Na verdade, encarei as críticas mais como um “mimimi”. Essa ideia de que só queríamos cantar música velha... 

BD – Esta costuma ser a principal queixa.

Teresa Cristina - Acho um argumento tão ignorante! A Lapa conseguiu realizar um grande resgate dos antigos sambas. O samba de raiz, o tradicional, que eu costumo chamar de samba de terreiro, não surgiu para ganhar as rádios e a TV. É um samba para unir a escola. Um samba que fala de valores que não se vendem, que você não encontrará nas capas de revista. Mas sem os quais você não vive. Se você pegar todas essas escolas, Portela, Mangueira, Salgueiro, Império...  e prestar atenção nesses sambas de terreiro, irá perceber que eles falam do orgulho do compositor em pertencer aquela escola ou então são de uma filosofia pura! Quase como uma autoajuda, sabe? Você tem pérolas da música popular brasileira que são difíceis de serem vistas sendo feitas por alguém hoje. Por exemplo [cantarola]: “Quando vem rompendo o dia, eu me levanto, começo logo a cantar/ Esta doce melodia que me faz lembrar/ Daquelas lindas noites de luar/ Eu tinha um alguém sempre a me esperar/ Desde o dia em que ela foi embora/ Eu guardo esta canção na memória...” [“Esta melodia”, Bubú da Portela e Jamelão]. Eu duvido que o Bubú tenha pensado que estava fazendo um samba para entrar para a história! Não. Ele fez um samba para as pastoras cantarem em sua escola. É essa a lição que eu e tantos outros artistas da Lapa carregamos. Para mim a música sempre foi atemporal. Por exemplo, eu descobri o Zé da Zilda no final dos anos 90. E suas canções me levaram para um universo totalmente novo. Aquelas músicas eram inéditas para mim! Nunca tinha ouvido, entende? E eram músicas dos anos 40! E quando eu as cantava com o Pedrinho [Pedro Miranda], o público enlouquecia! A era de ouro das rádios tem tesouros que pouquíssima gente conhece e que merecem ser trazidos à tona. Você chamar as músicas do Geraldo Pereira [compositor de sambas dos anos 40] de velhas é o mesmo que chegar pro Paul McCartney e falar: “Não venha cantar no Brasil porque ninguém quer ouvir essas suas velharias”! E aí quero ver quem vai chegar e falar: “Ah, ‘Let It be’ de novo?! Não aguento mais isso!”. [Risos].


BD – Ao analisar os sambistas da Lapa, parece que boa parte da crítica acentua a tensão que há entre a questão estética e a econômica...

Teresa Cristina - O forte da Lapa nunca foi a figura do artista e sim suas músicas, estas sempre foram a nossa verdadeira matéria-prima. E isso mexeu com a vaidade de muita gente. Porque quando você começa a dar espaço para um grupo de artistas que não quer tirar onda com ninguém, que não quer dizer que é melhor que ninguém, faz com que algumas pessoas comentarem: “Como assim? Eles não querem aparecer? Não querem ser famosos?!”. Então, para mim, não passou de um “mimimi” bastante chato. Porque nós não estávamos preocupados com o sucesso e sim com o trabalho! Trabalhei todo fim de semana por mais de 10 anos! Quinta, sexta e sábado. Sem tirar férias, sem poder ir às festas dos amigos ou aniversários em família. E com um repertório que não se ouvia nas rádios e muito menos na TV. Hoje em dia você ouve. Que bom. A Lapa ajudou para que isso acontecesse e, principalmente, abriu um importante mercado de trabalho para os músicos do Rio de Janeiro. A Lapa emprega muita gente em suas casas, independente de ser samba ou não. Por isso que me doía quando ouvia alguém falar mal da Lapa. Eu falava: “Caramba! Porque essas pessoas estão fazendo isso"?! E há tantos compositores bons por lá! Moyséis [Marques], Fernando Temporão, João Callado, Ana Costa... independente de tocarem na noite, eles possuem um trabalho autoral. Só que ser reconhecido pelo valor de uma composição leva tempo. Não é fácil você se firmar como compositor. Mas esses artistas estão aí, compondo e produzindo um material novo, contemporâneo. E ainda assim existe preconceito. Já li críticas a respeito da maneira como expresso a minha arte, sabe? Caramba! Porque uma coisa é falar: “Eu não gosto de você, eu não gosto da sua barba”. [Risos]. Né? O que você vai falar para mim?!

BD – Impublicável! [Gargalhadas].

Teresa Cristina – [Risos]. Agora, falar que não gosto do jeito que você leva a sua vida?! Aí é algo que não depende só de você. É toda uma construção de valores que se vai adquirindo ao longo dos anos, com as suas experiências. E eu acabei percebendo isso. Se algumas pessoas não gostam de mim, não gostam da forma como encaminho o meu trabalho, paciência! Ninguém troca de valores da noite para o dia e não pretendo mudá-los só para que uma ou outra goste de mim. É natural que as pessoas se identifiquem ou não com o seu trabalho. O problema é que algumas críticas vão além das questões profissionais, atingindo diretamente o ser humano que está por trás do artista. Eu tenho muita dificuldade em criar um personagem e colocá-lo à frente como escudo. Eu sou eu. E sofro muito com isso. É uma coisa que tentei aprender... tentei colocar uma máscara, um véu invisível... Só que a pessoa do palco, essa pessoa da luz e do microfone não é diferente dessa pessoa que toma café, que acorda e vai tomar banho... e ela tem as suas limitações, como qualquer outra. E sinceramente, com 45 anos, se eu não consegui construir esse personagem até agora, acho que não construirei mais. [Risos].

BD – Falando em personagem: Negra, sambista, umbandista e vinda do subúrbio. Você é um prato cheio para qualquer um que queira rotulá-la . Como você lida com isso?

Teresa Cristina – Costumo me afastar dos estereótipos quando percebo que algo no meu perfil está ganhando mais destaque do que deveria ou quando sinto que posso virar uma caricatura. Por exemplo, respeito muito o movimento negro. Mesmo. Mas respeito muito mais internamente do que ativamente. Vivi há algum tempo uma história um pouco estranha: sou uma cantora negra, mas a única vez em que fui convidada para participar de um prêmio relacionado ao negro, onde havia sido indicada ao prêmio de melhor cantora, não havia lugar para eu sentar. [Risos]. Quase fui embora! [Risos]. E pensei: “É, realmente eu não pertenço a esse lugar”. É engraçado, porque todas as vezes que falam em artistas negros, meu nome não está. Não sei se as pessoas consideram que eu tenha pouca melanina... Será? [Risos]. Na verdade, eu não gosto dessas divisões e nem de ser adjetivada desse modo, sabe? “Teresa Cristina: Mulher, negra e suburbana”. Sinto que, lá no fundo, quase sempre isso é colocado de forma pejorativa para reduzir ou desqualificar meu trabalho. Porque não podem colocar também “Teresa Cristina, cantora e compositora”? Eu quero que o fato de ser mulher, negra, suburbana e cantora de samba entre na minha biografia, mas que não seja encarado como o meu estandarte.


BD – Chamá-la de cantora de samba a incomoda?

Teresa Cristina - Incomoda o samba não ser considerado MPB! Isso sempre me incomodou, antes mesmo de começar a cantar profissionalmente. Por exemplo: Clara Nunes. Ela é cantora de MPB ou é cantora de samba? Todos a classificam como sambista. Pode procurar! “A sambista Clara Nunes”. E a Clara Nunes cantou de tudo! Ela gravou valsa, bolero, maxixe, afoxé, ijexá, coco, embolada... Ela gravou compositores dos mais diversos gêneros e ainda assim é classificada como cantora de samba. Eu vi o Jacob do Bandolim, com voz firme, falando do Chico Buarque e Tom Jobim: “eles fazem choro, eles fazem samba”. Como se estivesse dando um selo de qualidade. E tenho certeza que na cabeça do Chico Buarque ser chamado de sambista é uma honra. Quando me deram o título de sambista, por conta dos álbuns do Paulinho da Viola, achei aquilo tão nobre que fiquei um tempão tentando equilibrá-lo, pensando: “Caramba, eu tenho que estar à altura, não posso decepcionar os sambistas”. Só que quando você vê que nas premiações existe a categoria cantor de MPB e cantor de samba, fica claro que não é uma questão de valorização. E o mesmo acontece com outros ritmos, ditos regionais, que não são considerados MPB. Se você faz um xote, se você faz uma ciranda, você não é cantora de MPB, entende? A MPB se tornou um label de sofisticação. E isso me irrita muito. Eu já vi em revistas e em livros: “Djavan, cantor e compositor”, “Gilberto Gil, cantor e compositor”, “João Nogueira, sambista”. Cara, isso pra mim é como um tapa na cara! Chamar um artista como João Nogueira apenas de sambista, é deixar de lado a sua importância como cantor e compositor! Você está usando um termo nobre para, no fundo, desqualificar o trabalho do artista! Joga-se na pessoa o que ela é, só que de um jeito que lhe vem como se fosse uma lâmina! “Ah, essa menina não é cantora de MPB não, ela é sambista”! E até hoje é assim. 

BD – Por falar em MPB, você tem uma parceria [a canção “Vagalume”] com a Karina Buhr, que é considerada um dos principais nomes do cenário atual. Como foi esse encontro? 

Teresa Cristina – É engraçado, eu não a vejo como nova MPB ou qualquer outro rótulo... Nossa parceria se deu por conta da amizade. A gente se conheceu em Tenerife [Ilhas Canárias], em um festival de música, e criamos vínculos. Nessa época, ela ainda fazia parte da Comadre Fulozinha. E foi muito legal quando a Karina lançou “Eu Menti Pra Você”. Eu não conhecia as suas novas composições. Quando eu ouvi... cara, que coisa incrível! A Karina desabrochou, sabe? Eu a acho muito genuína e com uma inocência ácida... Ela tem um jeito de compor muito corajoso. Quando eu comecei a compor, tendo o samba como meu quintal, me encantei pelo seu olhar contemplativo. Esse olhar que você encontra nos compositores da Portela, no Alvaiade, no Mijinha, no Manacéia... [cantarola]: “O dia se renova todo dia, Eu envelheço cada dia e cada mês, O mundo passa por mim todos os dias, Enquanto eu passo pelo mundo uma vez” ["O Mundo é Assim", Alvaiade]... Eu fiquei influenciada por esta visão de mundo. E a Karina me trouxe outro olhar, que é o olhar do rock, o olhar do pé na porta, urgente. E isso me emocionou muito. Saber que nós podemos fazer alguma coisa juntas, sem nenhum tipo de preconceito. Porque as pessoas tem uma imagem muito limitada de mim. Eu adoro heavy metal! Porque não posso ouvir Iron [Maiden]?! De certa forma, nesse pouco tempo que estivemos próximas, a Karina reacendeu esse meu lado, trouxe um novo sopro para a minha vida. Eu voltei aos meus 16 anos, quando comecei a ouvir rock com mais frequência. E foi muito bom. Mas isso tem uns dois anos. Não vejo a Karina há bastante tempo. Ela começou a fazer shows, a ganhar o mundo. Mas foi um encontro muito importante para mim! E, coincidentemente ou não, esse meu encontro com a Karina foi quase simultâneo ao meu encontro com Os Outros e com a Ana Cañas. Eu encontrei a Ana no centenário do Adoniran Barbosa no "Altas Horas" [programa de televisão transmitido pela Rede Globo]. E foi muito legal, a gente conversou, trocou e-mails, telefones... e tentamos compor juntas. Ela me mandou um pedacinho de música e eu tentei terminar, mas não consegui. Ainda assim, com a ideia dela fiz outra canção e a enviei. Acabou não dando certo, pois a gente não conseguiu se falar e logo depois a Ana se envolveu com a produção do seu novo trabalho. Perdemos o contato e nunca mais nos falamos direito. Mas, nesse tempo que estivemos trocando ideias, fiz quatro canções que não são sambas e que tenho certeza que foram influenciadas tanto pela Karina quanto pela Ana. E agora eu não sei muito bem onde colocá-las. [Risos]. Atualmente estou gravando Roberto [Carlos] com Os Outros e o próximo trabalho, a princípio, é o disco do Candeia... e estas músicas estão no meio do caminho. Acabei de fazer outra, chamada “Armadilha”, com a Kátia B e o Dé Palmeira. Contando com essa já são cinco, olha só! [Risos]. Será que de repente eu componho mais seis e faço um álbum? [Risos]. E aí? Do que é que as pessoas vão me chamar? É interessante. Eu não sou nova MPB. Acho sacanagem me chamarem de nova MPB! [Gargalhadas]. Vou fazer 45 anos! [Risos].

BD – Se bem que o Romulo Fróes tem 41... [Risos]

Teresa Cristina – Olha aí! O Romulo me chamou para fazer um show em homenagem ao Geraldo Filme! Eu havia encontrado com esse rapaz apenas uma vez em São Paulo. Já tinha ouvido falar muito dele pela internet, do seu trabalho de composição e dos elogios que recebe da crítica, mas ainda não tinha conseguido ouvi-lo. A rede tem esse lado negativo: faz você achar que conhece muito um artista, sendo que só está sabendo do superficial. Mas tenho muita coisa para agradecer ao Romulo. Não era profunda conhecedora do Geraldo Filme. Sabia que ele era "fodão", "Jedi" [personagem da série Star Wars] da Velha Guarda de São Paulo. E só. Mas aí tive que aprender três músicas para cantar neste show. E, francamente, se eu as tivesse composto já me daria por satisfeita para o resto da minha vida. Elas são incríveis. Duas tratam do mesmo universo, falam do artista de rua, do artista que não teve o seu devido reconhecimento, que não tem placa de bronze, nem estátua, mas trazia alegria a sua gente. E a outra é “Batuque de Pirapora”. A história é linda: A mãe quer batizar o filho e o leva a uma procissão, vestindo o menino de anjo. Só que alguém chega para a mulher e fala que o filho dela, preto e pobre, não pode estar ali. Aí a mãe fica "puta da vida", joga as asas fora, pega a criança e a leva ao terreiro para ser batizada. Cara, é incrível! Eu não posso mais viver sem essa canção. E eu devo isso ao Romulo Fróes. Ele adquiriu uma importância enorme na minha vida sem nem ao menos termos apertado as mãos. Estas três músicas agora são meus mantras. Elas me tocam de um jeito...


BD – Você parece gostar muito dessa interação, de fazer parcerias...

Teresa Cristina - Toda vez que um artista que não é meu amigo ou que não está inserido no mesmo grupinho me convida pra fazer algo, isso me arrebata, me ganha. Porque às vezes me canso de ver sempre as mesmas pessoas. É normal que os amigos estejam sempre juntos, é uma prova de afinidade, mas na música vale a pena você abrir as portas, sabe? E pouca gente faz isso. Por exemplo, o Caetano me ganhou para sempre. Ele me chamou para participar do “Obra em Progresso”... não esperava mesmo! Porque não frequento os mesmos lugares que o Caetano, não tenho o mesmo círculo de amizades, sabe? Não tínhamos nenhum vínculo. E, com isso, ele ganhou o meu carinho para o resto da vida. E com o Romulo foi a mesma coisa. Eu pensei: “Cara, que 'do caralho'! A gente nunca sentou em uma mesa de um bar, não somos da mesma panela! E ele está me chamando pra cantar um cara Buda, um Jedi"? Isso enriquece muito um artista. Muito mesmo. E fico grata por todas essas oportunidades.

BD – E o projeto de gravar com Os Outros as canções do Roberto Carlos? 

Teresa Cristina - Na verdade é um álbum com os sucessos do Roberto. A maioria das composições são parcerias dele com o Erasmo. Só filé mignon. Um boi inteiro de filé mignon! Não tem carne de segunda! [Risos]. E também tem composições de outros autores que ele tomou para si. Gosto disso. Quando gravei as músicas do Paulinho, duas delas não eram de sua autoria, mas estavam totalmente identificadas com ele: “Meu Mundo é Hoje”, do Wilson Batista, e “Sentimento”, do Mijinha. E o Roberto também tem isso. Por exemplo, “Moço Velho”, é do Sílvio César. “Do Outro Lado da Cidade” [Helena dos Santos] também não é dele. E são a sua cara! Assim como “Não adianta” [Edson Ribeiro]... As músicas são lindíssimas!

BD – Como foi o encontro com Os Outros?

Teresa Cristina – Olha, foi mágico! Como a vida é. A gente pensa que é tudo sem fantasia, mas a magia está por aí, aonde a gente nem imagina que possa estar. Por um ou dois anos, o Vitor Paiva  [baixista da banda] ficou me convidando para cantar com Os Outros. Só que eu fiquei um pouco na dúvida porque não queria parecer uma figura exótica: “a sambista na banda de rock”. Tive medo de parecer caricatural. Então, fiquei relutante. E ainda havia a questão da agenda, as datas não batiam. Ou eu estava cantando no Carioca da Gema, na Lapa, ou estava fazendo shows fora da cidade. Mas aí teve um momento que falei: “Ah, quer saber? Agora vamos”! Só que eu não fazia a menor ideia do que iria cantar com uma banda de rock. Pensei então em cantar algo que sempre quis e nunca tive oportunidade: o repertório do Roberto Carlos! O mais interessante é que nessa mesma época eu estava trocando de escritório, saindo de uma empresária e indo pra outra, e teve um momento que estive com todas as minhas matérias em jornais e revistas, a minha vida artística toda documentada. E algumas matérias de quando lancei os discos do Paulinho tocavam no Roberto. Mas falava do Roberto não como um projeto futuro, mas sim como algo inatingível! Este projeto acabou sendo a realização de um sonho. Quando criança eu ouvia muito Barry White, Donna Summer, Evelyn Champagne King, Earth Wind & Fire... toda essa geração dos anos 70. E o Roberto Carlos, por conta da minha mãe. Para mim, o momento mais importante da minha vida foi a infância. Tive uma infância de ouro. Foi... [Emociona-se]. Foi na minha infância que fui mais discriminada por ser negra. Meu primário foi muito difícil.  Mas ao mesmo tempo, foi nessa mesma época que eu descobri os livros. Todo o conhecimento que eu adquiri através deles é muito mágico para mim. Eu vivi a infância até o talo. Também brincava na rua, andava suja... eu realmente aproveitei o subúrbio. Muito. E o Roberto também faz parte desse momento. Suas músicas vinham na voz da minha mãe... Então, se é através dela... [Pausa]. O Roberto é como se eu estivesse no colo da minha mãe. Tudo isso mexe muito comigo. [Chora levemente]. Eu nem sei como vai ser o show de lançamento! [Risos]. Não sei se vou aguentar, se estarei inteira. Tomara. né? 





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4 Responses to à flor da pele

  1. Anônimo :

    Adorei o texto e a entrevista! Vida longa ao Banda Desenhada!
    Clarissa Barcellos

  2. Anônimo :

    gaucho.rs.400@gmail.com
    Ferva, esquente mais amor, corra nas trilhas calçadas, vem, vem pelas ruas abertas.
    Descalçada sincera, com a pureza do, amanhacer.
    Quatro mundos abertos, no barro derrama-se em, flor.
    Que olhos que olham! que vida que vive! Com amor.
    Na rua com graça, correndo nas praças, a felicidade chegou.
    Que menina tão bela, que voz tão singela, meu coração se entregou.
    Que sabor! Eu sei, eu amei, a figura desperta do bairro agitado.
    Sete horas na rua com som de ferrugem, ferreiro, ferragem. De serrador.
    O mundo brincando nas ruas da lapa, enquanto ela vive.
    De fato, verdade, de peito estufado.
    Que...
    A vida desnuda, de pesos pesados, solta no vendo à mim decolou.
    Destinos traçados, de venda nos olhos um amor conquistou.
    Estou ao seu lado, quando lembro do tempo que menina na rua
    Sentava ao meu lado, futebol na favela. Minha dama da lapa.
    Cordão desgraçado, ajudava no beijo, a cair no asfalto.
    De braços abertos, de costas no chão e o peso do morro.
    Que...

  3. O Banda Desenhada deixa os artistas muito à vontade para dizerem o que sentem, numa boa. É isso que faz deste blog um espaço tão especial.
    Parabéns!

  4. Adorei a entrevista e vou compartilhar com meus amigos.
    Parabéns! Sentia falta de um espaço assim.
    Bernardo

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