GAROTO DOURADO

fotos: daryan dornelles


Representante da cena paulistana atual, o cantor e compositor Leo Cavalcanti lançou, no final do ano passado, seu primeiro álbum, Religar (DeleDela), considerado pelas publicações especializadas como um dos melhores discos de 2010. Paralelo ao aval da crítica, Leo vem colhendo inúmeros elogios de artistas do porte de Caetano Veloso, Arnaldo Antunes e Adriana Calcanhotto.

Leo começou a sua carreira aos 14 anos, se apresentando ao lado do pai, o compositor Péricles Cavalcanti. Com o passar dos anos, conquistou estilo próprio, autointitulado “pop transcendental”, que abarca, entre outras influências: R&B, tropicália, músicas eletrônica, árabe, indiana, pop e flamenco. Longe do lugar comum, suas canções servem de ferramenta para explorações e questionamentos a respeito da condição humana e dos valores da sociedade contemporânea. Ao aliar seus estudos em ciências holísticas  yoga e massoterapia  à sua verve autoral, Leo compõe um repertório que alfineta e provoca os ouvintes mais desavisados.

Realizando uma pequena turnê no Rio de Janeiro, o músico nos encontrou em um ensolarado fim de tarde no Parque Garota de Ipanema. Sentado sobre o palco de concreto, Leo comentou a respeito de seu trabalho e sua peculiar visão de mundo.

BANDA DESENHADA  A maior parte de suas canções não trata do amor romântico e sim enfatiza as buscas internas e as questões metafísicas. Há uma intenção por trás disso?

LEO CAVALCANTI  Para mim, compor tem uma função terapêutica. Eu só consigo ser sincero e encontrar motivação para fazer música se trabalhar as minhas questões, as minhas crises. Então, sinto que as minhas canções são permeadas por esse deslumbramento com o mistério, pela grandeza de existir, por ter este corpo, por estar neste lugar e em processo de evolução. De alguma maneira, eu acredito que a arte tem a função de religar, de tirar os véus. Eu me emociono com essa ideia de despir os véus de ilusão e ampliar a nossa consciência para além dos desenhos que criamos em nossa mente, das ideias que estabelecemos em relação ao mundo e ao que a gente é. Eu sinto a necessidade de expansão. Sinto que é uma questão individual e coletiva, uma questão da nossa era. Vivemos numa grande transição de consciência, mas, ao mesmo tempo, estamos quase no limite físico do consumismo, da superpopulação e da relação desequilibrada com a natureza. E isto exige uma grande transformação. Acho que a gente tem a necessidade de rever o que é o homem dentro da natureza. E a gente tem muito a descobrir. Então, retornando à questão inicial, compor é um exercício terapêutico e, como exercício terapêutico, tem a função de revelar, de desnudar. Eu quero poder me sentir nu. Não quero utilizar uma canção para ter status ou para parecer alguma coisa perfeita. Eu quero parecer imperfeito na música que faço. Isso me interessa.


BD  Suas canções reafirmam isto, a questão de ser você mesmo, de experimentar. Só que ao mesmo tempo há uma enorme pressão da mídia em classificar e rotular. A sua geração já foi chamada de neoMPB, nova MPB, geração SP, etc... Como você lida com isso?

LEO  Acho que é uma coisa comum a esta geração mesmo, esta desnecessidade de seguir gêneros, já que a sua formação é feita de múltiplos e tem uma identidade cosmopolita. Existe, sim, a vontade de estabelecer uma linguagem própria. E esta linguagem é criada a partir de tudo que a gente tem como bagagem. Mas também acho natural essa busca por rótulos, ainda mais neste contexto em que a gente vive, onde o mercado musical ainda tenta se restabelecer e procura novos caminhos. Estamos saindo de uma era que foi o auge dessa indústria e que tinha uma forma própria de lidar com as coisas... O Brasil tem uma história de música popular muito rica. Então, a sombra dos nossos grandes ídolos é muito presente. Não precisamos derrubá-la, mas precisamos conseguir ver outras coisas. E isto ainda é uma dificuldade. As pessoas ainda procuram por Caetanos e Bethânias porque são referências muito fortes, porque são icônicos, entidades mesmo. Mas existem outras possibilidades. Como é muita informação que circula, as pessoas precisam te identificar com alguma coisa. Isto é natural. Acho um desafio, para quem está fazendo música, conseguir criar seu próprio estilo. Então surgiu essa coisa do “pop transcendental”. Não que eu ache que a minha música seja transcendental e as outras não, mas é que dentro do pop transcendental existem elementos que trazem informações sobre o meu trabalho. O transcendental está relacionado às letras, que falam de transformação, e o pop no sentido de agregar uma diversidade de estilos. Acho que dentre os gêneros mais conhecidos, é no pop em que me sinto mais confortável, porque ele já é uma grande mistura.

BD  Por falar em pop, além do seu “pop transcendental”, Tulipa Ruiz autointitulou sua música de “pop florestal”. Os dois são da mesma geração e utilizam o termo pop para se definirem. Poderia falar a respeito disto?

LEO  Eu sempre quis, e é intencional e natural, que a minha música entrasse no terreno do pop. E a sonoridade é mesmo, porque tem desde Jackson do Pandeiro até Timbaland, Beyoncé e Justin Timberlake. E o disco soa como isto. Tem a coisa da batida eletrônica, do bumbo, de ser dançante, de ter essa coisa do tum-tac-tum, essa coisa seca, rítmica. Sempre foi o que eu quis. Ao mesmo tempo, a canção é brasileira, tem elementos de música árabe, música hindu e flamenco, que são coisas que cada vez mais eu me interesso. E este interesse vem desde criança. São elementos que eu costumo chamar de “romantismo espiritual”, vindos desses povos antigos, orientais, que tem essa coisa do EEEEEEE... [canta em escala árabe] que é “oh! O deslumbre da alma”! [risos.] Eu gosto disso!

BD  Com relação às referências, em alguns momentos de seu show é possível observar algumas semelhanças com Gilberto Gil. Há realmente esta ligação?

LEO  Olha, claro que Gilberto Gil é uma puta referência porque é um mestre que eu admiro muito, mas não tenho uma influência estilística direta. Acho que tem a ver com certa musicalidade, no sentido rítmico. Meu violão é muito rítmico de mão direita, bem brasileiro, e o Gil é um dos caras que catalisou isso, então acho que tem a ver sim, culturalmente, mas não é só isto. Eu o amo e louvo, mas estamos para além dos totens. [risos.]


BD – Em seu álbum há uma referência a Federico Garcia Lorca [“Cantos Novos”]. Paralela à sua obra poética, Lorca participou ativamente na Guerra Civil Espanhola, pagando com a própria vida por suas posições ideológicas. E você? Como lida com as questões políticas?

LEO  Podemos definir política de várias formas. No sentido tradicional, eu não sou uma pessoa que procura obter todos os detalhes dos acontecimentos cotidianos. Não leio jornais tanto assim. Procuro ter uma visão mais ampla, no sentido de compreender o processo histórico, mas sem me prender às questões muito específicas. Eu realmente acredito mais no poder pessoal, acredito que as nossas atitudes reverberam. Então, começa com a gente, dentro da gente. A política verdadeira é a relação que estabelecemos com as coisas, com a comida que a gente come, o tratar com as outras pessoas, as escolhas que fazemos. Acredito em um mundo onde ciência, filosofia, política, religião, espiritualidade e arte estejam integradas, sejam uma coisa só. Eu acredito na grande integração. Vejo que estamos em um mundo muito compartimentado. Os políticos são apenas políticos, eles não circulam nas outras áreas. Cada vez mais, é nítida a necessidade de uma transformação social, uma reorganização mundial que tenha um pouco de arte na política, que tenha ciência na espiritualidade, que tenha espiritualidade na ciência... Vamos pensar então em relação à Dilma [Rousseff]: eu sinto que a questão do meio ambiente deveria ser tratada como prioridade. É fundamental, é uma questão que está por trás da economia, da saúde e da educação. Dependendo de como ela for organizada, todas as outras questões serão afetadas. É urgente. Eu não acredito em política alguma que desconsidere a questão ambiental. Você vê, construir a Usina de Belo Monte nesta altura do campeonato?! Destruindo irreversivelmente uma parte da Amazônia, desabrigando 40.000 pessoas, usando uma tecnologia defasada que só dará conta por tempo limitado?! A política feita no Brasil ainda é pensada em curto prazo. E, enquanto for assim, acho difícil. Podemos ter crescimento econômico, mas isto vai durar pouco. Não pode, não tem como. Estamos lidando com o esgotável, com um recurso finito.


BD – E qual a importância do Lorca em seu trabalho? Você também cita Fernando Pessoa em seu disco...

LEO  Com uma história tão intensa, Lorca é um avatar, assim como Fernando Pessoa, Jesus e Buda. São pessoas que catalisaram grandes transformações na humanidade e possuem mensagens muito fortes para dar. Eu vejo que o Lorca era um entregue a tudo isso, um emocionado 24 horas por dia. Era um São Francisco. Fernando Pessoa também. Eles são eternos para mim e tenho a maior honra de tê-los no disco, como se fosse um apadrinhamento, uma benção. Citá-los e colocá-los em outro contexto. O Glauber Rocha igualmente [Leo utilizou trechos de “Deus e o Diabo Na Terra do Sol” na faixa Dissabor]. Não vejo diferença entre esses poetas, esses santos, esses loucos.


3 Responses to GAROTO DOURADO

  1. PARA QUEM ACHAVA QUE A MUSICA BRASILEIRA NÃO REAGIA??????????????EIS QUE REAGE;
    PARABÉNS LEO!

  2. ÓTIMA ENTREVISTA! VOCÊS MAL COMEÇARAM E JÁ MOSTRAM FRESCOR, PERSONALIDADE.
    ADOREI O LEO. ESTA CONSCIÊNCIA DO LIMITE. DE REVISAR OS VALORES. MUITO LÚCIDO O RAPAZ.
    SUCESSO!

  3. Anônimo :

    Maravilhosa entrevista! O site está de parabéns pelas perguntas.

    É muito bom conhecer um pouco mais da atual música brasileiro : )

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